Fullmetal alchemist brotherhood e o demônio cientificista

Fullmetal Alchemist Brotherhood é uma das obras mais bem avaliadas dentro do campo de animações japonesas, a obra traz a aventura de dois irmãos, Edward e Alphonse Elric, em busca de recuperar seus corpos, após um fracassado experimento.

A obra apresenta várias questões interessantes de se abordar, como o valor da vida, por exemplo. Trata-se de uma daquelas peças de entretenimento com uma qualidade tão grande, que possibilita a reflexão daquele que a consome, em diversas áreas.

No presente texto, tentaremos ver como Fullmetal Alchemist Brotherhood lida com o problema da moral aplicada a ciência e as relações entre indivíduos, afinal de contas vale a pena ser bom? Devemos ser? Como isso se relaciona com a ciência, que a final de contas consta como neutra ou até mesmo amoral.

O demônio em forma de experimento científico

No sétimo episódio da primeira temporada de Fullmetal Alchemist Brotherhood nós somos apresentados a uma situação aterrorizante dentro do episódio, Shou Tucker, um alquimista federal, que é uma espécie de cargo de prestígio dentro do governo, precisa renovar a sua licença para manter o seu cargo, Tucker havia conseguido obter o título através de um experimento bem sucedido na criação de uma quimera.

Após inúmeros fracassos Tucker enfim consegue recriar uma quimera novamente, no entanto o seu sucesso tem um alto custo, levando a um dos momentos mais perturbadores dentro da obra, Tucker sacrificou a sua filha, Nina, uma criança inocente que nos é apresentada no episódio, para a criação de mais uma quimera, assim juntando os corpos de Nina e do cachorro de ambos, descobre-se também que a quimera anterior que Tucker havia feito, na verdade era a junção de sua esposa com outro animal.

Em suma, Tucker sacrificou uma doce e inocente criança para obter prestígio através da ciência, Nina ainda era um ser pseudo-consciente, no entanto sua humanidade foi muito deixada de lado, ela nada mais era do que uma aberração.

A ciência sem juízo de valor(?)

Edward Elric, ao perceber o que Tucker havia feito, acusa-o como imoral, afinal o resultado do experimento havia sido desumano, porém nesse momento Shou Tucker questiona Edward, com a seguinte afirmação: “Do que você está reclamando? O progresso da humanidade se deu através de inúmeros experimentos humanos não?”

Não é necessário dizer que Edward discorda de Tucker, porém ele fica sem argumentos para contrariar a afirmação dele, a grande questão é: porque Shou Tucker estaria errado? Afinal, por bem ou por mal, Edward sentiu-se enraivecido com Shou porque ele sabia que, no fundo, a afirmação se aplicava a ele, mesmo que as intenções de ambos em relação ao “progresso da humanidade” fossem distintas.

O que faz a ciência ser válida? Dentro do debate moderno, aparentemente o rótulo “científico” e a “ciência” viraram espécies de dogmas, no entanto seria correto dizer que a ciência deveria ocupar o espaço que hoje ocupa? Ou melhor, seria prudente afirmar que a ciência deve de fato ser “sem juízo de valor”? Além disso, seria essa uma possibilidade?

O paradigma da ética

Fullmetal apresenta esse tema por meio de diversos pontos de vistas, assim como Tucker e Edward, também temos personagens como Roy Mustang, chefe do gabinete de alquimistas federais, o superior de Edward Elric.

Roy apresenta uma visão pragmática e objetiva da realidade, onde a moral e a ética cumprem papéis importantes, no entanto a sua função tanto como soldado como homem do estado é de manter a ordem, Mustang é aquele personagem que faz o que é certo quando é necessário, por reconhecer existir uma linha que separa aquilo que é certo daquilo que é errado.

Mas qual a importância de Roy para o paradigma ético apresentado na história? Bom, ele protagonizou outra cena aterradora dentro do anime. Seu melhor amigo Maes Hughes havia sido morto pelo homúnculo Inveja, em uma das cenas mais marcantes e tristes do anime, que conseguiram arrancar lágrimas do soldado frio Roy Mustang.

Porém na reta final da história, finalmente ocorre o tão esperado confronto entre Mustang e Inveja, onde Mustang consegue vencer o combate com facilidade, no entanto dominado pelo ódio, ele é levado a uma sequência brutal de golpes contra seu adversário Inveja.

A cena é emocionante e mostra o personagem em um estado brutal de fúria e ódio, contrário a natureza ordeira e fria do personagem, Roy não apresenta nem um pingo de piedade para o cruel assassino de seu amigo, mesmo ele tendo conseguido vencer o combate contra ele de forma fácil.

Mas o que justificaria o assassinato brutal de alguém que já foi rendido?

O bem não faz ressalvas

O anime não apresenta uma resposta para isso, não existe justificativa para o mal, mesmo que ele pareça ser melhor, a resposta a Mustang é clássica e conhecida “Se você fizer isso, não será diferente dele” É o clássico dilema do vigilante, tão conhecido dos liberais, afinal “Quem vigia os vigilantes?”

Hayek argumenta no primeiro capítulo de O caminho da servidão, que o declínio da civilização ocidental se deu, dentre vários fatores, através do esquecimento e da extrema relativização de conceitos como “Justiça”, “Verdade”, “Bom” e etc. Não podemos nos deixar seduzir pelo conveniente, os princípios devem guiar nossas ações, pois do contrário a relativização ganha corpo, levando ao esvaziamento gradual do significado original do princípio.

Parece ser piegas, até mesmo moralista, no entanto é a dura realidade, o ser humano corrompe-se, até mesmo pela via do bem, lembrem-se do anjo do Senhor, conhecido na nossa cultura como Lúcifer, que teve sua queda decorrente do excesso da própria luz. Mustang é convencido de que o assassinato através do ódio não só não iria trazer seu amigo de volta, como iria manchar suas mãos de sangue, mesmo que Inveja merecesse a morte.

Compreende-se a natureza daquilo que é moral e ético através do ato de Roy, não necessariamente por meio de uma explanação filosófica, mas de forma objetiva, Roy não matou Inveja porque era errado e ponto final, no fundo ele sabia disso, o que nos leva a questão, o que diferencia Roy de Tucker? 

A moral da ciência 

Roy e Tucker tiveram uma escolha, ambos decidiram o futuro de suas almas quando decidiram o que iriam fazer, Roy escolheu o que é moralmente correto e Tucker o contrário, a ideia apresentada aqui é clara, a ciência amoral torna-se imoral.

A que custo tivemos tantos avanços no campo da genética? Bom, através de inúmeros experimentos realizados pelos nazistas com inocentes, a que custo temos avanços? Fullmetal nos apresenta uma visão muito concisa de que a ciência “juízo de valor” leva a consequências aterradoras, Mustang teve uma escolha que não se relacionava com o campo da ciência, mas seu impasse foi o mesmo de Tucker.

Mustang tinha justificativa para destroçar Inveja e mesmo assim ele reconheceu que o custo era alto demais a se pagar, a sua própria humanidade, Tucker por outro lado não tinha nenhuma justificativa para o que fez e mesmo assim ele o fez, seu destino foi selado no momento em que ele decidiu criar sua primeira quimera.

A moral importa

Tentamos nos esquivar dos valores e da tradição através da soberba, afirmando que nós conhecemos a verdade “científica” ou que tal método é “mais eficiente”, consideramos normal prender e trancafiar os cidadãos em suas residências pelo “bem coletivo” e porque a “ciência” disse que é melhor.

A ciência não é uma entidade, ela não apita sobre o bem ou sobre o mal, sem uma base moral muito bem estabelecida, a ciência pode caminhar para qualquer direção e frequentemente essa direção se aproxima muito mais do ideal de Shou Tucker do que de Roy Mustang, a humanidade pode ser muito mais perniciosa do que ela própria acredita.

Edward ao final da obra compreende isso, quando ele abre mão da sua capacidade de realizar alquimia para salvar o seu irmão, o poder que lhe permite interferir e manipular a realidade a seu favor, semelhante o que a ciência nos permite, seu sacrifício simboliza o triunfo da humildade, Edward entende que não importa quanta capacidade ele possui em manipular a realidade, ele não é Deus.

A compreensão de Edward permite que seu irmão seja salvo, quando nós abrirmos mão de tentarmos domesticar a realidade ao nosso bel prazer, entramos em harmonia com ela, salvamos nossa humanidade assim como Roy e evitamos nos tornamos com Tucker.


Gabriel Barros

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