Você defende o SUS?

Durante o período de vacinação contra a COVID-19, uma hashtag ascendeu nas redes sociais: a #defendaoSUS. De fato, muitas pessoas defendem o Sistema Único de Saúde adotado no país. Ironicamente, a maioria da população sequer conhece o funcionamento de tal sistema. Ao longo do texto, serão abordados aspectos pertinentes no que se refere à consolidação de um Sistema Único de Saúde no país e as repercussões disso. De um modo geral, os sistemas de saúde do Brasil são divididos em duas partes:

  1. SUS, o Sistema Único de Saúde;
  2. Saúde suplementar (planos de saúde).

Como a área da saúde era articulada antes do SUS

Na atual conjuntura brasileira, parece ser difícil imaginar o funcionamento das redes de saúde sem o SUS. O que poucos sabem é que o SUS é uma criação recente e só foi consolidado na década de 90, a partir da Lei Orgânica da Saúde, Lei nº 8.080, e a Lei nº 8.142. A primeira instituição médica brasileira, no entanto, era de origem beneficente, no século XVI. Apenas em 1808, cerca de 300 anos depois, o Estado promoveria alguma política pública de saúde.

No início da colonização brasileira, no século XVI, foram construídas as Santas Casas de Misericórdia pelo país, resultado de um esforço da Igreja Católica. Tais casas eram responsáveis por fazer caridade, cuidar dos enfermos e dar acolhida aos desabrigados e aos órfãos. Nesse contexto, a Santa Casa de Saúde era a única instituição que cuidava da saúde do povo e a ela dependia da caridade das pessoas. A situação melhorou um pouco quando em 1808 a família real veio para o Brasil. A partir desse período, foram formados os primeiros profissionais da área da saúde no Brasil, quando Dom João VI construiu escolas no Rio de Janeiro e em Salvador. Além de formarem profissionais, as instituições atendiam a população.

Durante o império, Dom Pedro II transformou as escolas, criadas por Dom João VI, em faculdades, e isso conferia título de ensino superior aos formados. Nesse momento, a evolução mais importante seria a implantação de uma estrutura de saneamento básico, com o objetivo de combater epidemias, como a febre amarela, a varíola, a malária e a peste bubônica.

Na primeira república, os governantes ansiavam apresentar ao mundo os valores da nova república, a partir de uma capital moderna e estruturada. Contrariando os planos, o Rio de Janeiro mal tinha saneamento básico e as pessoas ainda despejavam dejetos e lixo nas ruas da capital. Nesse contexto, o prefeito Pereira Passos recebeu verbas para reformar a cidade. Inclusive, tal reforma está intimamente relacionada ao surgimento das favelas no Rio. Para higienizar as ruas, o médico e sanitarista Oswaldo Cruz foi escolhido, o qual propôs obras públicas para implementação de esgoto tratado e a vacinação obrigatória contra a varíola. Sem dúvidas, a medida obrigatória e agressiva foi mal vista pela população, resultando em 1904 a Revolta da Vacina. Porém é perceptível, durante a primeira república, a maior articulação do governo para promover o cuidado com a saúde.

No entanto, durante a era Vargas, de um modo geral, o Estado passou a centralizar e concentrar mais o poder, esse comportamento não se restringiu à área da saúde. Neste período, as leis trabalhistas foram consolidadas e com elas determinados benefícios direcionados à saúde, tais quais: assistência médica, licença-gestante e segurança do trabalho. Em 1953, o Ministério da Saúde foi criado com o objetivo de levar assistência médica às populações rurais e organizar políticas públicas de saúde. Neste período, surgiram as Conferências Nacionais de Saúde, que foram o fundamento para a formulação do Sistema Único de Saúde brasileiro.

No período do regime militar, houve um aumento das epidemias e da mortalidade infantil. Nesse sentido, doenças como dengue, meningite e malária se intensificaram. Uma das medidas de controle foi a criação do Instituto Nacional de Previdência Social, que foi a união de todos os órgãos previdenciários que funcionavam desde 1930, com o objetivo de melhorar o atendimento médico. Na década de 70, durante o milagre econômico, as verbas para a saúde representavam cerca de 1% do orçamento geral da União.

A criação do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Ainda durante a ditadura, políticas públicas que envolveram as Secretarias Municipais de Saúde começaram a sua estruturação, e no final da ditadura, propostas da Reforma Sanitária foram reunidas num documento chamado “Saúde e Democracia”. As reivindicações do movimento que recebeu o nome de “Movimento Sanitarista” foram apresentadas na 8° Conferência Nacional de Saúde em 1986, que teve como tema: saúde como direito de todos e dever do Estado, formulada a partir do documento “Saúde e Democracia”. O relatório da conferência teve suas principais resoluções incorporadas à Constituição Federal de 1988, a qual foi o primeiro documento a colocar, de fato, o direito à saúde sob ordenamento jurídico, por intermédio das leis sancionadas sob o mandato de Fernando Collor:

  1. Lei nº 8.080: Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências;
  2. Lei nº 8.142: Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.

De acordo com a Constituição de 1988, a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado, mas o documento não deixa explícito como isto deverá ser realizado.

Mas afinal, o que é o SUS?

O Sistema Único de Saúde possui alguns conceitos importantes: o de sistema e a noção de unicidade. A perspectiva de sistema sugere um conjunto de várias instituições, dos três níveis de governo e do setor privado contratado e conveniado. Sob a lógica do sistema público, os serviços contratados e conveniados devem seguir os mesmos princípios e as mesmas normas do serviço público. Em teoria, os elementos que integram o sistema referem-se às atividades de promoção, proteção e recuperação da saúde. O SUS deve ter a mesma doutrina e a mesma forma de organização em toda a extensão territorial do país. Sob esse viés, é definido na Constituição um conjunto de princípios doutrinários e diretrizes organizacionais:

Princípios Doutrinários

  • Universalização: em teoria, a saúde é um direito de cidadania de todas as pessoas e cabe ao Estado assegurar este direito, portanto o acesso aos e serviços deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, ocupação, ou outras características sociais ou pessoais. * Como a universalização garante que todas as pessoas tenham acesso aos serviços, qualquer pessoa, de qualquer nação, pode ser atendida pelo SUS, mesmo que essa não faça parte da arrecadação de impostos. Para ilustrar, se o fulano John, nos EUA, quiser fazer tratamento para pneumonia no Brasil, ele terá livre acesso, mesmo que não gaste 1 real com o tratamento.
  • Equidade: em teoria, o objetivo desse princípio é diminuir desigualdades. Apesar de todas as pessoas possuírem o mesmo direito aos serviços, as pessoas não são iguais e, por isso, têm necessidades distintas. Em outras palavras, equidade significa tratar desigualmente os desiguais, a partir de mais investimento onde há mais carência, por exemplo. Para ilustrar, se a dona Maria, de classe média, aparecesse numa UBS com uma demanda X, e o Eduardo, com a mesma demanda, buscasse uma UBS, mas este vivesse em situação de rua, o segundo paciente teria prioridade sobre a primeira. Na prática, não é bem isso que acontece. Se a dona Maria conhecer o sobrinho do governador Y, ela, certamente, desfrutará de privilégios quanto ao acesso à saúde.
  • Integralidade: em teoria, o princípio considera as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades. Para tanto, é importante a integração de ações, o que inclui a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Em concomitância, o princípio de integralidade pressupõe a articulação da saúde com outras políticas públicas, com o fito de assegurar uma atuação intersetorial entre áreas que apresentam repercussão na saúde e qualidade de vida dos indivíduos. O que é observado na prática, no entanto, é que as ações de prevenção de doenças, no nível da atenção primária à saúde, costumam ficar em segundo plano. Qual é o resultado disso? Gastos vertiginosos e desnecessários com enfermidades que poderiam ser facilmente evitadas.

O SUS deu certo?

Segundo dados oficiais do IBGE, o sistema de saúde cuida de cerca de ¾ da população brasileira. Contrariando essa lógica, grande parcela da população utiliza o sistema de saúde complementar como fonte principal de acesso à saúde.

Como citado anteriormente, um dos princípios do sistema é a universalização. O termo é bonito, contudo a prática demonstra que isso não condiz com a realidade. Todos podem ser atendidos pelo SUS? Sim. A questão é que o tempo para que isso ocorra varia muito, geralmente em desfavor de quem mais precisa. Em maio de 2020, cerca de 550 mil pessoas, apenas no estado de São Paulo, estavam na fila de espera para realização de cirurgias. Infelizmente, o tempo é um fator crucial em se tratando de saúde. Um país continental, sem dúvidas, apresentaria inúmeras dificuldades a qualquer programa governamental que se propusesse a ser universal. Apesar da dificuldade absurda em promover saúde para os cidadãos brasileiros, o Estado se propõe a oferecer saúde para estrangeiros também. A pergunta é: como?

Outro aspecto relevante e preocupante em relação ao funcionamento do SUS é a ineficiente política de prevenção de doenças. Se o trabalho do nível de atenção primária à saúde tivesse sido realizado com êxito, muito provavelmente grande parte dessas 550 mil pessoas sequer precisaria de uma cirurgia. Entretanto, apesar da imensa quantidade de programas voltados à prevenção, os níveis de eficácia têm sido decepcionantes. Foi isso, inclusive, o que o Dr. Drauzio Varella afirmou em entrevista:

Os brasileiros não sabem o que é o SUS”, afirmou Drauzio. Para o doutor, os problemas de atendimento que afetam o sistema público de saúde estão relacionados a falhas em outros programas, que deveriam impedir que a pessoa necessite ir ao pronto-socorro. “A população fala: ‘O SUS é uma vergonha’. Vai para aquela fila do pronto-socorro ali, se você encontrar 10% daquelas pessoas que precisam realmente estar naquele lugar é muito. Porque o resto não funciona, o sistema não funcionou lá atrás. Não funcionou a Estratégia da Família, não funcionou a Unidade Básica de Saúde, não funcionou a UPA do local…

Dr. Drauzio Varella

Um grande mito em relação ao SUS é que o seu mau funcionamento deve-se ao teto de gastos. A Lei do Teto de Gastos, todavia, impôs um limite para o crescimento do gasto público, que crescia com uma velocidade colossal até 2015. É provável que, pela primeira vez na história do país, percebeu-se que determinadas escolhas na alocação dos recursos públicos faziam diferença; afinal, o dinheiro não cai do céu. Mesmo assim, o total repassado para a saúde não diminuiu com a entrada da regra do teto. Na realidade, o montante investido acabou sendo maior do que seria se a regra não existisse no período de 2017 e 2019. De acordo com a pesquisa realizada por Marcos Mendes, do Insper, com o teto, a saúde recebeu mais de R $9,3 bilhões a mais do que com a regra anterior.

Por outro lado, o desvio de verba parece ser um dos problemas mais pertinentes. As auditorias do Tribunal de Contas da União indicaram desvios de R$4,5bi por corrupção de 2002 até 2015. Com esse valor, seria possível construir 11 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS) para atendimento da população, levando em consideração que o decreto que deu origem à discussão fora motivado para resolução da questão da falta de recursos para finalização de obras em 4 mil UBSs, aquisição de equipamentos e contratação de pessoal.

O SUS não é gratuito

Infelizmente, a grande fábula do almoço grátis também estende-se ao sistema de saúde. Se você se arriscar a visitar o site da biblioteca virtual em saúde do Ministério da Saúde, você encontrará este trecho da publicação “SUS, a maior política de inclusão social do povo brasileiro” (disponibilizada na bibliografia deste artigo):

“Nesse contexto, a saúde passa a integrar o Sistema de Seguridade Social, garantindo a universalidade dos benefícios, independentemente do cidadão ter ou não contribuído, marcando o compromisso solidário do conjunto da sociedade. É uma política democrática e generosa, que produz empregos, distribui renda e que atende a todos os brasileiros e estrangeiros que transitam no país, sem exigir qualquer documento.”

Não causa surpresa imaginar que muitas pessoas acreditem que o SUS seja gratuito, uma vez que os próprios sites oficiais do governo propagam essa falácia. Quem são, então, o compromisso solidário e a política democrática generosa?

O “compromisso solidário e a política democrática generosa” ⇒ O financiamento do SUS é proveniente de recursos financeiros do Orçamento da Seguridade Social, além dos recursos da União, dos Estados, dos Municípios e de diversas outras fontes. Tais recursos são administrados em contas bancárias que constituem os Fundos de Saúde e estão sujeitos à fiscalização dos Conselhos de Saúde e dos Órgãos de Controle. Em outras palavras, o SUS é financiado com o “dinheiro público”, o dinheiro da arrecadação de impostos. Nesse contexto, é oportuno citar a célebre Dama de Ferro que foi a inspiração para o nome do clube, Margaret Thatcher:

“Um dos grandes debates do nosso tempo é sobre quanto desse dinheiro deve ser gasto pelo Estado e quanto você deve ficar para gastar com a sua família. Não nos esqueçamos nunca desta verdade fundamental: o Estado não tem outra fonte de recursos além do dinheiro que as pessoas ganham por si próprias. Se o Estado deseja gastar mais, ele só pode fazê-lo tomando emprestado a sua poupança ou lhe cobrando mais tributos. E não adianta pensar que outra pessoa pagará. Esse “alguém” é você. Não existe essa coisa de dinheiro público. Existe apenas o dinheiro dos pagadores de impostos.”

– Margaret Thatcher

Bibliografia

SUS – Sistema Único de Saúde: Tudo o Que Você Precisa Saber – Jairnilson Paim

Legislação do SUS: Esquematizada e Comentada – 4ª Edição, Sanar

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,com-teto-saude-ganhou-r-9-3-bilhoes-a-mais-do-que-com-regra-anterior-diz-estudo,70003378874

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/05/09/mais-de-500-mil-pessoas-estao-em-fila-de-espera-por-cirurgias-no-estado-de-sp.ghtml

https://cultura.uol.com.br/noticias/1025_os-brasileiros-nao-conhecem-o-sus-afirma-drauzio-varella-no-roda-viva.html

https://bvsms.saude.gov.br/

https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html

https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/saude-publica-no-brasil-sus?

https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/sus_principios.pdf

1 comentário em “Você defende o SUS?”

  1. Caramba, que exposição incrível!

    Literalmente o “fenômeno SUS” é algo que deve ser muito discutido, pois há muitas inverdades em volta do que ele realmente é.

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