Por que o liberalismo funciona? A excelente resposta de Deirdre McCloskey para esta pergunta

Por que o liberalismo funciona? A excelente resposta de Deirdre McCloskey para esta pergunta

Sobre a Autora

Deirdre McCloskey é uma professora norte-americana com interesse em assuntos muito diversos, que têm como alguns de seus temas principais, história econômica, principalmente do mundo moderno, filosofia e comunicação, língua inglesa, e obras clássicas. Entre as universidades em que leciona, ou já lecionou, estão a Universidade de Illinois Chicago e a Universidade de Erasmo de Roterdã. Seus principais assuntos trabalhados são a origem do capitalismo moderno e a validade da metodologia econômica tradicional, como Teoria dos Jogos e de equilíbrio, e testes econométricos de significância estatística, concluindo que possuem severas limitações.

A culminação de seu trabalho, em critério de popularidade, foi a trilogia ‘’Burguesa’’, publicada a partir de 2006: conjunto de três obras que afirma o papel das ideias liberais na consolidação do mundo moderno. Mais recentemente, lançou em 2019 o livro Why Liberalism Works? (‘’Por Que o Liberalismo Funciona?’’), em que explora novamente a influência, que considera essencial, daquelas mesmas ideias, que, alguns séculos atrás, colocaram a pessoa comum em pé de igualdade com a hierarquia tradicional. Este é o livro que é a principal referência para o presente artigo.

Virtude Positiva 

Uma das colocações mais importantes na defesa que McCloskey empreende a favor do liberalismo é a necessidade ética de princípios que garantam, não apenas o refreamento de ações imorais, mas a realização positiva das que sejam bondosas, laudáveis e altruístas. Ancorando essa dualidade ética – o deixar de praticar o mal, ao lado do fazer o bem – nos milenares princípios conhecidos como ‘’regras de ouro’’, ela reconhece que sempre existiram duas destas: a positiva e a negativa. Nesta, tem-se ‘’não faça aos outros o que não quer que seja feito a você’’, e naquela, ‘’faça aos outros o que quer que seja feito a você’’. 

A importância de, além de deixar de empreender as más ações, também levar a cabo as boas, está, afirma a autora, em ajuntar à paz ‘’neutra’’, em que a maldade não é praticada, um grau desejável de altruísmo, de atos solidários e caridosos, evitando um egoísmo confortável em que os indivíduos não interfiram, de modo antiético, nos assuntos do outro, mas também não preocupem-se em auxiliar, de modo generoso, os negócios alheios. 

    Desconsiderar essas virtudes positivas é um defeito que McCloskey imputa a grande parcela da corrente liberal, nos últimos duzentos e cinquenta anos, aproximadamente, de sua existência, sendo talvez uma explicação da mancha existente sobre a imagem do liberalismo, como a de uma corrente ‘’individualista’’ e indiferente à camada populacional de menor poder econômico. Ela urge a adoção daquelas virtudes. O liberal que destaca-se, em sua visão, por sua consideração de virtudes positivas, é o próprio fundador da causa: Adam Smith, que, em sua obra, advoga ‘’justiça, igualdade e liberdade’’, querendo implicar condições decentes de vida a toda a população.

Seguindo a autora, não se deve, entretanto, render-se ao exagero, e advogar uma preocupação com os assuntos alheios que atinja a qualidade de intervenção iliberal. Ao prezar a preocupação com a vida do outro, não se deve deixar-se levar, ao ponto de interferir sobremedida naquela, posição que, traduzida na defesa da intervenção estatal nos diversos aspectos da vida dos cidadãos, mostra-se, segundo McCloskey, irremediavelmente inútil ou prejudicial.       

Resistência e Ataque 

Atrás de si, o liberalismo enxergava uma resistência milenar defensora dos privilégios de certos indivíduos sobre outros; em frente a si, ele veio a enxergar um ataque inusitado apoiador da máxima igualdade de um indivíduo em relação ao outro. Do ponto de vista do liberalismo, aquela reação e esta radicalização não são os melhores caminhos para o que considera prosperidade e felicidade humanas. Um quer limitar demasiadamente a ação e invenção de grande número de indivíduos que, de outro modo, teriam (e tiveram, crê a autora) contribuições decisivas à civilização; o outro pretende interferir danosamente na liberdade de alguns para realizar uma igualdade que só poderia, de fato, ser alcançada por outros meios. 

A posição política refletora daquela resistência hierarquizante é o conservadorismo, dominante antes do século 18, que, segundo julga McCloskey, acredita que mudanças fundamentais na sociedade humana surjam espontaneamente, mas vê essa fluidez como uma força cujos resultados sejam deploráveis, e, assim, age para contê-los. O ataque equalizador, pretendendo futilmente forçar uma situação de igualdade, é representado pelas variantes estatizantes que ganharam força a partir do século 19, indo do comunismo ao chamado ‘’alto liberalismo’’ (liberalismo matizado por uma defesa de maior intervenção estatal). Apesar de diferenças essenciais entre tais variantes, elas têm em comum o julgar que mudanças fundamentais na sociedade não aconteçam por si próprias, mas que, sendo desejáveis, devam ser trazidas por esforço e, se necessário, conflito com as forças que julgam defensoras do privilégio.     

Uma das sugestões emergentes no texto da autora é a possibilidade de concepção da história do pensamento econômico, ao menos desde o surgimento do liberalismo, quando aquele pensamento se sistematizou em algum grau considerável, como um conflito entre a defesa da liberdade do mercado e a da intervenção estatal neste, ou, para colocá-lo de modo mais complexo e realista, como um espectro que varia da mais absoluta liberdade de mercado ao mais incondicional controle governamental, com os pensadores individuais inserindo-se em algum ponto nessa amplitude. McCloskey, naturalmente, vê a tendência à liberdade como a mais desejável e defensável. Uma de suas mais provocadoras observações coloca o critério do prêmio Nobel de economia como um que premia o apontamento de supostas ou reais falhas no livre mercado, sem exigir evidências de que tais falhas sejam relevantes o suficiente para justificar intervenção estatal, nem de que esta tenha capacidade de resolvê-las.   

Nova Mentalidade

É claro que o capital, como sugere o termo ‘’capitalismo’’, tenha sido necessário para que o mundo moderno tenha atingido o grau de riqueza que hoje se vê, diz a autora. Mas também o foram a água potável, o ar respirável, e certo grau de paz internacional. Essas são condições necessárias, sem as quais o mundo não teria se desenvolvido com a intensidade com que o fez. Mas são também condições presentes em outros períodos da história humana, sem que um desenvolvimento comparável ao moderno tenha ocorrido. 

Não foram o capital, nem aqueles outros fatores, insiste McCloskey, as causas motoras do desenvolvimento econômico moderno. O fenômeno responsável por trazê-lo foi uma profunda mudança ideológica, a partir da qual a pessoa comum, com todo o seu potencial inventor, passou a ser colocada no mesmo nível da balança com as classes detentoras do privilégio milenar. Essa reviravolta decisiva, também chamada de ‘’liberalismo’’, ou ‘’ideologia burguesa’’, termos tão depreciados na história recente, encorajou o indivíduo socialmente inferior em relação à aristocracia, nobreza e clero, pensando no quadro social ocidental, a dar livre curso aos seus empreendimentos e ideias, mudança que, em nível amplo, foi capaz de trazer à luz diversas invenções que, cada vez mais desenvolvidas e barateadas, não só descobriram novas funções e utilidades à humanidade, mas, ao longo do tempo, garantiram o acesso cada vez mais amplo a elas. 

Assim a autora julga que as principais invenções modernas, aquelas que os indivíduos em sua posse comumente enxergam como inseparáveis, não só de sua rotina, mas de sua identidade, tenham sido criadas. Isto é, a partir da confiança que a pessoa comum passou a ter de si mesma e de sua capacidade inventiva, confiança que, dados certos pré-requisitos, como capital acumulado, certa liberdade concorrente que haveria surgido por outros motivos, e outras condições necessárias, puderam liberar a criação e propagação de invenções revolucionárias.        

O Verdadeiro Avanço

Quanto à posse de ativos financeiros, a desigualdade entre as classes sociais pode até ter aumentado. O mesmo pode ter ocorrido com a renda recebida. Talvez o próprio consumo de bens e serviços demonstre, em relação ao passado, uma maior disparidade interclasse. Ao se analisar a desigualdade econômica, entretanto, tomar esses critérios como decisivos é uma atitude ilusória, acredita Deirdre. Não é o número de ações em posse dos indivíduos mais pobres, nem a renda que recebem ou o consumo que realizam, mas o consumo de artigos considerados essenciais à dignidade humana.    

A desigualdade econômica é aqui considerada como um fato necessário a uma sociedade livre, o mais importante sendo a condição absoluta dos mais pobres, e não a relativa. Assim, não importaria que, em posse de ativos financeiros, valor da renda recebida ou capacidade de consumo, os mais ricos da sociedade sobressaiam-se aos mais empobrecidos em 10, 30 ou 50 vezes, mas que estes tenham acesso a condições de vida decentes e a bens e serviços considerados essenciais ou convenientes. Buscar aniquilar a desigualdade, a autora determina, inevitavelmente traria apenas mais pobreza, dispondo, ainda por cima, de meios coercitivos. Não se deve procurar igualar economicamente os indivíduos, mas apenas elevar os mais desfavorecidos, e esse é o resultado que, conforme julga, o liberalismo trouxe nos últimos séculos, apesar de ainda existirem desafios em frente, pois jamais afirma que a pobreza desapareceu do mundo.

 Tais bens necessários a uma vida decente, suponho que a autora concederia, seriam os que tragam saneamento básico, meios de locomoção, alimentação e habitação, vestuário, entretenimento etc., e o esforço da política econômica, e sociedade em geral, deve ser procurar garantir esse acesso ao maior número de indivíduos, ou melhor, a todos eles.      

Crítica a Piketty

Esse é um dos erros que a autora imputa a um dos livros mais célebres dos últimos anos: Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, lançado na França em 2013, que estuda o desenvolvimento econômico de certos países considerados como desenvolvidos, durante os últimos três séculos, aproximadamente, e conclui que neles a tendência principal da desigualdade foi uma de agravamento. Deirdre não hesita em apontar, todavia, que Piketty atém-se a diversas pressuposições que na realidade seriam falsas.

Em primeiro lugar, assume uma definição demasiado estreita de ‘’capital’’, que o leva a considerar apenas os ricos como tendo posse do mesmo. O mais correto, em vez disso, McCloskey aponta que seria uma definição mais abrangente, incluindo tudo aquilo que gere retorno, como as habilidades dos trabalhadores e os bens de uso coletivo supridos pelo governo. Ambos esses modos de capital, nos últimos séculos, disseminaram-se às classes mais baixas, garantindo um acesso sem precedentes a tais tipos de recursos, que são reais em seu poder de produzir conforto e prosperidade na vida humana. 

Além disso, Piketty toma o quadro da sociedade capitalista e dos indivíduos em seu ápice como um mais rígido do que realmente é, afirma a autora. Na realidade, a abundância de recursos das classes mais ricas pode dissipar-se por sua falta de iniciativa e diligência, quando elas se abandonam à indolência e inatividade. Mas não apenas a preguiça desbanda fortunas: a competição econômica proporcionada pelo mundo moderno e as ideias que o sublinham frequentemente invertem o quadro social, premiando as invenções de maior qualidade e menor custo, sucateando as prévias fortunas, agora obsoletas.Apesar de Deirdre julgar que Piketty merece o crédito de não cometer alguns erros comuns, como prender-se a testes econométricos de significância estatística e à teoria dos jogos e de equilíbrio, cai ainda assim em um terceiro erro, que é tomar como critério mais importante o índice de Gini, medida padrão de desigualdade econômica. Mais importante do que a desigualdade econômica, que mede a situação relativa dos mais pobres, a autora considera que seja a condição econômica, que mede sua situação absoluta.  


*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.

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