Devaneios sobre Verdade e Mentira

Devaneios sobre Verdade ou Mentira

Ao longo de alguns meses decidi assistir a uma série conhecida por muitos e que fez grande sucesso durante seu período de transmissão, entre 2004 e 2012, Dr. House. 

Em suma, para quem nunca a assistiu, trata-se de uma série baseada na rotina comum de médicos comuns, porém aqueles que se destacavam eram escolhidos para integrar a equipe de um indivíduo extraordinário chamado Gregory House. Talvez seguindo o clichê, que por vezes tem seu fundo de verdade, ele, enquanto gênio da medicina, tinha diversos comportamentos, atitudes e raciocínios considerados distintos, por este motivo trabalhava especificamente com diagnósticos considerados impossíveis por outros profissionais.

Uma das bases do seu processo de diagnóstico era partir da premissa que todos os pacientes mentiam e nunca se podia confiar completamente em suas versões. Algumas dessas mentiras aparentemente não geram nenhuma consequência em si negativa, só cumpre a finalidade de consolar, porém outras escondem a verdadeira causa do problema de saúde, e pior, muitos desses pacientes tinham plena noção que poderiam correr risco de vida ao não dizer a verdade. 

Eis que termino a série e me deparo com uma leitura que descreveu todos esses aspectos que verifiquei anteriormente, o Sobre a Verdade do Harry Frankfurt. O livro versa sobre o conceito de verdade, como ela é encarada pela sociedade atual e, principalmente, sobre a relativização da mesma, enfatiza a importância da verdade para a construção de relacionamentos e a preservação da integridade pessoal.

Curiosamente o primeiro trecho que discorro aqui é o que relaciona diretamente com a série:

Ninguém em sã consciência iria confiar num construtor, ou se entregar aos cuidados de um médico, que não se importasse com a verdade. Mesmo os escritores, artistas e músicos precisam — a seu modo — saber como fazer as coisas direito. Pelo menos precisam saber como evitar errar demais.

Dr. House não via seus pacientes com frequencia, nem ao menos tinha uma primeira conversa com eles antes de começar seu diagnóstico, o que soava insensível para muitos, e de fato, é claro que ele poderia melhorar nesse aspecto, porém, o que os pacientes mais precisavam naquele momento era de um médico que os salvasse, que buscasse a verdade crua e resolvesse o problema, e nesse sentido ele cumpria a função. Logo, em momentos críticos, evidencia-se quem é competente para, não tem como fugir ou mentir, a verdade se revela transparente para todos que a quiserem ver. 

Ok, mesmo que a verdade seja crucial para digamos “partirmos de algum lugar”, este sendo de uma base concreta, por qual motivos as pessoas escolhem mentir?

Os motivos são variados, desde uma mentira que buscava ajudar um parente (a mãe dizendo a filha em estado terminal que tudo ficaria bem), alguém que detinha grande status e uma imagem publica (um cidadão exemplar que traiu a esposa e desviou verbas), outro que tinha um vício que nem os mais próximos sabiam. 

Embora levemos em conta a primeira opção desses exemplos, ninguém gosta de receber uma mentira, naturalmente nos sentimos enganados, tendo em consideração que impacta na nossa compreensão da realidade, além de aumentar nossa desconfiança frente aqueles que por vezes são os mais íntimos.

Mas isso sempre existiu, e mentiras muito mais sérias são contadas, principalmente ao passar para a esfera política, porém, muitas delas atualmente são camufladas pela dita verdade relativa.

A verdade relativa é a ideia de que a verdade pode variar de acordo com o contexto, a perspectiva e as circunstâncias, ou seja, que a interpretação da realidade é influenciada por fatores subjetivos.

[…] o ponto em que os pós-modernistas se baseiam especificamente é apenas o seguinte: o que uma pessoa considera verdadeiro é uma mera função do ponto de vista individual dela ou é determinado pelo que ela é levada a considerar verdadeiro por várias pressões sociais complexas e inelutáveis.

O que difere do conceito de verdade absoluta. Esta se baseia em uma realidade objetiva, unica e imutável, válida independentemente do contexto. Há princípios universais e inquestionáveis aplicáveis a todos, se relacionando com a moralidade e a ética.

Ora, os fatos pertinentes são o que são, independentemente do que possamos achar a respeito deles, e independentemente do que possamos querer que eles sejam. Tal é, com efeito, a essência e o caráter definidor da factualidade, do ser real: as propriedades da realidade, e por conseguinte as verdades sobre suas propriedades, são o que são, independentemente de qualquer controle direto ou imediato de nossa vontade. Não podemos alterar os fatos, tampouco, analogamente, podemos alterar a verdade sobre os fatos, apenas por um exercício de julgamento ou por um impulso de desejo.

Apoiar a teoria da relativização da verdade é muito perigoso para uma sociedade. Já que ao priorizar a verdade, a sociedade garante que suas escolhas sejam fundamentadas em informações precisas e confiáveis, permitindo a formulação de decisões estratégicas, logo, o contrário disso seria viver em uma ilusão governamental.

E não só isso, gera-se uma crise no contexto social, tendo em vista que a pessoas tem mais propensão a ter dificuldades para enfrentar desafios, a tomar decisões, gerando uma incoerência nas crenças e ações. 

Harry Frankfurt traz que sem a verdade é difícil formar opiniões corretas sobre as coisas e compreender a realidade ao nosso redor. Crenças errôneas não são úteis para lidar eficientemente com os desafios da vida, e a ignorância e falsas crenças podem piorar as circunstâncias de vida no longo prazo.

Ainda, nesse ponto, fugir da verdade é fugir da nossa natureza enquanto indivíduos.

Os seres humanos são, numa antiga definição, animais racionais. A racionalidade é nossa característica mais distintiva. Ela nos diferencia essencialmente de todas as outras espécies de criaturas.

Como dizia Renato Russo, mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira. E acrescento que levar os demais a uma falsa crença de auto enganação é consequência subsequente disso.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *