O Caminho da Segregação

O Caminho da Segregação

Não muito tempo atrás, a Revista Trip publicou uma imagem com uma pergunta absurda: “Quantos negros você conhece que sabem nadar?” E ainda desafiou os leitores diretamente: “Faça a conta, escreva os nomes. Racismo, geografia e dinheiro explicam por que negros não podem aproveitar o mar”. 

O desdém com que ela desafiava o leitor a tornou motivo de chacota pela internet, afinal é muito fácil encontrar negros que sabem nadar no Brasil. Somos um país onde a maioria da população mora próxima ao litoral e, como se não bastasse, a presença negra na região é tamanha ao ponto de o ritual de “pular as 7 ondinhas” para Iemanjá ser uma tradição celebrada pelos brasileiros em geral durante o ano novo. 

A Revista Trip, que é voltada ao surf, deveria saber disso, então por que publicou esta imagem? Bem… a resposta para isso revela um problema real que chegou ao Brasil e rapidamente pode nos destruir como nação.

Argumento Enlatado

Tem um fundo de verdade no que a Revista Trip escreveu: as grandes lavouras de escravizados dos Estados Unidos ficavam nos estados do interior, de modo que as comunidades negras libertas também se concentraram nestas regiões e tenha-se criado lá o esteriótipo de que “negros não sabem nadar”. É uma realidade totalmente diferente da nossa, claro, mas que a pessoa escrevendo para a revista tentou importar para o Brasil como algo verdadeiro em qualquer lugar. 

Esses conceitos são importados pelos militantes identitários (conhecidos também como “lacradores/lacração”, progressistas, ou “cultura woke”), e outros exemplos que eles importaram para  a realidade brasileira são: o black face (prática de não negros pintarem seus rostos para representar negros, históricamente ofensiva nos EUA por terem sido usadas para representar estereótipos racistas) e a “n-word” (tradução de “negro” para o inglês, visto como tão ofensiva que simplesmente pronunciá-la já é considerado ofensa independente do contexto).

Note como são todos exemplos ligados à história americana, baseados em situações que nós não vivemos aqui no Brasil, e que isso é um problema gigantesco. Afinal, vivemos sim num país que tem um fortíssimo e profundo racismo. Se nos preocuparmos tanto em importar problemas de lá, quando iremos realmente entender os problemas daqui? Além disso, não podemos esquecer quem nós estamos tentando imitar.

É Proibido Amar

Diferente do Brasil, onde os colonizadores portugueses eram aventureiros solitários, os colonos ingleses iam aos Estados Unidos já com suas famílias e, como resultado, se miscigenaram com a população nativa e de ex-escravizados muito menos do que nós. Vale lembrar, inclusive, que os Estados Unidos tinham leis anti miscigenação proibindo casamentos interraciais até 1967. 

Em 1965, quando essas leis ainda existiam, a população dos EUA era formada por 84% brancos ingleses, 11% de negros, 4% de hispânicos, e menos de 1% para todos as outros. Era uma realidade onde apenas 5% da população era sequer a favor de casamentos inter raciais, e a ideia de mestiço simplesmente não existia. 

E não, eu não digo no sentido de ser raro. Eles simplesmente não conseguiam conceber a ideia de um mestiço. Quando iam fazer o censo, a legislação dos EUA tinha a chamada “lei da uma gota de sangue”, onde bastaria ter um único ancestral negro para ser considerado negro. Indo além, apenas os de descendência inglesa ou do norte da Europa eram considerados “brancos”, com imigrantes como italianos, irlandeses e pessoas do leste europeu sendo classificados como uma etnia à parte apesar de sua cor de pele e sofrendo grande preconceito do resto da população.

Logo, a realidade norte-americana era marcada pela segregação, com cada grupo étnico criando sua micro comunidade e identidade cultural isoladas, tendo até mesmo sotaques diferentes. Como se não bastasse, essa segregação e preconceito eram tão profundas que eram validadas por lei.

Estados Unidos: A Terra dos Livres, dos Bravos, e do Racismo

O lendário abolicionista e historiador brasileiro Joaquim Nabuco chegou a visitar os Estados Unidos, afirmando em sua biografia que “a escravidão no Brasil é uma fusão de raças; nos Estados Unidos, é a guerra entre elas.”(NABUCO, 2019). 

Fusão entre as raças? Que história é essa? Bem…que fique claro: Nabuco não está dizendo que o Brasil é um país sem racismo onde todas as raças convivem juntas. Ele compreendia muito bem o enorme racismo da nossa sociedade e a dificílima batalha para a abolição, afinal ele foi um dos que mais a combateu em nossa história. Nabuco diz o que diz porque nossa abolição foi resultado de décadas convencendo toda a população, enquanto a norte americana foi através de uma guerra sangrenta forçando os senhores de engenho a libertarem seus escravizados. Em outras palavras, ele não nega que exista um enorme racismo no Brasil, e sim afirma que nos Estados Unidos é muito, muito pior.

Aqui no Brasil, justamente pelo caráter aventureiro do imigrante português e pela inaceitável abolição gradual, já tínhamos uma presença de mestiços desde antes das campanhas de embranquecimento da população. E isso não se restringia apenas a pessoas das classes baixas, como os mestiços Dragão do Mar, José do Patrocínio, e Luís Gama; mas também entre nomes prestigiados pela oligarquia brasileira, como Rui Barbosa e Machado de Assis. 

Além da forte e esperada presença das resistências negras, advinda tanto de fugidos e rebeldes quilombolas, tivemos na década de 1880 uma enorme massa de  jovens, jornalistas, magistérios e padres trazendo o tema ao debate público e convencendo cada vez mais pessoas ao seu redor até que o tema se tornasse inevitável. A festa no dia da nossa abolição foi registrada por Machado de Assis como uma das maiores celebrações já vistas no país, apesar de termos falhado em trazer boas condições de vida aos recém libertos. Não tanto tempo depois, em 1909, teríamos em Nilo Peçanha o primeiro presidente negro do Brasil, e cuja popularidade criou o nilismo, primeiro movimento personalista do Brasil, quase 100 anos antes da eleição de Barack Obama nos EUA. 

O mesmo não aconteceu nos Estados Unidos, onde a abolição foi um resultado obtido à força por uma sangrenta guerra civil. Havia uma enorme quantidade de pessoas que simplesmente não conseguia aceitar a nova realidade. O STF deles até criou a doutrina do “separados, porém iguais” (separate but equal) para permitir que as pessoas pudessem ser segregadas publicamente apesar de terem direitos iguais perante a lei.

Essa segregação foi feita pelas chamadas leis Jim Crow, que proibiam legalmente a convivência entre brancos e negros em, dentre outros, ônibus, restaurantes, banheiros, e até mesmo bebedouros! Sim. Os Estados Unidos tinham até mesmo bebedouros só pra brancos e só pra negros. Foi uma realidade sofrida pelo nosso lendário abolicionista negro André Rebouças ao visitar os EUA, onde o hotel em que ele e sua comitiva iriam ficar se recusou a recebê-lo.

Além disso, havia também táticas para impedir que a população negra tivesse voz, dificultando a criação de documentos para que eles não conseguissem votar. Como resultado, ainda hoje existem negros nos EUA sem qualquer documento de identidade oficial, e a ideia de precisar mostrar um documento como o RG para votar é vista como racista. 

Essas coisas todas começaram a ter fim na década de 60, com o movimento dos direitos civis dando fim às leis Jim Crow e de casamento inter-racial. Entretanto, o ponto aqui é: sabendo o quão pior foi a história da discriminação racial norte-americana, vale mesmo importarmos os conceitos de racismo de lá? O Egito achou que não, e está processando a Netflix em 2 bilhões de dólares.

A Monocultura Americanizada

Em 2023, a Netflix lançou um documentário sobre a rainha Cleópatra, retratando-a como uma mulher negra e gerando uma enorme revolta no povo egípcio. Isso porque, apesar de africana, Cleópatra era grega, da dinastia ptolomaica. Mais do que isso, os egípcios de sua época não eram o que entendemos na América como negros pois, desde antes da invasão árabe, os africanos do norte da África (berberes) eram muito mais próximos étnicamente e em cor de pele com pessoas do oriente médio. 

Muitos egípcios chegaram até a acusar a Netflix de fazer “blackwashing” da história de seu povo, afinal, se coloque então no lugar dos egípcios: é esperado que um documentário apresente apenas fatos históricos, mas o documentário da Netflix substitui a etnia do povo egipcio e de sua líder mais famosa pela do negro retinto norte americano.

Os acontecimentos desse filme contém uma enorme falsificação dos fatos históricos e é um grave insulto aos antigos egípcios. Essas não são minhas palavras, mas as palavras de personalidades acadêmicas, especialistas de egiptologia e arqueologistas y

– Mahmoud Al-Semary

Isso não é nem de longe um caso isolado, pois essa substituição é a regra em produções identitárias, incapazes de ver o mundo para além da luta entre o branco americano loirinho de olho azul e o negro americano retinto. Outro exemplo disso foi o recente vídeo educacional da BBC “sempre estive aqui”, onde um negro retinto se veste como, entre outros, homem das cavernas e soldado romano (lembra que eles não consideram italianos como brancos?) para dizer que os negros retintos sempre foram parte da Inglaterra desde antes dos brancos ingleses. Tivemos um caso desses também aqui no Brasil com o filme Marighella, de Wagner Moura, tendo como o ator para o guerrilheiro, que era mestiço entre pardo e italiano, o Seu Jorge, um negro retinto. 

Na foto acima temos o guerrilheiro brasileiro Marighela, a rainha Cleópatra, Jesus Cristo, e um soldado romano ocupando Londres. Cada um deles tem à esquerda, uma foto de como realmente eram ou de reconstruções etnicamente fiéis; enquanto, à direita, representações dessas personagens históricas em obras de arte identitárias. 

O motivo disso é simples: os produtores desses conteúdos são pessoas que acompanham a cultura americana profundamente, então substituem as etnias dos personagens pela de negros retintos pois essa é a etnia do negro norte americano. Em outras palavras, estão abandonando a própria cultura local e produzindo obras que dialoguem com a cultura da qual realmente se sentem parte.

Como resultado, outras culturas e etnias que não as norte-americanas acabam por ser apagadas, substituídas por uma monocultura global que tenta imitar e assimilar a cultura americana como universal. Essa é uma realidade que, infelizmente, estamos vivendo no Brasil numa velocidade preocupante.

A Crueldade da Indiferença Cultural

Em 2022, quando ainda era universitário, minha universidade recebeu um comício do Lula, e pude notar que grande parte da audiência era formada por jovens progressistas identitários. Enquanto ele não chegava, esse público assistia apresentações dos diversos grupos de esquerda ali presentes. Após diversas palestrantes do movimento negro, eis que uma velha senhora de esquerda toma a palavra e dá um testemunho do qual nunca irei esquecer.

Ao começar a falar, ela começou dizendo “eu sei o que vocês estão pensando: quem é essa mulher branca discursando no palco? Acontece que eu sou nordestina, e a luta do meu povo é muito dura e sofrida (…)”.

O fato de ela sequer ter precisado pronunciar essas palavras antes de começar seu discurso é um escândalo indescritível, uma crueldade que expõe o perigo que já estamos vivendo como nação.

O coração da cultura brasileira desde o início da república é a cultura nordestina. E não havia uma única pessoa que, cinco anos atrás, desconhecesse a luta desse povo sofrido, tão bem descrita por Nossa Senhora Aparecida na peça “Auto da Compadecida”:

João (Grilo) foi um pobre como nós, meu filho, que teve que suportar como nós a dificuldade de uma terra seca e pobre como a nossa. Pelejou pela vida desde menino. Passou sem sentido pela infância; acostumou-se a pouco pão e muito suor. (…) Passava fome. E quando não podia mais, rezava. E quando a reza não dava jeito ia se juntar a um grupo de retirantes que ia tentar sobreviver no litoral. Humilhado. Derrotado. Cheio de saudade. E logo que tinha notícia da chuva, pegava o caminho de volta; animava-se de novo como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a chuva. E quando revia sua terra, dava graças a Deus por ser um sertanejo pobre, mas corajoso e cheio de fé.

– O Auto da Compadecida

O drama de João Grilo era também o drama de Fabiano e sua família tendo de sobreviver na seca, forçados a matar sua cachorrinha Baleia quando ela não aguentava mais continuar; de Severino cruzando a caatinga e vendo a morte de inúmeros outros Severinos enquanto sonhava em chegar ao litoral, apenas pra descobrir que lá não teria espaço para ele e que a única parte que lhe caberia num latifúndio seria a de uma cova, nem grande nem funda, com palmos medida; ou até mesmo dos Capitães da Areia que, quando foram ao Grande Carrossel com a ajuda do Padre José Pedro, puderam esquecer-se por um instante de que não tinham nem família, nem dinheiro, e que eram vistos como ladrões. Eram, mais do que nunca, apenas crianças sobre o brilho das luzes do Grande Carrossel. 

Tudo isso. Todas essas histórias. Toda a nossa cultura e memória. Apagada. A senhora nordestina ali falando era uma mera relíquia do passado falando para uma geração incapaz de ver o mundo fora do conflito importado dos EUA entre brancos e negros. Para eles, que consomem e assimilam apenas a cultura americana, ela era só mais uma branca. Uma privilegiada (?!) que deve ter tido tudo pronto na vida.

Brasil: o País do Vira Lata

Um desses conceitos importados que mais rapidamente assimilados no Brasil é o do racismo estrutural (systemic racism), teoria proposta pelo filósofo negro Silvio Almeida e tida hoje quase como um consenso midiático e político absolutos. De acordo com essa teoria, o racismo seria uma característica inerente e enraizada nas estruturas sociais, econômicas e políticas de uma sociedade. E, por conta disso, ele poderia ser perpetuado por sistemas, políticas e instituições que, mesmo sem a intenção direta de discriminar, acabam criando desigualdades sistêmicas com base na raça. 

Em outras palavras, essa teoria prega que, antes de existirmos como indivíduos, existiríamos coletivamente como a nossa etnia, de modo que nossas ações perpetuariam o racismo mesmo que involuntariamente. Ele não estaria num comportamento (errado) das pessoas, mas sim na própria existência delas dentro desse sistema. E é por isso que sempre encontrará identitários começando suas falas com “eu como um homem branco”, “eu como mulher negra”, etc..

O professor de filosofia negro Paulo Cruz vê motivos para que essa teoria importada seja tão rapidamente difundida. Afinal, vivemos num país onde vemos os brancos nas principais posições de poder e os negros nas posições mais precárias. Como não achar então que o sistema foi enraizado no racismo? Para o professor Paulo Cruz, porém, a resposta não é essa, propondo ao invés disso que vivemos numa cultura da subalternização do negro.

Em outras palavras, o que ele propõe é que nosso Estado não conseguiu fornecer as ferramentas necessárias para integrar a população recém liberta pela Lei Áurea (muitas vezes inclusive atuando contra), de modo que a discrepância racial permaneceu por 135 anos e nós, como povo, associamos culturalmente os negros a posições precárias. 

As duas teorias soam parecidas. E como não soar? Afinal é uma realidade que negros estão entre os mais parados pela polícia a noite, morrem mais devido a violência, ganham menos do que brancos, são escolhidos para menos cargos de trabalho, e tem sua presença em locais de classe alta contestados: sejam em festas caras, shows de música, teatros, ou quaisquer grandes eventos, a mera presença de uma pessoa negra causa desconforto no meio, como se ele não pertencesse ali. Pior ainda, há quem os pergunte “se eles trabalham ali”, pois “é o único motivo concebível” para ter uma pessoa negra naquele local. O racismo no Brasil existe, é grande, e, mais que errado, é inaceitável. 

Ainda assim, Paulo Cruz enfatiza que a diferença entre essas duas teorias “não se trata somente de uma rusga semântica, nem de dar um nome diferente ao mesmo fenômeno, mas de um modo de compreensão da realidade”. Isso porque a teoria do racismo estrutural considera o racismo um sistema irreversível e independente das atitudes das pessoas. Um conflito racial eterno similar à luta de classes marxista. 

(…) é possível concordar ou discordar [do racismo estrutural]; é do jogo. O problema é quando se torna a regra geral e absoluta a que as pessoas recorrem para interpretar o racismo no Brasil. Porque se todos aceitarmos a teoria, seremos obrigados a aceitar a solução, como proposta pelo mentor de Sílvio Almeida, o jurista marxista Alysson Mascaro: “a solução para o racismo estrutural é a revolução”. Paulo Cruz, em artigo para a Gazeta do Povo

A consequência lógica disso é uma só: segregação. Nega-se a priori que brancos e negros possam coexistir ou conviver como um mesmo povo, e estimula-se que se separem cada vez mais assim como é nos Estados Unidos. Prega-se que essas relações nunca irão mudar, erguendo muros de preconceito entre as etnias para que a única solução seja a guerra racial. 

Dizer isso sobre o Brasil é tão ridículo quanto dizer que os negros brasileiros não sabem nadar.

Se dissermos que o racismo é uma estrutura, temos que mostrar qual é a interdependência dos elementos. Aí você diria que, quando se vai selecionar alguém para um emprego, só brancos são selecionados. Mas a estrutura é formal, tem uma forma escrita ou uma forma de costumes que é reconhecida por todos. A discriminação racial no Brasil não é reconhecida por ninguém. Nenhum Estado ou governante se diz racista. Às vezes, os racistas mais atrozes diziam que não eram racistas – sociólogo Muniz Sodré em entrevista à Folha

Temos sim um milhão de problemas. Temos sim um país pobre que tem sim muito racismo e muitos racistas. Não vivemos numa democracia racial. Mas, apesar de tudo isso, nós não temos nem de longe a segregação racial crônica dos Estados Unidos. Diferente dos Estados Unidos, onde as comunidades étnicas formaram sub culturas isoladas, mais da metade dos brasileiros são mestiços. Nossa miscigenação é tão forte que as definições de branco e negro mudam de acordo com o estado em que a pessoa está e, às vezes, as etnias não são iguais nem entre irmãos. Além disso, nós miscigenamos ao ponto de muitos dos nossos mestiços não se identificarem nem como negros nem como brancos, mas sim algo novo. 

Parte do monumento aos bandeirantes de Santana de Parnaíba. Intitulado “O Nascimento do Povo Brasileiro”, representa um pai europeu e uma mãe indigena celebrando o nascimento de seu filho caboclo, um brasileiro 

 Investimos nisso, criando inclusive termos para distinguir nossos tipos de mestiço, com “mulato” sendo o mestiço entre branco e negro; “caboclo”, “mameluco”, ou “cariboca” entre branco e indígena; e “cafuso”, entre negro e indigena. Indo além, criamos também comunidades multiétnicas formadas pela mescla dessas três etnias, como os caiçaras no litoral e os caipiras no interior, formando uma nova cultura coletiva da fusão dessas três.

E mais: nossa integração cultural é tão forte que até mesmo os imigrantes japoneses, conhecidos mundialmente por se manterem em comunidades isoladas, se integraram à cultura brasileira adotando novos nomes nacionais; para não falar também da nossa integração ter eliminado as distinções étnicas entre brancos.

Pera…. oi? Distinções étnicas entre brancos? Sim. Já parou pra pensar que nossos três últimos presidentes foram Jair Bolsonaro (descendente de italianos), Michel Temer (descendente de libaneses), e Dilma Rousseff (descendente de búlgaros)? Nenhum desses três seria considerado branco para padrões norte-americanos, e sua chegada ao cargo de presidente deveria ser fortemente marcado pela herança cultural da sua comunidade imigrante, mas sequer conseguimos notar uma diferença. Vemos apenas três brasileiros brancos. 

 Isso tudo vem se perdendo com a chegada da monocultura: importando dos EUA a regra da uma gota de sangue, consideram qualquer mestiço um negro. Os termos para distinguir mestiços foram então gradualmente sendo apagados e substituídos ou por “negro” ou por “negro de pele clara”. Pior, fazem manifestações com faixas de que “miscigenação é genocídio” e criaram até mesmo uma palavra pejorativa nova, “palmitagem”, para repreender negros que se envolvem romanticamente com brancos. Logo, mais do que apenas importar as maneiras norte-americanas de se combater o racismo, os identitários acabam importando também as relações sociais de lá, onde o problema é muito mais grave do que aqui.

Faixa de “miscigenação também é genocídio”, erguida durante a 14ª marcha da consciência negra 

 

Percebe-se então como a monocultura identitária alega promover uma maior igualdade a todos os grupos oprimidos, mas tem sua base na segregação. Ainda assim, o novo rótulo forneceu aos identitários mais uma palavra em comum com as pessoas a favor da miscigenação, e eles a exploraram ao máximo. Mesmo que o termo fosse empregado com um sentido diferente pelos dois grupos, poucas pessoas perceberam, e menos ainda se perguntaram se as duas formas de igualdade prometidas (a que pede por tratamento igual e a que pede por segregação) poderiam realmente coexistir. Sem dúvida, a promessa de uma maior igualdade tornou-se uma das armas mais eficazes da propaganda identitária, criando a crença de que o seu desejo de igualdade era autêntico e sincero. Mas essa crença apenas intensifica a tragédia que vivemos quando fica demonstrado que aquilo que nos prometiam como o caminho da igualdade era na realidade o caminho da segregação.

A Tragédia Identitária 

Sérgio Renato da Silva Júnior, o Jota Junior, é um militante negro de direita sulista que ficou conhecido em todo país quando Álvaro Hauschild, um aluno branco de doutorado em filosofia na UFRGS, mandou mensagens para a namorada branca de Jota pedindo para que terminassem. Álvaro, que era de esquerda, demonstrou em suas mensagens um racismo muito mais intenso do que muitos estão acostumados: dizendo a ela que “merecia alguém melhor” e chamando-a de descendente de vikings, ele afirmou que ela deveria pensar nos filhos que teria caso largasse-o por um homem da cor dela. Indo além, ele afirmou que os negros exalavam um “cheiro típico” e que as mulheres sempre foram muito protegidas contra influências de estranhos, sobretudo negros.

Quando as pessoas dizem que vocês são ‘iguais’, elas no fundo sabem que não são e estão tentando esconder a vergonha que tu passa com esse energúmeno. No mais, pensa nos teus filhos. Tu quer que sejam bonitos, harmônicos de corpo e alma como tu? – Álvaro Hauschild à namorada de Jota Junior

Essa incapacidade de aceitar a miscigenação não é um caso isolado, com personalidades como Thiaguinho, Rael e Emicida também sendo acusados de “palmiteiros” ao aparecerem com suas parceiras.

E isso, inclusive, foi algo que chegou até em mim.

Estou num relacionamento de 5 anos com uma mulher mestiça, que Deus queira ser para sempre, e já ouvi dela que a falaram para terminarmos por eu ser branco e ela não. Nunca antes havia pensado na cor dela como um impeditivo, e ouvir isso pela primeira vez me fez sentir uma dor profunda que até hoje não passou. Para os identitários que disseram isso para ela, não importava a nossa história de amor. Não importavam todos os momentos que estivemos lá um pelo outro. Não importava que eu queria que ela fosse a mãe dos meus filhos.  Não importava que ela tenha me feito mais feliz do que qualquer outra mulher com quem estive, e me feito sentir amado de verdade. Não importava e nunca importaria. Só o que importava para eles era que a nossa cor de pele era diferente, e que isso “era errado”.

Por isso, mesmo que eu concorde com muitas das pautas identitárias, como o casamento gay, a liberação das drogas, o combate ao racismo e à desigualdade, eu nunca vou aceitar a ideologia dos identitários. Eu nunca vou trilhar o caminho da segregação. Fazer isso seria defender uma ideologia que não apenas não aceita a família que eu hoje quero pro meu futuro como também não consegue conceber a existência dos filhos que eu venha a ter.  

Por isso, por mais que seja um caminho muitíssimo mais demorado, e que dificilmente estarei aqui para ver até o fim, estou com o professor Paulo Cruz em ver isso como um problema real que um dia poderá ser vencido.

“(…) para mim, a solução – se é possível usar esse termo – para o problema do racismo no Brasil é, para além das mudanças que o Estado pode produzir (como a mudança do modelo de tributação), uma educação para a liberdade e a conscientização dessa cultura de subalternização que ainda faz com que pessoas negras sejam discriminadas, mesmo por pessoas que não são racistas, por puro preconceito. É mais demorado? Certamente. Mas é mais efetivo, pois ataca um problema real e não uma abstração teórica. A mudança se dará pela educação, não pela ruptura; mudando a cultura, não as estruturas.

E por que eu separo isso do racismo? Porque para mim o racismo de fato é um processo sempre consciente e individual – exercido, inclusive, por pessoas que ocupam importantes lugares nas mais variadas” – Paulo Cruz, em artigo para a Gazeta do Povo

E estou ciente de que é confortável para mim, um branco ítalo-brasileiro, pensar isso. Ainda assim, não podemos esquecer quem nós estamos querendo copiar quando seguimos a ideologia identitária: um país cuja cultura acredita que deveríamos viver “separados, porém iguais”. Um país cuja cultura vê a miscigenação com maus olhos porque proibia por lei que pessoas de etnias diferentes sequer pudessem se casar e terem filhos. Quando se trata deste tema, nós estamos mais avançados do que eles. Não o contrário. Copiá-los, então, não só vai perpetuar ainda mais o problema. Vai piorá-lo.  

Deixemos de lado então as monoculturas americanizadas das capitais que tanto querem perpetuar a segregação e abraçemos novamente o nosso sincretismo cultural que faz de nós brasileiros. Que nos dá o mesmo humor, gostos musicais e artísticos.

 Apesar de todos os inúmeros, intermináveis, e “intankáveis” problemas que temos como país, essa é a coisa mais bonita que a gente já produziu. Uma das melhores do mundo. E que deve ser protegida a todo custo. 


Paulo Grego

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.

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