“Tudo que o Partido reconhece como verdade é a verdade”

“É impossível ver a realidade se não for pelos olhos do Partido”, Orwell escreve esse trecho em um diálogo de ‘1984’ retratando algo fundamental dos movimentos totalitários, e o que os diferem dos demais, não apenas uma simples lealdade, e sim, aquela aplicada de modo total, irrestrito e incondicional; considerados os primeiros partidos realmente antiburgueses.

Stálin, por exemplo, aboliu as facções do partido, cessou qualquer tipo de oposição organizada que pudesse se contrapor a ele já por volta de 1930, reinterpretou os textos ideológicos de base e “brincou” com conceitos como quis, “o passado estava morto, o futuro era inimaginável”, de modo que para ser leal de fato ao Partido apenas “se repetisse a cada manhã o que Stálin havia dito na véspera”. ²

As ilusões democráticas

Para que movimentos totalitários se desenvolvessem e implementassem sua onda de terror, eles escancararam alguns pontos ilusórios democráticos, além de se aproveitar de instituições já desgastadas pós primeira guerra, além de uma desconfiança crescente de um pensamento de vanguarda. 

“Vivenciar tudo isso foi uma lição valiosa: ensinou-me como é fácil para a propaganda totalitária controlar a opinião de pessoas educadas em países democráticos.”

Uma das ilusões era que o povo participava ativamente da vida política, porém, o que foi perceptível perante o aumento da popularidade dos movimentos totalitários foi que as massas neutras ou indiferentes à vida política podiam facilmente ser a maioria. Somado a isso, acreditava-se que eles não seriam em algum momento mais do que um plano de fundo de uma nação democrática. Eis que essas pessoas foram recrutadas como membros dos movimentos nazistas e comunistas.

Uma Verdade pela Igualdade

Um “Ministério da Verdade” instaurado nos portões da União Soviética se erguendo, e depois consolidada, até as palavras ressoam com novo significado “Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força”. 

Embasado em um experimento que busca como propósito o mundo igualitário e próspero apoiado por uma massa, mesmo que fosse necessário no caminho destruir qualquer lembrança acerca de si mesmo. “O mais terrível triunfo do terror totalitário foi evitar que a pessoa moral pudesse refugiar-se no individualismo, e tornar as decisões da consciência questionáveis e equívocas.”

As construções gigantescas nas capitais russas e alemãs, fábricas construídas em pouco tempo, uma imagem que evidenciava a saída da crise, cidades pulsantes e mais investimento chegando, mas “a que custo?”, de onde vinha essa fortuna que sustentava o Partido e os amigos do Partido? 

A verdade, a busca por ela e toda a ética e moral que a rodeiam desaparecia e algumas perguntas não eram mais importantes, já que no fim (a Igualdade) supera a busca de respostas. Mas alguns percorreram caminhos tortuosos para responder a esses questionamentos e divulgá-los ao resto do mundo. 

Os Descartáveis

Para sustentar tamanha prosperidade e segurar esse valor de mundo igualitário, era necessário haver descartes, que podem facilmente desaparecer por discordarem ou simplesmente não serem o perfil do propósito traçado. Claro que  “todos os bichos são iguais, mas alguns bichos são mais iguais que outros” e ‘os mais iguais’ se vinculam ao Partido, seguem cegamente o que lhes é mandado, tentando parecer o mais leal possível e crendo em cada palavra dita.

O restante são os descartáveis, e historicamente ao se recordar deles, os que não eram “porcos”, podemos citar os ucranianos que mandavam seus grãos para Moscou e morriam de fome em seus celeiros durante o Holodomor, porque tiveram suas terras adentradas pelos “homens que tentaram substituir as leis naturais” ou os judeus levados aos campos de trabalho forçado e suas mortes escolhidas pelas mãos dos inimigos internos. 

O silêncio junto a destruição soviética e nazista

Mesmo diante de ações tão cruéis, o silêncio era a lei. O motivo é que, de modo gradual, o medo foi instaurado, as informações foram manipuladas e a vida privada destroçada. Isso a tal ponto que acabou com tudo que tinha existência autônoma. 

Complementar a perda do individualismo, valores como destruição e caos se relacionaram às ideias niilistas e mórbidas daquele século e a massa não mais se distinguia. Essas concepções e comportamentos eram refletidos nos nazistas que acreditavam que o mal, naquele tempo, tinha uma atração mórbida e os bolchevistas que diziam não reconhecer os padrões morais comuns. Portanto, 

Não foi de estranhar que, no dia seguinte, os porcos que supervisionavam o trabalho da granja andassem com chicotes nas patas. Ninguém estranhou saber que os porcos haviam comprado um aparelho de rádio, que estavam tratando da instalação de um telefone e da assinatura de jornais e revistas.  

ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. São Paulo. Companhia das Letras, 2007.

Com o controle de todos os meios de comunicação, as informações publicadas, e as propriedades já pertencentes ao todo, ou melhor, ao Partido, “Tudo lhes fora confiscado: e visto que essas coisas haviam deixado de ser propriedade privada, concluía-se que com certeza agora eram propriedade pública.”

Assim, o totalitarismo desempenhou seu papel junto ao Partido ‘O Grande Irmão’, sem questionamentos, tanto na vida da população como na política externa, conquistando e destruindo o que se via no horizonte. 

O primeiro suspiro perante um mundo diferente apenas se deu com a morte de Stálin, mas quantos ainda conseguem ver as consequências do que foi deixado por essas figuras históricas? Vejo que obras e análises de Orwell e Hannah ainda são necessárias, simplesmente pela razão que: em prol da igualdade de homens diferentes, o ser humano pode abandonar valores antes essenciais. 

“Desde os tempos antigos, a imposição da igualdade de condições aos governados constituiu um dos principais alvos dos despotismos e das tiranias, mas essa equalização não basta para o governo totalitário, porque deixa ainda intactos certos laços não políticos entre os subjugados, tais como laços de família e de interesses culturais comuns. O totalitarismo que se preza deve chegar ao ponto em que tem de acabar com a existência autônoma de qualquer atividade que seja, mesmo que se trate de xadrez.”

 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo. Companhia das letras, 2012.



Referências

1  ORWELL, George. 1984. São Paulo. Companhia das Letras, 2009.

2  ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo. Companhia das letras, 2012.

3 ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. Prefácio do autor à edição ucraniana (1947); São Paulo. Companhia das Letras, 2007.

4 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo. Companhia das letras, 2012

5 ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. São Paulo. Companhia das Letras, 2007.

6 MR.JONES. Direção: Agnieszka Holland. Distributed by: Kino Świat.Production companies: : Boy Jones Films; Film Produkcja; Kinorob. Produced by: Stanisław Dziedzic; Andrea Chalupa; Klaudia Śmieja-Rostworowska, 2019. Ukraine

1 comentário em ““Tudo que o Partido reconhece como verdade é a verdade””

  1. Pingback: Democracia, o deus que falhou(?) – Damas de Ferro

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *