Ilusão e autoengano: a nova face do “era uma vez”

Ilusão e autoengano: a nova face do “era uma vez”

As aparências enganam

Minha mãe me conta um ditado que ela aprendeu com a minha bisavó: “por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento”, não sei se algum de vocês já ouviu isso, mas tenho certeza que conhecem o famoso jargão “nem tudo que reluz é ouro”. Pois bem, ambos passam a mesma mensagem: as aparências enganam. 

Nos últimos anos estamos sendo bombardeados com os inúmeros escândalos internacionais de pessoas sendo desmascaradas e, por consequência, perdendo todo o império que construíram sob uma mentira. Não faltam exemplos, como o de Elisabeth Holmes, fundadora da Theranos ou Anna Delvey (cujo sobrenome real é Sorokin), a história real por trás da série “Inventando Anna”.

Estou usando exemplos estrangeiros para falar de um assunto plenamente reconhecível por todos os brasileiros, não é o famoso “complexo de vira-lata”, até porque, temos o caso Patrícia Lelis como um bom exemplo. Minha intenção é que o leitor fique à vontade para trazer à sua memória os exemplos que bem entender, e eu me dou por satisfeita em não ter que escrever nenhum outro nome. 

Nossas mentiras de estimação

“O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas sim a ilusão da verdade” – Stephen William Hawking

O processo de criação de uma ilusão como a falsa herdeira Anna Delvey, ou a falsa invenção de Elisabeth Holmes são os mesmos, a última, inclusive, implementou um jargão comum no Vale do Silício: fake it until you make it, em tradução livre: finja, até que você consiga. 

Mas, como alguém investe numa empresa cuja invenção é tão secreta que nem mesmo possíveis compradores podem inspecionar? Como alguém pode acreditar numa herdeira milionária que “esqueceu a carteira”, ou sei lá qual era a desculpa esfarrapada que Anna usava? Afinal, parece tão óbvio que, enquanto escrevo, imagino alguns de vocês pensando: “é uma cilada, bino”! 

Na década de 1960, o psicólogo Peter Wason ofereceu uma possível resposta a esta pergunta e criou o termo “viés de confirmação”, isto significa que temos a tendência de aceitar as informações que reforçam as crenças que nós já temos. Desculpem-me, mas não posso me furtar de comentar: este termo explica aquelas pessoas que acreditam em toda e qualquer fake news do WhatsApp, por mais absurda que ela seja. 

O problema é que esta tendência de acreditar sem questionar nos aprisiona numa bolha que impede a entrada de novos conhecimentos, nos afasta uns dos outros, nos torna cada vez mais avessos ao diálogo com aqueles que pensam de forma diferente e, por consequência, torna a mudança e a evolução em resultados praticamente impossíveis. 

“Cada vez mais o monitor do nosso computador é uma espécie de espelho que reflete nossos próprios interesses, baseando-se na análise de nossos cliques feita por observadores algorítmicos” – Eli Pariser no livro O Filtro Invisível: O Que a Internet Está Escondendo de Você (Editora Zahar).

O ato de isolar-se de todos os que pensam de forma distinta nos torna irracionais ao ponto de perdermos a nossa capacidade crítica. É assim, aberto a qualquer baboseira que valide suas próprias opiniões, que você é enganado por escolha própria. Afinal, a mais importante característica de um debate é o confronto respeitoso que coloca duas ideias frente a frente e abre a possibilidade de que os debatedores saiam com um novo ponto de vista, ou pelo menos aperfeiçoes suas próprias teorias. 

Distração: o principal componente da ilusão

Quando vamos a um show de mágica, sabemos que aquele que se apresenta não tem realmente um poder sobrenatural, nem está realmente lendo nossa mente. Na verdade, na maioria das vezes os mágicos nos fazem olhar para um lado, enquanto a parte técnica do truque acontece do outro, quando você está prestes a perceber, o resultado te distrai novamente. 

Essas cortinas de fumaça nos fazem perder a atenção naquilo que realmente importa. Ouso dizer que nossa ambição e nossos desejos são as cortinas de fumaça mais comuns de todas. Vejam bem, a história contada por Elisabeth Holmes foi tão convincente e tornou seu produto tão atraente que ela enganou dois ex-secretários de estado dos Estados Unidos, George Schultz e Henry Kissinger, a ex-secretária de educação, Betsy DeVos, os donos do Walmart, o magnata Rupert Murdoch, dentre outros. 

Mas, a promessa de uma revolução na maneira de fazer exames de sangue era tentadora demais para deixar a “oportunidade” passar. Faltou a eles ouvir um velho ditado, mais um dos muitos que eu faço questão de conhecer e aplicar: “quando a esmola é grande, o santo desconfia”. 

Nós nos permitimos ser enganados porque, na remota possibilidade daquele enorme absurdo ser verdade, o lucro será grande, a festa será boa e todos sairão felizes. O problema é: absurdos como a Theranos e sua promessa ilusória têm consequências reais e sérias. Imaginem como estão os pacientes que acreditaram nesta mentira e receberam resultados falsos para seus exames, imaginem como se sentem aqueles que deixaram de ser medicados, ou os que tomaram remédios que não precisavam, por causa da mentira de uma jovem ambiciona e os bilhões dos investidores que acreditaram, de olhos fechados, em tudo o que ela disse. 

Nem todo mentiroso se arrepende

Anna Delvey está em prisão domiciliar em seu apartamento em East Village, Nova Iorque, de onde pretende iniciar um novo empreendimento, o reality show Delvey´s Dinner Club (tradução livre: O clube de jantar da Delvey). A intenção é receber convidados famosos para um jantar com ela, onde nenhum assunto é proibido. Agora é que a história fica boa, os convidados dos sonhos são: Elon Musk e Madonna. Podem rir, eu mesma tive uma crise enorme ao ouvir isso pela primeira vez. 

Depois de ganhar 320 mil dólares (R$ 1.6 milhões) da Netflix pelo seriado Inventando Anna, a moça mira ainda mais alto e, sabem de uma coisa? Muita gente vai assistir, e ela tem chances reais de ser bem-sucedida no novo empreendimento. 

Eu me recordo de ver uma entrevista de Anna ao 60 Minutes Australia, onde ela responde, com uma tranquilidade estarrecedora, que não se arrependia de nenhuma de suas mentiras, nem dos prejuízos que causou, afinal, parafraseando a resposta dela ao repórter: não eram pessoas muito inteligentes. Quem tiver coragem, e bom domínio de inglês, pode ouvir a entrevista neste link: https://www.youtube.com/watch?v=GQbNnUW_xqw 

Conclusão

Antes de jogar a cautela pela janela e aceitar qualquer informação que “diga o que você quer ouvir”, lembre-se que acreditar em uma mentira pode ter consequências devastadoras. Parte da beleza da liberdade é poder questionar, criticar e debater, de forma respeitosa, racional e inteligente. 

“O objetivo do ceticismo é entender como o mundo funciona. O mundo sempre será como ele é; não importa como queremos que ele seja. O problema é que nosso cérebro está programado para estabelecer crenças e reforçá-las como verdades absolutas, e não é assim que o mundo funciona. O objetivo da ciência é tentar superar essa tendência cognitiva a acreditar, essa tendência a acreditar em coisas nas quais queremos acreditar mesmo quando não existem evidências.” –   Michael Shermer, colunista da revista Scientific American e professor da Claremont University.

Você não é livre por acreditar em absurdos, pelo contrário, você está preso na bolha que escolheu entrar e se mantém neste cárcere por vontade própria. Não estou pedindo para que você desacredite em tudo, estou sugerindo que você tenha uma pitada de ceticismo, para o seu próprio bem. 


Suellen Marjorry

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.

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