Política virou futebol?

Abri uma mochila velha recentemente e encontrei um velho chaveiro do São Paulo, onde estava escrito “Futebol, paixão nacional”. Observei esse pequeno chaveiro por longos minutos, pois percebi que ele era uma cápsula do tempo de uma época diferente. De uma época em que queríamos que as pessoas discutissem política com a intensidade que discutiam futebol. Mas percebo hoje que devíamos ter cuidado com o que desejamos, pois a política acabou virando futebol.

Brasil, o País do Futebol

Como disse num texto anterioro Brasil é um país onde todos os revolucionários foram derrotados pela elite do poder estabelecido. Seja nossa independência, república, golpes militares ou redemocratizações, as revoluções que deram certo eram as com o apoio da elite. Ao povo cabia apenas observar enquanto estes poderosos mexiam em seus destinos, pois a repressão física esteve sempre presente quando eles de fato se uniram. Como resultado desse afastamento, políticos eram vistos, sem exceção, como corruptos. Isso surpreendeu os diretores de Tropa de Elite II, que ficaram perplexos ao ver a audiência festejar no cinema a cena em que Capitão Nascimento espanca um político.

Nossa união nacional não vinha de um legado popular histórico, como no caso de Inglaterra e França, mas sim do Futebol. Sendo a primeira seleção tricampeã e única seleção pentacampeã, no futebol éramos respeitados como os melhores do mundo. 

Aí veio 2013.

Jornadas de Junho: o surgimento de algo maior

As manifestações contra o aumento de 20 centavos na passagem do ônibus surgiram como um protesto da esquerda militante, mas saíram completamente do controle quando a população em geral adotou a causa, no que foi chamado de Jornadas de Junho: mais de 500 cidades em todo o país se manifestaram diariamente contra o aumento da tarifa, lotando ruas e invadindo o planalto em Brasília. Grupos com bandeiras políticas eram expulsos, pois os manifestantes se esforçavam para impedir políticos de tomar para si seu movimento. Como sinal de união, manifestantes passaram a usar a bandeira nacional, roupas e tintas com as cores do Brasil. As palavras de ordem eram para pautas genéricas e desorganizadas, como saúde, segurança, e educação.

Montagem de fotos das Jornadas de Junho

A Globo, maior emissora do Brasil, se negava a transmitir o povo na rua, mas isso não deu certo. Num ato desesperado para tentar fazer as pessoas pararem de se manifestar, ela então chamou o Pelé para falar em rede nacional, também sem sucesso. Consegue imaginar como isso seria bizarro hoje em dia? Que chamar por exemplo o Neymar para acalmar protestos seria uma opção válida? Realmente eram outros tempos, que em minha opinião terminaram para sempre no dia 8 de julho de 2014. 

Mineirão: o Muro de Berlim Brasileiro

Joseph Ratzinger afirma que a queda do socialismo com o Muro de Berlim foi também a queda do eurocentrismo como um todo, pois tanto havia sido investido no socialismo como o único caminho científico e seguro para o progresso que ver ele falhar rachou a crença do ocidente na razão e, com ela,  todas as grandes narrativas eurocêntricas. 

Para o Brasil, a queda do nosso muro de Berlim foi a derrota por 7 a 1 para a Alemanha no Mineirão. Foi uma derrota tão inegável e humilhante que rachou completamente nossa paixão e patriotismo enraizados no futebol. A partir daquele momento, não éramos mais o país do Futebol. Éramos apenas mais um. E sem essa grande narrativa cultural, nada nos distrairia da implacável recessão do segundo mandato Dilma, onde os índices de desemprego, pobreza, e preços todos explodiram. 

O resto é história: brasileiros tomaram as ruas como em 2013, realizando as maiores manifestações da história do país vestindo a camiseta da CBF, e conseguiram com isso pressionar para que Dilma fosse impichada, na primeira revolução com participação popular bem sucedida do Brasil. Mas isso teve um problema seríssimo. 

A meta muda, o método não

O que aconteceu no Brasil a partir de 2016 foi similar ao que comento num texto sobre a social democracia, onde digo que a meta muda, mas o método não. O que isso quer dizer? Pense assim: quando a Nova direita se uniu em 2016 para o impeachment de Dilma e de 2018 em diante em torno de Bolsonaro, estavam entrando de cabeça na política pela primeira vez. Como então se comportar? 

Na falta de outro método, adotamos o que já conhecíamos nas torcidas organizadas: nossa posição política é para ser defendida acima de tudo, sem espaço para concessões. O nosso lado está sempre certo mesmo quando faz algo errado, e o oponente é incapaz de estar certo em qualquer coisa, pois a ideologia dele é, na verdade, uma falha de caráter. Se a justiça for parcia

A esquerda, já acostumada com os ataques hegemônicos petistas, entrou também nesse jogo, e a política enfim se tornou futebol. Agora cada um dos lados se informava por suas próprias fontes enviesadas, desumanizando um ao outro numa velocidade absurda. O resultado disso vimos em 2022, quando ativistas bolsonaristas e petistas mais de uma vez se mataram por discordância política. Até mesmo lideranças regionais históricas, como o PSDB em São Paulo, perderam as eleições pela primeira vez em décadas para as duas maiores “torcidas organizadas”.

 A política havia chegado para substituir o futebol como grande paixão do povo brasileiro, e os símbolos nacionais foram subvertidos para significar apoio ao bolsonarismo. 

A camisa da seleção era um motivo de orgulho e união tão grande entre nós que acreditaram que Pelé conseguiria parar as Jornadas de Junho. Hoje, moradores de BH precisam colocar uma placa dizendo “não é política” para poder pintar a rua para a copa. Ter a bandeira do Brasil em sua janela durante a Copa do Mundo não é mais visto como patriotismo, mas sim, como apoio a Bolsonaro. 

Futebol virou política, e política virou futebol

A separação política que vivemos pode muito bem ser vista no primeiro jogo do Brasil na Copa de 2022:

  •  Neymar é nosso melhor jogador, mas não conseguiu fazer gols e se lesionou. No entanto, como ele apoiou Bolsonaro na última eleição, houve quem comemorasse sua lesão e que ele não tenha conseguido fazer gols.
  • Richarlison fez um gol de bicicleta muito bonito, e seu apoio à causa “antifascista” fez com que fosse celebrado. Edições foram feitas transformando a pose de sua bicicleta num “L” de Lula, e houve quem o confundisse (por ignorancia ou má fé) com o jogador homossexual Richarlyson para celebrar o jogo como uma vitória da causa LGBTQIAP+. 

Compare essa situação com a de Pelé mais acima no texto: o futebol antes era um ídolo unificador tão adorado por ambos os lados que foi usado para parar as jornadas de junho, mas hoje a posição política dos jogadores se tornou mais importante do que seu desempenho. Seria impensável para o Brasil de 2013 comemorar uma lesão de nosso maior jogador por causa de política, mas hoje é impensável não comemorar uma vitória no futebol sem politizá-la partidariamente.

Eu gostaria de poder chegar aqui e dar uma resposta simples para isso, um novo caminho pelo qual poderíamos seguir, mas isso seria mentira. É preciso gerações e/ou eventos únicos para criar o pensamento de todo um povo. Agora que o nosso foi destruído, não dá só pra  voltar atrás. Precisaremos de muito tempo para conseguir reerguer um novo mito fundador para ocupar o espaço do futebol.

Só espero que, quando o país finalmente se unir novamente, saibamos diferenciar a política do lazer. Ou tudo isso irá se repetir de novo e de novo.


Paulo Grego

*As opiniões do autor não representam o Damas de Ferro enquanto instituição

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