Junto de Joaquim Nabuco, um dos nomes mais lembrados pelo movimento liberal brasileiro é o de Luís Gama. Sua história é tão lendária que, tivesse ele nascido nos Estados Unidos, haveria filmes e filmes sobre sua vida. Para aqueles que ainda não o conhecem, porém, espero que este texto possa lhe apresentar o homem cujo nome é sinônimo de libertação.
Luís Gama nasceu em 21 de junho de 1830 em Salvador, Bahia, filho de um fidalgo português com uma ex-escravizada alforriada. Aos dez anos, porém, teria sido levado ao Rio de Janeiro e vendido como escravo pelo próprio pai, que estava endividado por causa de jogos, ao alferes e negociante de escravos Antônio Pereira Cardoso. A ideia era revendê-lo em São Paulo mas, como a Revolta dos Malês criou uma má reputação para escravizados baianos, ninguém quis comprá-lo.
Gama então permaneceria como escravo doméstico de Cardoso no interior paulista até os 17 anos, quando se alfabetizou e, fugindo para São Paulo, provaria sua liberdade.
Luís Gama, o libertador
A São Paulo de 1847 era muito diferente da que vemos hoje: apesar de ser a capital da província, ainda não tinha visto o crescimento urbano do século XX ou o boom do café de 1870. A única coisa que diferenciava-a das outras naquela época era a faculdade de direito do Largo São Francisco, onde Gama passaria anos estudando sobre as leis. A faculdade, claro, era racista e não aceitou a matrícula de um negro, mas Gama não ligou para isso e participou de todo o curso como ouvinte. Ao fim do curso, seu conhecimento jurídico se tornou suficiente para poder atuar na área mesmo sem diploma, e estava nascido um herói brasileiro.
Desde 1831, a lei dizia que qualquer escravizado que chegasse ao Brasil seria automaticamente libertado. A realidade, porém, era outra, e estima-se que cerca de meio milhão de africanos tenham sido trazidos ilegalmente para o Brasil desde então até a proibição do tráfico em 1854. Os senhores simplesmente continuavam a comprar e traficar escravizados ilegalmente como se a lei não existisse, como fariam mais tarde com os filhos de escravizados nascidos após a lei do Ventre Livre. Frente a isso, Luís Gama trabalharia judicialmente para libertar o máximo de escravizados ilegais que conseguisse sem cobrar nada em troca.
Sua história se tornou lendária ao ter protagonizado a maior ação coletiva de libertação de escravizados da história das Américas, na qual ele conseguiu judicialmente libertar 217 escravizados. Aos 29 anos, ele já era consagrado como o maior abolicionista brasileiro, se tornando também mais tarde um dos expoentes do romantismo brasileiro.
Luís Gama, o republicano
Na década de 1860, Luís Gama passaria a atuar também com jornalismo. Ele fundou em 1864 o jornal humorístico “Diabo Coxo”, mais tarde atuando também em “O Ipiranga”, “A República”, e no “Radical Paulistano”. Suas atividades como advogado e jornalista o tornaram um dos nomes mais famosos da pequena São Paulo da época, mas também lhe renderam tentativas de assassinato e ameaças de morte.
Era politicamente liberal e republicano, tendo até mesmo participado da fundação do Partido Republicano Paulista. Entretanto, rompeu com o Partido por ser contra a questão da indenização.
E note! A indenização era uma questão central para a abolição: os escravocratas tinham muito medo de que o Brasil passasse por uma guerra violenta como no Haiti e na Guerra Civil Americana, então lutavam para manter a escravidão como uma atividade legítima. Tendo eles de receber indenização pelos escravizados libertos, preservavam a legitimidade da escravidão e o argumento de que a abolição feria o seu direito de propriedade. Para Gama, a abolição tinha de ser não apenas imediata como também sem indenização para os escravocratas. Afinal, quem mereceria uma indenização seriam os escravizados.
Fora do Partido Republicano, ele teria fundado a Loja Maçônica América junto de Ruy Barbosa e atuado ativamente para a causa da abolição. No entanto, há algo importante da história de Gama que muitos liberais tendem a esquecer.
Luís Gama, o homem com a tocha
Luís Gama morreu em 1882 devido a problemas de saúde. Seu enterro foi o acontecimento mais importante de São Paulo à época: lojas foram fechadas, bandeiras foram hasteadas, e a população toda acompanhava o caixão em silêncio e respeito. O “amigo de todos”, como era conhecido, tinha de ser “levado por todos”. Discursos foram feitos em sua homenagem enquanto flores eram jogadas das janelas. Por fim, Antônio Bento faria toda a multidão jurar nunca deixar morrer a ideia pela qual combatera aquele gigante.
Este juramento era importante pois, para todos que o acompanhavam, sua morte poderia sim marcar o fim do sonho da abolição. Afinal, a atuação de Gama aconteceu principalmente nas décadas de 60 e 70, quando a abolição ainda era vista como um sonho impossível. E mesmo que a Confederação Abolicionista tenha unido uma maioria no Partido Liberal em torno dessa causa em 1884, nem eles imaginavam que esta poderia acontecer em 1888. A estimativa deles na época era de que a escravidão acabaria apenas em 1950, quando os últimos escravizados nascidos antes da lei do ventre livre morressem, e portanto lutavam para conseguir abolí-la até a virada do século.
Hoje sabemos os nomes dos abolicionistas que continuariam o legado de Gama na luta pela liberdade, como Joaquim Nabuco, André Rebouças, José do Patrocínio, João Clapp, Ruy Barbosa, e o próprio Antonio Bento. Para as pessoas que acompanhavam o caixão de Luís Gama, no entanto, morria ali o maior mito abolicionista do país, o único homem que poderiam depositar suas esperanças, sem ver seu sonho cumprido.
Luís Gama foi, acima de tudo, aquele pioneiro que carregou a tocha da liberdade quando ninguém mais conseguia, inspirando a sociedade e mantendo o sonho vivo para que a próxima geração pudesse enfim realizá-lo. Ele iluminou o caminho adiante durante a noite mais escura sem nunca saber se um dia veríamos o amanhecer da liberdade, entregando-a ao fim da vida nas mãos de Nabuco e da Confederação Abolicionista. Cabe a nós, que hoje carregamos a tocha, honrar seu legado e manter o sonho de um Brasil Livre.