O tema deste texto poderia facilmente ser tratado de forma simplista, com críticas rasas ou defesas imediatas. Afinal, muitos consideram senso comum haver uma forte doutrinação de esquerda nas escolas brasileiras. No entanto, acredito que a realidade seja mais complexa do que isso, e que existam nuances importantes que não devemos ignorar. Logo, este texto será longo, porém completo. Por isso, caro leitor, peço a sua paciência, para que possamos explorar juntos a situação que constrói a nossa Identidade Nacional.
Comecemos pelo elefante na sala: a maioria dos professores de humanas, tanto nas escolas de ensino básico quanto na academia, são de esquerda. E isso, por si só, não significa nada. Afinal, não é o posicionamento político de um professor que afeta a sua capacidade de ensinar, mas sim a sua habilidade (ou a falta dela) em separar o conteúdo a ser ensinado de sua ideologia pessoal. Eu mesmo fui ensinado por um professor de geografia que sabia fazer essa diferenciação, ao ponto que só fui descobrir o quão de esquerda ele era vendo suas postagens online depois que me formei.
Infelizmente, nem todos os professores são assim, havendo sim aqueles que usam de seu cargo para doutrinar ideologicamente seus alunos. Um exemplo fácil seria o influencer comunista Gaiofato, que era professor no renomado colégio Liceu Pasteur e publicamente admitia estar ensinando seus alunos com um viés comunista. O que chamou a atenção do Brasil, porém, foi o caso do Colégio Avenues, cuja mensalidade é de 15.000 reais. Um professor da escola havia convidado a índia Sônia Guajajara, candidata a vice-presidente pelo PSOL junto a Guilherme Boulos, para uma palestra criticando duramente o agronegócio. Quando um dos alunos, cuja família advinha do agronegócio, questionou os argumentos da palestrante, o professor interviu:
“Deixa eu te dizer uma coisa, meu querido. Quando você entender o que é ser uma pessoa deste tamanho, você vai se lembrar deste dia com muita vergonha. (…) Então a minha recomendação é: me respeite, porque sou um doutor em Antropologia. Não tenho opinião, sou especialista em Harvard. No dia em que você quiser discutir com a gente, traga seu diploma e a sua opinião fundamentada em ciência, aí você discute com um especialista em Harvard”.
Recebido por aplausos de parte dos alunos da sala, o professor Messias Moreira Basques Junior (que não tinha diploma em Harvard) ainda terminou sua aula dizendo “No dia em que o (nome do aluno) for convidado a se pronunciar nas Nações Unidas, a gente conta aqui”.
Ao invés de fomentar o pensamento crítico e o debate saudável, o professor se colocou acima do aluno e invalidou sua opinião sem proporcionar espaço para o diálogo ou o crescimento pessoal daquele aluno. A situação fica ainda mais constrangedora quando vista como o que ela realmente é: um adulto humilhando publicamente um menor de idade por ele ainda não possuir a mesma formação acadêmica. Formação essa que deveria estar sendo construída pelo próprio professor.
Este contexto me lembra da conclusão do texto “Não existe doutrinação na educação brasileira”, publicado por Gabriel Barros para o Instituto Damas de Ferro:
“Sendo assim, como poderíamos afirmar que existe doutrinação? O que existe é algo muito pior, que é um emburrecimento. Não formamos marxistas na universidade, formamos repetidores de chavões e slogans, de jovens que nunca leram uma linha de Marx. Não temos professores doutrinadores, pois estes não conhecem doutrina alguma, temos apenas repetidores histriônicos de frases prontas, que buscam a auto afirmação e pontos sociais. Em suma, não temos conteúdo a ser compartilhado ou combatido, temos apenas frases sem significado compartilhadas como se fossem conhecimento. Não são!”
Entretanto, essa conclusão está incompleta sem levar em conta duas nuances. Primeiro, apesar de existirem sim um grupo de professores nas escolas particulares que utiliza o ensino como ferramenta para transmitir sua ideologia, é um grupo tão minoritário dentre os professores que colocá-los todos nessa categoria seria uma difamação. E segundo, mais restrito às escolas públicas, está um outro elefante na sala que muitos ignoram: há um abissal desfalque de profissionais na área da educação.
Falando-se em português claro, ser professor é um trabalho muito estressante que não dá dinheiro suficiente para justificar tamanho esforço. É um trabalho onde apenas aqueles realmente dedicados a ensinar as próximas gerações tem vez (muitas vezes ouvindo que só são professores por não conseguirem encontrar profissão que pague melhor dentro de sua formação). Isso faz com que, via de regra, professores lecionem disciplinas para as quais não foram formados: profissionais de TI dando aula de Química, pessoas formadas em ADM lecionando História, etc.. É nestes casos onde ocorrem as maiores distorções e polarizações políticas que vemos na sala de aula, com o professor tentando preencher os conhecimentos que lhe faltam com sua posição política pessoal, num esforço para tentar levar educação ao maior número possível de jovens carentes.
A combinação destas duas nuances traz à tona um retrato real da área da educação no Brasil: há sim uma maioria de esquerda entre os professores, mas essa maioria só ganhou da direita por W.O. Afinal, sendo a direita focada no sucesso do indivíduo, há menos interesse em se formar numa profissão tão desgastante e que paga tão pouco. Os professores que de fato estão lecionando lutam por uma luta inglória, onde faltam recursos e pessoas capacitadas para ajudar na educação.
Ah! Então é esse desequilíbrio de professores de esquerda nas escolas que faz com que tenhamos problemas de revisionismo histórico, certo? Não. Infelizmente o buraco é mais embaixo.
Lembra de como Lula tinha o costume de começar suas frases com “nunca antes na história desse país”? Ao fazer isso, ele dividia a história do país em um período ruim antes de sua chegada; e o período petista, no qual a história nacional (supostamente) começaria de verdade. Bolsonaro fez o mesmo, assim como os militares, Getúlio Vargas, os pais da república, e muitos outros. Fato é que o Brasil é um país marcado por inúmeros golpes de Estado forçando novas interpretações de país, ao ponto de que nos acostumamos a reescrever nossa história conforme novos grupos chegam ao poder.
Mas calma, piora. Há uma última nuance faltando que amarra todas elas numa análise completa.
Sabe o orgulho que temos pelo futebol brasileiro? É o mesmo orgulho que um alemão sente por suas indústrias ou que um japonês sente por sua alta tecnologia. A identidade nacional de um povo é mantida não apenas pela memória dos acontecimentos passados, mas também pela forma como cada nação se reconhece como elite perante outras nações. E a elite brasileira, infelizmente, tem vergonha de ser brasileira.
O crescimento do identitarismo (cultura woke) no Brasil nada mais é do que a elite brasileira emulando a elite americana, importando valores estrangeiros para si e tentando eliminar os valores brasileiros com os quais não se identifica. Diga-se de passagem, não é a primeira vez que ela faz isso: ela fez a mesma coisa com a cultura francesa no início da República Velha, com um desejo tão forte por tornar o Brasil a França que promoveu até mesmo campanhas de “branqueamento da população”. É uma elite que, como descrito por José Murilo de Carvalho em seu livro “Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”, exclui o povo de seus processos de decisão.
Mas, chegados ao poder, do espírito de república guardavam no máximo alguma preocupação com o bem público, desde que o público, o povo, não participasse do processo de decisão. O positivismo, ou certa leitura positivista da república, que enfatizava, de um lado, a ideia do progresso pela ciência e, de outro, o conceito de ditadura republicana contribuía poderosamente para o reforço da postura tecnológica e autoritária. – Carvalho, p.34
Mas o povo não é bobo, então Carvalho também explica como o entendimento de abandono da população por sua elite está profundamente enraizado no resto da sociedade:
Havia a consciência clara de que o real se escondia sob o formal. Nesse caso, os que se guiavam pelas aparências do formal estavam fora da realidade, eram ingênuos. Só podiam ser objeto de ironia e gozação. Perdia-se o humor apenas quando o governo buscava impor o formal, quando procurava aplicar a lei literalmente. Nesses momentos o entendimento implícito era quebrado, o poder violava o pacto, a constituição não escrita. Então tinha de recorrer à repressão, ao arbítrio, o que gerava revolta em resposta. (…) O povo sabia que o real não era sério. Não havia caminhos de participação, a República não é para valer. Nessa perspectiva, o bestializado era quem levasse política a sério, era o que se prestasse à manipulação – Carvalho, p. 150
Sim. Isso significa que o “jeitinho brasileiro” nada mais é do que uma forma popular de resposta à sua própria elite, cujo desrespeito constante às próprias regras em benefício próprio ensinou a população a também desrespeitar pessoas que estejam seguindo quaisquer regras formais.
Temos, enfim, todas as nuances para uma análise completa e honesta do nosso problema: a história é uma narrativa formal dos acontecimentos do passado que formam uma identidade nacional. No entanto, a nossa elite brasileira tem vergonha da própria origem e tenta importar novos valores estrangeiros para substituir os nacionais. Em resposta, a população se reconhece como barrada da participação política e percebe as regras formais como nada além de um fingimento por parte da elite: a elite pode tudo, inclusive mudar as regras quando lhe convém (pode inclusive descondenar um condenado em 3ª instância pra elegê-lo presidente). Logo, nossa identidade nacional brasileira é formada pelo embate entre uma cultura artificial que tenta se impor de cima a baixo; e uma cultura popular que cresce organicamente de baixo para cima.
Disso, basta lembrar que o Brasil viveu diversas mudanças de regime ao longo dos últimos 136 anos. Nenhuma delas tendo o povo como protagonista e todas elas forçando uma nova identidade nacional que descarta todo o passado. Isso foi tão frequente que permanece como método até hoje na Nova República, com mandatários tentando reescrever a história para descartar o passado e fazer de si mesmos o início do Brasil.
Em outras palavras, a história no Brasil não é vista como um longo texto em que cada geração contribui escrevendo um pouquinho, mas sim como um conjunto de versões contraditórias competindo para ser a derradeira. O que foi escrito pelas gerações passadas é sempre apagado com borracha ou branquinho, enquanto o que é escrito pelas gerações atuais é sempre feito com letras cada vez mais fortes tentando impedir que o mesmo aconteça com elas.
Nisso estão imersos os professores, cujo dever é passar adiante os valores do passado e facilitar a compreensão dos acontecimentos atuais. Alguns irão se atentar a narrar essas versões históricas sem impor sua ideologia pessoal; enquanto outros irão ver-se como ferramenta política para que a sua versão seja aquela difundida nas novas gerações. De qualquer modo, são poucos os professores disponíveis e menores ainda os recursos dos quais eles dispõem.
Sendo a profissão de professor no Brasil tão inglória, isso afasta muitos dos profissionais de direita (que valorizam sua prosperidade individual) do caminho da educação. Como consequência, tornou-se fato que a maioria dos professores de humanas é de esquerda.
Isso significa que o revisionismo histórico que vemos muitas vezes nas escolas ocorre devido à um viés resultante da falta de presença significativa da direita entre os profissionais docentes, somada à falta de credibilidade da elite brasileira em oferecer uma narrativa de país coesa e contínua que possa ser transmitida adiante.
Há soluções já conhecidas para isso, como valorizar mais social e financeiramente a profissão de professor; aumentar os recursos disponíveis à educação básica; reduzir o número de alunos por sala; assim como aumentar o número de profissionais na docência, de modo que o consenso acadêmico seja mais equalizado ao centro político. Uma tentativa recente que vejo com bons olhos é o trabalho sendo feito pelo Movimento Brasil Livre (MBL) com sua Revista Valete, providenciando conteúdo de alta cultura com um viés à direita visando construir uma nova elite brasileira.
De fato, a permanência do MBL no discurso público tomando para si o papel de responsáveis pelo impeachment de Dilma impediu (ou ao menos retardou) o revisionismo histórico deste acontecimento como “um golpe político da direita para derrubar uma presidente que não cometeu crime algum”. Independente do que se pense deles, eles fincaram sua posição no chão e forneceram uma versão histórica concorrente à dos professores e à da elite brasileira.
Fizeram isso pois atuaram diretamente no processo de impeachment e querem preservar na população a memória do que viveram, numa resistência a um Brasil artificial sendo imposto. Houveram outros como eles no passado. Os artistas da Semana de Arte Moderna, por exemplo, valorizaram elementos brasileiros e demoliram culturalmente aquela elite de sua época que tentava transformar à força o Brasil na França.
Entende-se portanto o revisionismo histórico que vemos nas escolas como sintoma de algo maior: da fragmentação de nossa identidade nacional. Logo, não serão projetos como o Escola Sem Partido forçando uma interpretação dos fatos que resolverá o problema. A solução precisa vir debaixo para cima, com a formação de mais professores competentes em suas áreas e comprometidos a ensinar sem distorções. E isso, necessariamente, também precisa de uma mudança de cima pra baixo; com a substituição cultural da atual elite por uma que se reconheça brasileira e estabeleça um fluxo histórico coerente e coeso a se seguir.
É uma batalha em dois fronts, que irá sim demorar muito para ser vencida. O que podemos fazer até lá é lutar para manter viva a memória dos acontecimentos reais para fazer frente às tentativas de revisionismo históricos que vemos nas escolas e no debate público. Por mais difícil que isso possa parecer, valerá a pena.

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.