Geração dopamina

Desde que o capitalismo evoluiu ao longo dos últimos séculos, com o livre comércio predominando as economias e o crescimento da riqueza aumentando em todo o planeta, o que um dia já foi escasso, hoje pode ser encontrado facilmente nas casas de quase toda a população ao redor do mundo. 

Vivemos a era da abundância, onde o padrão de vida de uma pessoa pobre supera a vida de um rei do século XV em diversos aspectos. Um aristocrata antigamente sequer tinha acesso a saneamento básico e poderia facilmente morrer de alguma virose, já hoje em dia uma pessoa pobre tem água potável dentro de casa, além de remédios e vacinas que a protegem de viroses.

Essa abundância toda trouxe incontáveis benefícios: a fome está praticamente extinta, mesmo com uma população muito maior do que poucos séculos atrás; houve um grande aumento na expectativa de vida graças aos avanços no saneamento básico e na saúde; inventamos novas tecnologias que facilitam nossa vida cotidiana; conquistamos tempo para desfrutar de atividades de lazer; entre tantos outros benefícios. 

Por outro lado, pouco se fala que tal abundância, quando não usufruída com responsabilidade, tem feito cada vez mais pessoas desenvolverem problemas psicológicos que até algumas décadas atrás sequer existiam. 

Nos últimos anos, o número de pessoas com vícios e compulsões disparou. A primeira coisa que se vem à cabeça quando falamos de vícios são as drogas, como o cigarro, a maconha, a cocaína, os opióides, etc. O vício em drogas é fácil de identificar, já que é quase certo que uma pessoa que consuma droga com frequência provavelmente seja  um dependente, e as mudanças físicas e comportamentais serão maiores e mais perceptíveis para quem convive ou está ao redor desta pessoa.

O problema se torna maior quando são outros tipos de vícios, ligados ao consumo de coisas que não são danosas inicialmente e estão presentes na vida de todas as pessoas, como por exemplo, a televisão, o celular, a comida, os jogos, entre outros. No caso da alimentação é ainda pior, já que ela é necessária para a nossa sobrevivência. 

O mundo contemporâneo e a busca pelo prazer

Diversas áreas de nossas vidas foram transformadas nas últimas gerações, onde as coisas passaram a estar disponíveis na palma da mão ou a poucos metros de distância. Antigamente as pessoas precisavam caçar, plantar e cozinhar, passando horas em pé, cortando alimentos e mexendo a panela para poder se alimentar. Hoje compramos coisas prontas em algum supermercado próximo, tendo que apenas esquentar a comida no microondas, ou vamos a um restaurante onde alguém irá preparar e nos servir na mesa ou até mesmo podemos pedir para ser entregue pronta no conforto do nosso lar, sem qualquer esforço nem para sair de casa. 

Durante o século XVII, era comum as pessoas trabalharem no mínimo 10 horas por dia, seja na indústria ou na agricultura. Com a mecanização do trabalho e o desenvolvimento de novas tecnologias que aumentaram a produtividade, foi possível reduzir o número de horas no trabalho e consequentemente aumentar o número de horas disponíveis para o lazer ou qualquer outra atividade. E a tendência é que isso se intensifique nas próximas décadas. 

O aumento de tempo ócio disponível e tédio consequente disto faz as pessoas procurarem sanar este tédio por meio de atividades. Nessa busca, diante de tantas opções e facilidades as pessoas vão atrás daquilo que é prazeroso. O tédio e o esforço não chegam a ser um grande sofrimento, pelo menos não quando comparado ao luto e à dor física, mas são duas coisas que atualmente, diante deste cenário, podem gerar certo incômodo, sendo opostos ao prazer, e por este motivo, de certa forma se tornaram um sofrimento contemporâneo para uma parcela da população. 

Os efeitos da dopamina e a neuroadaptação

Nosso sistema nervoso tem uma comunicação entre os neurônios para diversas situações e funções, tal comunicação é realizada pelos neurotransmissores, e a dopamina é um deles. Ela está ligada ao sentimento de recompensa, engajamento e permanência em alguma atividade. Toda vez que realizamos algo que consideramos prazeroso, a dopamina é liberada. Esse processo é natural e muito importante para termos o reforço para realizar diversas ações em nosso cotidiano, como nos alimentarmos para sobreviver. 

No entanto, quando esse processo se desregula, um dos problemas que surgem são os vícios e as compulsões, que trazem uma série de problemas na vida da pessoa, e até mesmo sua morte. Quando executamos alguma ação prazerosa, sentimos em seguida um desejo, que pode ser comer mais de um determinado alimento, jogar mais uma partida de videogame, assistir mais um episódio de uma série, etc. Esse desejo é a vontade de reviver aquele momento de prazer mais uma vez. Conforme repetimos a mesma ação, nosso corpo vai diminuindo a sensação de prazer, o que é conhecido como neuroadaptação, criando tolerância a esse estímulo. Por este motivo, pessoas que desenvolvem tolerância precisam repetir mais vezes a ação ou terem doses cada vez mais fortes para poder sentir o efeito da dopamina. Isso é a dependência. 

O sofrimento faz parte da vida e é necessário

Vivemos a cultura do bem estar, onde somos ensinados no nosso cotidiano em diversos meios de comunicação que sempre devemos correr atrás da nossa felicidade, seja no amor, no sexo, na universidade, na saúde, no trabalho, entre outras áreas de nossas vidas. As pessoas estão o tempo todo buscando o prazer e fugindo sempre que possível do sofrimento gerado pelo tédio, de atividades que demandam mais energia, de situações sociais desconfortáveis ou que possam gerar tristeza, raiva ou algum outro incômodo.

Um estudo publicado pela OMS apontou que 70% das mortes são atribuídas a fatores de risco que podem ser evitados com a modificação de comportamentos, como o fumo, o sedentarismo e a alimentação. As principais causas de morte no mundo são pressão alta, consumo de tabaco, alto nível de açúcar no sangue, inatividade física e obesidade. Todas estas causas estão diretamente ligadas à busca pelo sentimento de prazer que a dopamina causa e a fuga daquilo que é desagradável, trabalhoso ou mais difícil de seguir, como uma dieta saudável e exercícios físicos.

No entanto, essa fuga causa um desequilíbrio que consequentemente acaba gerando um sofrimento ainda maior depois de um tempo, e que pode acarretar em mortes. Além disso, não devemos evitá-lo justamente porque são nos momentos de sofrimento que mais aprendemos e crescemos. Quanto mais lidarmos com o sofrimento, mais fortes e preparados ficamos para a realidade da vida, que irá acontecer gostando ou não.  

A liberdade como sempre exige responsabilidade, não apenas quando se trata de terceiros. Diante de tanta abundância de tempo e coisas materiais, o indivíduo que não for responsável com sua liberdade corre o risco de se tornar escravo dos seus vícios, preso em uma prisão simbólica, sem conseguir viver de forma plena as outras áreas de sua vida, perdendo sua liberdade e possivelmente sua vida. Para usufruirmos dos momentos bons e prazerosos de forma equilibrada e benéfica é necessário enfrentar os momentos difíceis também. 


2 comentários em “Geração dopamina”

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