Rússia x Ucrânia: O conflito histórico-cultural que pode definir a realidade geopolítica do século XXI.
Todos nós fomos impactados pelas notícias recentes, do dia 24 de fevereiro de 2022, quando oficialmente o exército russo iniciou sua campanha de invasão massiva ao território ucraniano, o que não foi surpresa para muitos considerando o fato de que Putin a uma quantidade considerável de tempo já havia dado diversos indícios de que a invasão ocorreria mais cedo ou mais tarde. Infelizmente, aqueles que apostaram contra a invasão se mostraram redondamente incorretos.
O fato que permeia a todos nós, vide a questão Rússia x Ucrânia, são alguns elementos, abordados objetivamente pelo texto abaixo, que nos levam a concluir que a situação entre ambos os países eslavos é algo recorrente.
Conceitos básicos de território
Para compreender a natureza do conflito entre ambos os países, primeiramente precisamos compreender questões básicas acerca de território, afinal esse é um dos assuntos comuns quando se fala na invasão do país ucraniano pelos russos.
Pode-se dividir os países dentro da geopolítica internacional entre duas categorias: países marítimos e países terrestres; sendo essa uma característica determinante de um país. A saída para os mares e locomoção em território contínuo são fatores determinantes dentro de um país, que podem mudar totalmente a sua relação comercial com o mundo e até impactar os seus índices de desenvolvimento humano. Tomemos como exemplo o país Chade, localizado no continente africano, que não possui nenhuma saída para o mar e tem todo o seu território cercado por outros países, por consequência de sua localização geográfica o país não possui nenhuma saída para o mar, o que impede que seu comércio externo seja realizado sem passar por intermédio de outros países; além disso Chade não possui eficientes meios de locomoção dentro de seu território, não é de se surpreender que Chade possua um dos piores IDH do planeta, além de não ter uma economia forte.
O que aprendemos com o exemplo de Chade? Algo bem simples, um país sem saídas para o mar e sem meios de locomoção territorial tende a ter um problema grande quando for negociar no mercado internacional, além de precisar ter cuidado dobrado com suas fronteiras, considera-se também que meios de transporte aéreo no presente momento são inviáveis para manter circulação comercial de um país com o mundo, pois são extremamente caros e não tão eficientes quanto a via marítima ou terrestre, por mais que existam exceções a esse problema, como o é caso da Suíça, no geral essa relação não se altera.
Um contexto histórico-cultural
Agora que compreendemos a importância que o território apresenta para um país e as categorias que dividem o elemento característico do território desse país (marítimo ou terrestre), iremos tentar compreender como foi a realizada a formação do povo russo e qual a sua relação com o povo ucraniano.
Consideremos o século IX como o ponto de partida de nossa empreitada pela história dos povos eslavos, quando o príncipe Oleg of Novgorod do povo Rus’, que habitava o norte do território ocupado pelos eslavos, onde hoje se localiza a Finlândia, conseguiu cessar os frequentes conflitos entre os diversos povos eslavos que lutavam na região leste da europa. Esta empreitada histórica acabou por reunir o povo eslavo dentro de uma grande nação, a grande Kiev Rus’, império esse que possuía sua capital na cidade de Kiev, que hoje é considerada capital da Ucrânia.
O povo Rus’ desenvolveu sua identidade cultural ao longo do tempo, com a adoção do cristianismo ortodoxo e diversos sincretismos entre o povo bizantino e a cultura eslava, o que acabou criando uma identidade única para esse povo, o povo Rus’ durou como reino até por volta do século XIII, no entanto após este século, as invasões mongóis acabaram por tomar o território que antes era dominado pelo povo eslavo; com isso acabou por ocorrer uma cisão entre o que se consideraria a capital do reino.
Com Kiev sendo invadida e dominada pelos mongóis, apenas o Rus’ habitantes de Moscou conseguiram deter a invasão mongol e manter suas terras, com isso o território se reconfigurou para ter como capital Moscou e assimilar geografia com maior semelhança com a Rússia atual.
Em 1721, com a jornada por parte de Pedro I, o grande, tem-se início a era dos czares na Rússia, que contava com grande parte do território do que hoje chamamos de Ucrânia. Esse período, onde o grande império procurou reacender a ligação com o antigo povo Rus’ e superar as perdas que foram sofridas pelos mongóis, durou até o ano de 1917, quando então a revolução russa pôs fim a era do czares e deu início a era soviética.
A realidade dos povos
Compreendendo o início da formação do povo russo, entendemos que estes têm fortes ligações com o povo ucraniano, afinal de contas ambos os povos tiveram seu início na mesma matriz, que foi o grande povo Rus’ que possuía sua capital em Kiev, hoje capital da Ucrânia, a grande questão a ser tratada a seguir é justamente o fato de que isso não significa que povos eslavos sejam todos os mesmos apenas por possuir um ancestral em comum.
Comecemos então a entender um primeiro aspecto importante que denota a grande diferença da mentalidade eslava para a nossa americana ocidental, tais povos são extremamente ligados a sua cultura ancestral – o que de certa forma demonstra uma grande xenofobia dos mesmo – e isso merece um grau mais elevado de explicação.
Para nós, brasileiros, a ancestralidade não é algo tão reconhecido ou rememorado, afinal de contas possuímos um altíssimo grau de miscigenação, assim como muitos dos povos americanos. Ocorre que para os eslavos a situação é extremamente diferente, o povo Rus’ foi resultado da união de etnias eslavas, eles sabem de sua origem e para esses povos sua árvore genealógica é algo muito importante.
No entanto, isso não significa que o ancestral em comum faça dos povos iguais, pois um russo se identifica como russo e um ucraniano como ucraniano e ambos se consideram povos diferentes, independente de suas semelhanças, isso se deve ao baixíssimo grau de miscigenação do povo eslavo, portanto tais povos reconhecem-se a si mesmos como parte um povo específico, independente do território.
Isso é deixado claro durante a era da União Soviética, onde mesmo que debaixo de um mesmo território russos e ucranianos continuam compreendendo a si mesmos como russos e ucranianos. O fato de existir a União Soviética, país que ambos compartilhavam, era uma questão secundária, o que é demonstrado pela grande rivalidade entre os povos durante o período socialista, demarcado pelo trágico evento histórico de Holodomor, que já retratado aqui no blog.
A realidade da guerra
O que de fato compreendemos sobre a questão da atual guerra é que se trata de um conflito histórico-cultural. O invasor, Putin, considera estar apenas tomando de volta o seu próprio território e reintegrando o seu próprio povo dentro de seu país, vale lembrar que de fato existem diversos ucranianos que se consideram russos, o próprio Putin se refere a Ucrânia como “pequena rússia”, portanto não podemos esquecer que esse é um fato essencial para a correta compreensão dessa invasão feita por Putin.
Porém, além da questão histórico-cultural, a questão territorial é de suma importância para Putin, como podemos visualizar em qualquer mapa, a Rússia possui um território absurdamente extenso, mas que em grande parte não é utilizado, na verdade quase toda a população russa vive na parte oeste do país. A Rússia também não possui saídas para o mar, afinal todo as suas possíveis saídas contam com águas congeladas e ambientes extremamente inóspitos, além disso a Rússia possui muitíssimas fronteiras com países que, de modo geral, não possui relações tão boas. Logo, nota-se que a ex-URSS pode ser facilmente invadida e pega de surpresa por um ataque, portanto a Rússia precisa ter muita segurança quanto às suas fronteiras.
Territorialmente a tomada da Ucrânia iria proteger a fronteira sul da Rússia, além de dar saída ao mar para o país. Ora, considerando isso poderíamos até achar razoável a invasão da Rússia à Ucrânia, porém essa conclusão se mostra extremamente incorreta.
A invasão de Putin pode não ser apenas territorial, econômica ou histórica, que mesmo se fossem seriam tão anti-éticas quanto, nessa questão atual também existe um aspecto de honra pessoal do invasor. A grande questão aqui é que para Putin a invasão é uma tentativa de retomar uma espécie de império russo ou uma grande união soviética, precisamos compreender que não necessariamente essa intenção foi demonstrada publicamente por Putin, porém não podemos deixar de lado essa possibilidade. O presidente russo pode estar se enxergando como o fundador do novo império russo, o que soa como uma conspiração, mas não está longe da realidade, logo a grande invasão à Ucrânia pode apenas ser uma tentativa de retomar aquilo que foi encerrado na década de 90.
Isso seria uma catástrofe para o povo ucraniano, pois como foi determinado, a Ucrânia não é a Rússia. Os ucranianos são povo próprio, independente do que os russos acreditem, uma invasão com intenções imperiais, seria apenas mais uma das inúmeras vezes que os ucranianos tiveram sua cidadania ucraniana negada.
E agora?
Mas então o que essa guerra nos demonstrou até o momento?
Primeiramente a imensa desumanidade de Putin com o povo ucraniano, onde seus cidadãos estão sofrendo com a invasão russa. Estima-se atualmente mais de 1,5 milhões de refugiados, o que é um número extremamente relevante e que tende a mudar a geopolítica europeia, além disso precisamos compreender que não sabemos o real motivo da invasão, por mais que tenhamos diversos motivos e objetos que podem nos levar a entender a raiz do conflito, não sabemos de fato quais a intenções de Putin e isso aflige o ocidente, afinal jamais imaginaríamos que em pleno século XXI teríamos que lidar com uma invasão a um país democratico com aparente tentativa de anexação.
Ademais, podemos ver a força que o capitalismo possui, onde além das diversas sanções feitas a Rússia, mais de 50 empresas multinacionais fecharam operações no país, além da retirada da Rússia do sistema SWIFT de transações internacionais. Essas ações demonstram claramente a grandeza da afirmação de Thomas Friedman de que jamais um país que possui um McDonald’s entraria em guerra com outro país que também possui um McDonald’s, essa frase ecoou com força quando o próprio McDonald’s anunciou o fechamento de 850 lojas no território russo, encerrando operações no país. O fato é que nenhuma empresa séria buscou se manter no iniciador da guerra, no caso a Rússia.
A grande garra e resistência do povo ucraniano tem humilhado as tentativas do exército russo de tomar seu território, agora nos resta saber qual fim terá essa história. Todo apoio ao povo ucraniano é pouco nesse momento, essa guerra é um acontecimento que irá por certo entrar nos livros de história, como um dos episódios determinantes do século; estamos visualizando atualmente a guerra entre o ocidente liberal, que acredita na liberdade dos indivíduos, contra a parte autoritária do oriente, que acredita na tirania estatal, quais serão os próximos capítulos desse embate?
Texto por Gabriel
Arte por Nathália Marques