Não existe doutrinação na educação brasileira.

Não existe doutrinação na educação brasileira

Um  fato recorrente ao meio conservador ou liberal, que no Brasil chamamos de “direita”, é a frequentemente afirmação de que “existe doutrinação nas escolas”. O postulado, tido como auto evidente, é apresentado como um paradigma na educação brasileira, que segundo os que fazem essa afirmação é dominada pela “esquerda”.

Dito isso, com o perdão das possíveis imprecisões na descrição do fenômeno, é possível afirmar a existência de uma doutrinação, mesmo que essa seja implícita? 

Na  minha opinião, não.

Gramscismo

Segundo consta, um dos principais nomes que servem de referência nas afirmações que concernem ao objeto de doutrinação na educação, é de Antonio Gramsci. Segundo os críticos da doutrina, afirma que Gramsci é o responsável pela formulação do modelo doutrinário vigente no país, sendo este, a principal referência na doutrinação nas escolas e universidades. 

Mas qual a filosofia de Gramsci? Bom, isso não importa, afinal o que se compreende acerca desse tema é o que foi proposto pelo autor Olavo de Carvalho, ao menos no Brasil, grande parte das críticas que são feitas a Gramsci partem do que foi apresentado por Olavo, logo não é importante entendermos exatamente  o pensamento do filósofo italiano, pois estamos analisando o que é dito sobre ele, não o que ele disse.

Olavo afirma que Gramsci é responsável pela criação de um sistema filosófico que parte da utilização da língua como instrumento de dominação das massas, mas não por meio da força, como na União Soviética, mas sim pelo meio da cultura.

Segundo Olavo de Carvalho, Gramsci fundamentou uma doutrina que corrompe  o imaginário da sociedade para então fazer a revolução. É importante ressaltar, essa afirmação parte do princípio de que Gramsci era a favor da revolução, porém via que ela poderia ser feita sem derramar nenhuma gota de sangue, apenas convertendo a mente dos mais jovens, para que no futuro, quando a revolução fosse proposta, ela já estivesse intrincada na mente da população, que já pensaria aos modos do partido.

O Marxismo Cultural

Ressalto novamente, não estamos analisando aqui o que foi dito de fato por Antonio Gramsci, mas sim o que as pessoas entendem que foi dito por ele, em especial os críticos atuais que utilizam de Gramsci como um dos pilares da suposta hegemonia cultural da esquerda. Portanto, não estamos exatamente falando sobre Gramsci, mas sim sobre o Gramsci do Olavo, se assim podemos dizer.

Em relação ao que foi proposto por Olavo, sumariamente na trilogia “O imbecil coletivo”, composta por “A nova era e a revolução cultural”, “O jardim das aflições” e “O imbecil coletivo”, coletânea de livros publicados na década de 90, criou-se o conceito de “Marxismo Cultural”.

Mas o que exatamente os propagadores da ideia afirmam com Marxismo Cultural?

Segundo os partidários da tese Gramscista, a ideia de Marxismo Cultural é uma tentativa de unir o pensamento do filósofo italiano com o pensamento da “Escola de Frankfurt”, nome dado ao grupo de filósofos alemães do século XX, responsáveis pela elaboração de pensamento filosófico niilista acerca da cultura e da sociedade, não se limitando a isso, óbviamente.

Porém, o próprio criador do conceito, Olavo de Carvalho, reconhece que essa  definição é uma contradição em termos, durante a aula de 01 de fevereiro de 2014 do seu “Curso Online de Filosofia”, afinal de contas o pensamento de Gramsci é utópico e otimista quanto ao futuro, Antonio Gramsci enxerga com bons olhos o futuro comunista que será atingido de forma pacífica por meio da cultura, pensamento que não é partilhado pelos Frankfurtianos, que enxergar a humanidade e a sociedade como algo decadente e degenerado. Um é otimista, o outro é niilista.

Isto posto, a utilização do conceito de Marxismo Cultural, tornou-se algo muito mais pragmático, com a limitação do uso do termo “pragmático”, do que algo teórico. O termo é utilizado como uma forma de sinalizar o suposto fenômeno da dominação da esquerda na cultura e na sociedade, através da dominação das mentes por meio da imposição de uma visão hegemônica de mundo e bibliografia limitada ao que for socialista e comunista, no máximo apresentando alguns autores liberais como atrasados ou como “neoliberais”, termo que é frequentemente usado como espantalho, mas não exclusivamente, equiparando defensores da livre iniciativa com fascistas ou imperialista. Nesse contexto, os conservadores são literalmente o diabo.

O que é doutrina?

Porém, agora que foi apresentado todo o contexto do que se entende por “doutrinação na educação”, podemos compreender porque não só ela não existe, ao menos como dizem, e porque ela está longe de ser um problema.

Primeiramente, o que é doutrina? Afinal, para falarmos em doutrinação, precisamos entender o que é uma doutrina primeiro.

Segundo o Cambridge Dictionary, o significado de doctrine (em português, doutrina) é: “a belief or set of beliefs, especially political or religious ones, that are taught and accepted by a particular group”. 

Em tradução livre: Uma crença ou um grupo de crenças, especialmente políticas ou religiosas, que são ensinadas e aceitas por um grupo particular.

Em outras palavras, doutrina nada mais é do que um sistema de ideias que é partilhado por um grupo de pessoas, sendo o exemplo mais famoso de doutrina, a doutrina cristã, utilizada de exemplo pelo próprio dicionário.

A corrupção da academia

Certo, portanto podemos afirmar que doutrina é uma palavra sem cunho positivo ou negativo, afinal a avaliação de cada doutrina específica é que determina a sua qualidade como doutrina, não o mero fato de esta ser uma doutrina.

Porém, aí é que entra um problema quando falamos em doutrinação, pois infere-se disso que as pessoas que estão sendo “doutrinadas”, estão aprendendo um conjunto sistemático de ideias e os compreendendo para então praticá-los, pois para algo ser doutrinário é necessário doutrina e para ser doutrina é necessário que haja aderência a ideias, mas isso não acontece.

Na palestra “The corruption of Academia” feita pelo filósofo britânico Sir Roger Scruton, as universidades foram tomadas pelo espírito de militância desde a década de 60. Ele sustenta a tese de que os intelectuais não procuram mais compreender, produzir e difundir conhecimento, sendo estes apenas vetores para a transmissão ideológica de ideias, onde a ideologia é apenas uma distorção da realidade que favorece um certo grupo de pessoas.

O que Scruton afirma é a falta de profundidade e conteúdo real na abordagem dos mais diversos assuntos dentro das universidades, tendo o ápice disso o surgimento dos, segundo Scruton, pseudo-assuntos que são um corpo de disciplinas que não significam absolutamente nada de concreto na realidade, sendo apenas uma forma falsa de conhecimento que é travestida de conteúdo acadêmico e científico. Scruton denuncia o surgimento de vários pseudo-assuntos emergentes à área de sociologia, que afastam-se da origem científica da disciplina e servem apenas de conteúdo ideológico, com verniz científico.

O maior exemplo disso é a disciplina “Estudos de gênero”, nos Estados Unidos da América, sendo esta uma das maiores formadoras de militantes dentro do contexto americano universitário. Segundo Scruton, a disciplina por si só é um descaso com a educação americana, partindo de bibliografia questionável e pressupostos apenas identitários, tratados como científicos.

Um pseudo-assunto, é a transformação de uma militância, tal qual a identitária, em uma categoria acadêmica, mas sem o rigor e a seriedade de algo realmente acadêmico, semelhante a uma pseudo-ciência.

Os intelectuais e a sociedade

Esse fenômeno da decadência intelectual no ocidente é relatado por vários autores, em especial Thomas Sowell, em diversos livros como “Os intelectuais e a sociedade” e “Os ungidos”, além de mais uma série de obras do autor sobre o tema.

Sowell demonstra a frequente capacidade que os intelectuais têm de “defender o indefensável” sendo assegurados pela sua cátedra e por sua titulação acadêmica, assim como Sowell relata em seus livros, o fato de toda ditadura contar com uma série de intelectuais que a defendem, utilizando da premissa da “não consequência de ideias” que Sowell atribui a John S. Mill, assim afirma Sowell em “Os intelectuais e a sociedade”: “John Stuart Mill alegava que os intelectuais deveriam estar desimpedidos até mesmo dos padrões sociais – ao passo que ele mesmo determinava padrões sociais para os outros seguirem”.

Com isso em mente, podemos entender que os intelectuais modernos não possuem um compromisso com a verdade, ou melhor, não precisam de um compromisso com a verdade, pois isso é irrelevante para eles, afinal de contas, estando certo ou errado, um intelectual será julgado pelos seus pares, não pelo resultado de seu trabalho e conjunto de ideias. Como Sowell exemplifica, se um engenheiro for mal sucedido na formulação de um prédio, esse prédio irá cair, porém se um intelectual for mal sucedido na formulação de uma teoria, nada irá acontecer.

“Marx não administrou nenhum gulag e Adam Smith nunca teve uma empresa” – Thomas Sowell

A aldeia global

O filósofo e educador canadense, Marshall McLuhan, foi um dos mais influentes escritores no tema da comunicação, no século XX. McLuhan via com bons olhos o surgimento da indústria cultural, assim como o fenômeno da expansão dos meios de comunicação, pode-se afirmar que Marshall previu o surgimento da internet, já na década de 60.

McLuhan afirmava que o “meio é a mensagem”, um de seus bordões mais famosos e que intitula um de seus livros, porém, o que ele quer dizer com isso?

Os meios de comunicação alteram a forma como o ser humano se relaciona, por conseguinte, alterando a própria ação humana, segundo o filósofo, não é tanto o conteúdo da mensagem veiculada que determina a conduta humana, mas sim o meio a qual ela é transmitida. Para McLuhan, cada meio desenvolve uma característica própria de si aos indivíduos, saindo da linguagem tribal, onde o meio de comunicação era oral, nós tínhamos essa característica justamente pela aproximação necessária da fala entre os indivíduos para passar a mensagem, com o surgimento da escrita, o indivíduo pôde focar-se no individualismo, não necessitando encontra-se mais com outros para a troca de informações, assim como o rádio que ao surgir, trouxe de volta o elemento auditivo e oral, pela natureza da propagação da sua mensagem.

Com isso, Marshall afirmou, utilizando como exemplo a televisão, o surgimento de uma “aldeia global”, propondo a ideia que com a massificação dos meios de comunicação, haveria uma supressão da individualidade tribal e uma exacerbação de uma cultura mais homogênea, levando em consideração os fenômenos de massificação da mensagem, através dos meios de comunicação.

Porém, McLuhan estava parcialmente certo em sua análise, ao olharmos para o fenômeno da internet, temos a impressão de que seu diagnóstico é irrefutável, afinal estamos globalmente conectados, unidos por uma espécie de cultura mainstream, algo que todas as pessoas ou consomem, ou conhecem, um exemplo disso são os grandes blockbusters de cinema, como filmes de super-herói.

No entanto, analisando o meio pelo qual as mensagens propagam, na internet, podemos observar que estamos longe de uma aldeia global, na realidade voltamos para o tribalismo do qual saímos no passado, justamente pelo meio de comunicação que estamos utilizando. Como demonstra a sua exposição, o meio influencia conduta e o meio virtual opera segundo algoritmos, que trabalham com o objetivo manter o indivíduo em uma espécie de bolha, alimentando-o com o mesmo tipo de conteúdo sempre, para que assim ele esteja frequentemente assimilando as mesmas ideias, sem contraste ou contraponto. O documentário “O dilema das redes”, demonstra o quão perigoso os algoritmos utilizados pelas diversas redes sociais já saíram do pleno controle dos seus donos. 

Hoje, nas redes sociais, voltamos ao esquema de pequena vila, onde todos sabem o que todos estão fazendo, suscitando um clima de vigilância e supressão da privacidade. No mais, a supressão dos contrastes depõe contra o intelecto humano, impedindo o debate de ideias por meio da dialética, onde há a contraposição de duas premissas contrárias com o objetivo de se atingir a verdade, o que seria definido, por Aristóteles, como o processo de construção da inteligência.

A presença do meio Twitter, por exemplo, altera a maneira como nos relacionamos com a vida na medida em que, na expectativa de compartilharmos o que fazemos, buscamos viver (ou fingir viver) uma vida digna de ser compartilhada e “curtida” pelos outros usuários, ou melhor, outras personas.

A ascensão do racionalismo irracional

Como Chesterton afirma no segundo capítulo de sua obra “Ortodoxia”: “O louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão”. Podemos concluir a ascensão de um fenômeno social que eu estarei chamando de racionalismo irracional, que nada mais é do que uma espécie de processo de massa que pretende ser racional, mas que mina as bases da razão individual em prol da sinalização de virtude coletiva.

Como mostramos, o meio “redes sociais”, nos impele a sinalização das virtudes, por sua própria natureza, porém isso não implica necessariamente em irracionalismo, afinal de contas é perfeitamente possível um indivíduo inteligente querer demonstrar a sua inteligência e ser aplaudido por isso.

Essa questão encontra eco no texto de outro autor, assim compreenderemos melhor a crítica de Chesterton ao racionalista louco. O texto em questão é de autoria do filósofo Immanuel Kant, publicado em 1874, denominado “O que é o Iluminismo?” (originalmente, Kant teria utilizado a palavra “conhecimento” ao invés de “iluminismo)

A tônica geral do texto de Kant é de que o homem prefere ser servo do que autônomo, principalmente em relação ao conhecimento, porém isso é a preferência daqueles que são covardes. Kant, determina que “iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado”, sendo assim o indivíduo que escolhe o caminho da razão, escolhe sair dos trilhos e da coleira do tutor, buscando assim pensar e chegar às própria conclusões, assim conclui Kant: “A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes), continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores.”

Porém, o processo de autonomia é doloroso e requer coragem, fator que não encontra-se em abundância entre os indivíduos, portanto é por essa razão que a imensa maioria dos homens prefere a coleira ao invés da liberdade, afinal “A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem”, assim como a parábola da caverna de Platão, Kant ilustra com precisão a indolência do homem em pensar por conta própria.

No fim do texto, Kant afirma que os meios estão disponíveis para o homem tornar-se dono de si, porém cabe a ele tomar essa decisão. Como vemos atualmente, ele não tomou.

E agora, compreendemos o que Chesterton quis dizer com a sua frase, o homem louco que perdeu tudo menos a razão, é aquele que, segundo Chesterton, tem um esquema pronto de ideais perfeitamente alinhadas dentro da sua mente, que são racionalmente demonstráveis e cuidadosamente sustentadas tal qual uma delicada tapeçaria. 

O homem racionalista do qual Chesterton fala, morre de medo da terrível verdade de que talvez ele não saiba algo ou até pior, de que ele possa estar errado. Com isso, ele apega-se ao um sistema fechado e limitado de ideias, que não necessariamente são incorretas por si só, para assim manter a sua pompa de sábio, esse homem não é capaz de tomar as próprias conclusões, necessitando apegar-se àquelas que lhe foram dadas por outrem.

Em outras palavras, os indivíduos pressupõem-se como racionais, porque têm medo de lidar com a falta de conhecimento, para assim então obter conhecimento, de onde vem esse medo? Do fato de que para atingir o ponto de autonomia, deve-se ter coragem e assumir as rédeas da própria vida e mente, porém essa é uma tarefa muito árdua para muitos.

O emburrecimento programado

Logo, após o exposto aqui, gostaria de retomar ao ponto inicial: existe doutrinação na educação?

A resposta para essa pergunta é: não.

Por que? Não existe doutrina, existe apenas um corpo de slogans que são repetidos ad infinitum. Não existe uma busca pelo conhecimento de modo sistematizado lidando com contrapontos e argumentos desconfortáveis que abalam as crenças de cada um, existe apenas sinalização de virtude, aprender de fato dá muito trabalho e os incentivos para isso dentro dos meios de comunicação que usamos são diminutos. O homem não busca a autonomia da mente, afinal isso requer muita coragem e desconforto para lidar com as próprias limitações e com o desconhecido, fato que não é conveniente para uma era de pessoas que tem acesso a uma quantidade inumana de prazer na palma da sua mão, por exemplo pornografia. Vivemos em uma era de extremo conforto.

Sendo assim, como poderíamos afirmar que existe doutrinação? O que existe é algo muito pior, que é um emburrecimento. Não formamos marxistas na universidade, formamos repetidores de chavões e slogans, de jovens que nunca leram uma linha de Marx. 

Não temos professores doutrinadores, pois estes não conhecem doutrina alguma, temos apenas repetidores histriônicos de frases prontas, que buscam a auto afirmação e pontos sociais. Em suma, não temos conteúdo a ser compartilhado ou combatido, temos apenas frases sem significado compartilhadas como se fossem conhecimento. Não são!

Todos são assim? Não, com toda certeza não, porém quando tratamos do problema da educação e olhamos o que foi proposto pelos críticos, temos um problema. Você realmente acha que o intelectual influenciado por Gramsci se quer ler Gramsci? Você acha que a militante feminista de cabelo colorido leu uma linha se quer de Simone de Beauvoir?

O próprio Olavo de Carvalho afirmou que “o tempo da doutrinação já acabou”. A questão aqui é entender que o problema da educação brasileira não está única e exclusivamente nas mãos de Paulo Freire, o problema é multifatorial e muito mais complexo do que parece-se ser pelo discurso da “doutrinação”.

Seria razoável supor que, retirando toda a bibliografia doutrinária, teríamos um sistema educacional melhor, porém o problema do Brasil não é o fato do aluno achar que a dialética marxista está correta. O problema é que o aluno não tem capacidade de diferenciar a letra A da letra B.


Gabriel Barros

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.

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