Liberdade e Verdade: dois conceitos inseparáveis

Liberdade e Verdade: dois conceitos inseparáveis

Uma jovem aluna, de repente, começou a soluçar histericamente no meio da aula. Ela acabava de voltar de uma expedição de voluntários que foram socorrer um acampamento de flagelados às margens do lago Superior. Vira uma mãe segurando no colo um filho crescido que morrera de fome – Não há absolutos – prosseguiu o professor – a realidade não passa de uma ilusão. Como essa mulher sabe que o filho está morto? Como é que ela pode saber que ele um dia existiu de fato?

O professor de filosofia da cena acima é o Dr. Simon Pritchett,  personagem da trilogia “A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand, e ele acredita que o homem nada mais é do que uma coleção de produtos químicos, que a razão é uma superstição, e que é inútil buscar sentido na vida. Embora a cena seja absurda, ela reflete bem um dos maiores problemas que vivemos atualmente, e ignorado por grande parte de nossos liberais: a profunda ligação entre Liberdade e Verdade.

Quem controla o passado, controla o futuro

Quando se fala sobre Liberdade e Verdade, George Orwell é um dos nomes mais conhecidos. Em sua obra 1984, Orwell descreve o chamado “Ministério da Verdade”, um órgão estatal responsável por editar notícias, livros e informações que não mais concordam com a narrativa oficial do Estado. Quaisquer derrotas ou contradições do regime eram apagadas dos registros, de forma a incapacitar a população de ter acesso a elas para sequer descobrir que o governo errou. 

“Quem controla o passado, controla o futuro: quem controla o presente, controla o passado… (…) Os eventos passados, argumenta-se, não têm existência objetiva, mas sobrevivem apenas em registros escritos e nas memórias humanas. O passado é o que quer que os registros e as memórias concordem. E uma vez que o Partido está no controle total de todos os registros, e no controle igualmente completo das mentes de seus membros, segue-se que o passado é o que o Partido escolher para torná-lo.”

-1984, de George Orwell

De fato, a subjetividade e o relativismo como ferramentas de opressão estatal estão presentes tanto em Orwell quanto em Rand, afinal tanto A Revolta de Atlas quanto 1984 foram escritos como alegorias do regime soviético. No entanto, a ameaça à verdade que enfrentamos hoje não vem do socialismo, e sim do liberalismo. Um defeito moral em nossa ideologia que nem mesmo Rand foi capaz de evitar, mas que conseguiu descrever muito bem com o Dr. Pritchett.

O ser de Heidegger

O pensamento de Pritchett de que somos apenas um conjunto de compostos químicos e sem qualquer sentido na vida é (por coincidência) base para o filósofo ateu Martin Heidegger, o qual diz que o ser humano é um ser isolado no universo, sem qualquer transcendência nem projeto divino. Seriamos apenas seres jogados no mundo, sem qualquer diferença entre nós e outros objetos materiais. O valor do ser humano, portanto, não seria diferente do de uma cadeira. 

Não por coincidência, Heidegger era membro do partido nazista. Sua forma de ver o mundo acaba por justificar regimes autoritários e coletivistas como o nazismo e o comunismo. Afinal, se nada no mundo importa, o filho que morre de fome nos braços da mãe é um preço a se pagar pelo sucesso do Estado autoritário. A morte de milhões, “só uma estatística” a ser escondida dos registros. 

 Acreditávamos que essa forma de tirania coletivista havia sido vencida com a queda da União Soviética. Entretanto, a secularização fez a filosofia de Heidegger avançar sobre o mundo livre, trazendo com ela os mesmos autoritarismos soviéticos para o debate público. 

Verdade Objetiva vs Verdade pessoal

Nomes como J. Hick, e P. Knitter trabalharam para relativizar a religião, difundindo que todas elas seriam na verdade válidas, meros ritos e superstições para uma mesma transcendência, assim como Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Daniel Dennett, e Sam Harris agiriam para descredibilizar a religião como um todo. 

Como Rand, eles acreditavam que os valores morais seculares do ocidente eram objetivos e universais, sem precisar de nenhuma religião para guiá-los. Mas isto acabou sendo falso na pós-modernidade. Como já escrevi em um texto anterior, esses valores morais estavam ligados à cultura clássica e ao cristianismo e foi a religião cristã e sua valorização da verdade como divina que permitiu a seus valores morais e éticos iluministas existirem. 

Isso ocorre, primeiramente, porque valores morais e bênçãos divinas antes do cristianismo eram reservados apenas aos conquistadores e às classes superiores, sendo regra a amoralidade permitida contra os grupos marginalizados como pobres, escravos e mulheres. A partir da crença num Deus que veio dos pobres e foi morto torturado da mesma forma que morriam os escravos, surge a crença de que a moral e ética existem para todas as pessoas independente de sua classe (direitos naturais). Afinal, negar esses princípios a eles significa negar o seu próprio Deus.

Além disso, o Deus cristão não é teologicamente visto apenas como o Deus verdadeiro, mas também uma personificação da verdade objetiva do universo. Portanto, buscar acima de tudo ter razão é desejado pelo cristão porque essa busca o aproxima de Deus. Assume-se aqui, que o rico pode estar errado apesar de todo o seu poder, e uma pessoa pobre, com a razão mesmo nada tendo.

Tendo isso se perdido com a secularização, o substituto liberal foi a verdade pessoal de cada indivíduo (“essa é a minha verdade”, “ache a sua verdade”,etc.). Com isso, basta ter agora uma experiência de vida marcante que corrobore sua ideologia (veracidade) e pronto! Ela vira verdadeira. A realidade se torna aquilo que você viveu, e todos os argumentos racionais contrários a ela (mesmo que verdadeiros) podem ser rejeitados, ignorados, ou relativizados porque não refletem essa sua experiência de vida. 

O resultado disso foi que cada grupo político adotou a sua própria realidade, o que, somado a uma filosofia que não vê nenhum valor intrínseco no ser humano, permite aos planejadores centrais ver a vida humana como um recurso a ser usado ou descartado conforme for mais conveniente para o Estado.

Exemplos disso são diversos, entretanto, eu acredito que exemplo maior disso é a atual legalização da eutanásia no Canadá. 

De “sua vida tem valor” para “sua morte será linda”

Inicialmente, o programa de Assistência Médica para a Morte (MAID) teria sido criado apenas para pacientes em estado terminal ou com doenças crônicas mas, como revelado numa matéria investigativa do jornal The New Atlantlis, o MAID é de fácil acesso e pessoas que hoje buscam o sistema de saúde canadense ouvem logo de cara a proposta da eutanásia. 

Slide de um seminário do MAID, identificando pobreza como a principal causa pelos pedidos de eutanásia

Em mais de um relato, nota-se que as pessoas da matéria que buscam o MAID têm problemas ainda tratáveis ou simplesmente o fazem por conta de suas dificuldades econômicas. Enquanto um serviço similar na Califórnia realizou o suicidio assistido de 486 pessoas em 2021, o MAID realizou 10.064 no mesmo período. Desses números, mais de 400 suicídios assistidos foram realizados pessoalmente por uma única pessoa: Ellen Wiebe.

Wiebe considera este o trabalho mais gratificante que já fez na vida e, numa palestra pública, ela descreveu um procedimento recente que ela realizou, dizendo: “Foi uma bela morte”. Ela então admitiu que a verdadeira dificuldade não é proteger os vulneráveis de abusos: “Familiares irritados são o nosso maior risco”, diz ela, e ri.

Numa gravação de um seminário, descreve-se como um homem foi rejeitado para o MAID porque, como os avaliadores descobriram, ele não tinha uma doença grave ou a “capacidade de tomar decisões informadas sobre sua própria saúde pessoal”. Entretanto, Wiebe entrou em contato com ele virtualmente, achou-o elegível, e realizou a eutanásia mesmo assim. Ao ser questionada, sobre o caso, Wiebe disse o seguinte:

“É raro que os avaliadores tenham pacientes que tenham necessidades não atendidas, mas isso acontece. Normalmente, essas necessidades não atendidas são em torno da solidão e da pobreza. Como todos os canadenses têm direito a uma morte assistida, as pessoas que são solitárias ou pobres também têm esses direitos.”

Ellen Wiebe

Com base em critérios vagos e com muito pouca supervisão, o MAID deu um campo amplo aos provedores de eutanásia para fazer os julgamentos sobre quem deve ser ajudado a viver e quem deve ser ajudado a morrer. O resultado é um sistema que é altamente eficiente em encontrar razões pelas quais os pacientes devem se qualificar, não razões pelas quais não deveriam. De fato, o MAID foi visto como uma positiva economia de dinheiro da saúde pública. 

Tudo indica que o Estado canadense falhou em providenciar condições de vida e saúde dignas para seus cidadãos mais pobres ou com deficiências, mas desistiu de melhorar esse cenário e optou por matá-los para economizar dinheiro do sistema de saúde. A verdade pessoal de Wiebe, porém, é de que ela é uma salvadora que traz um lindo fim às pessoas que sofrem, apesar das reclamações inócuas de meros “parentes irritados”. É gratificante.

Arquitetos da nova religião

Tudo isso que vimos coloca o liberalismo numa posição na qual ele nunca deveria estar: Como disse Hayek, o papel do economista não é o de usar seus conhecimentos para moldar os resultados de sua obra, como um arquiteto, mas sim o de cultivar um crescimento e fornecer um ambiente apropriado, como um jardineiro. Entretanto, ao vencer as religiões existentes no debate público e se tornar majoritário, o liberalismo tenta preencher o vácuo deixado pelas religiões com o progressismo identitário (cultura woke), abandonando o papel de jardineiro e decidindo ser arquiteto.

Sob essa sua nova religião, todos os identificadores culturais, sociais e religiosos de individualidade são apagados, de forma que as pessoas deixam de ser indivíduos e passam a ser apenas consumidores genéricos. Como substituto, a nova religião oferece inúmeras identidades coletivas estereotipadas para se escolher, cujas relações entre si são ditadas por um sistema de castas político. Sistema esse, como já discuti num texto anterior, e cuja moral não vê o mundo ética e objetivamente, mas sim de acordo com relações de poder e conveniência. 

“(…) Devo ser Cidadão X, Gênero X, Pai 1, Pai 2. Devo ser um número. Porque quando eu for apenas um número, quando não tiver mais identidade ou raízes, serei o escravo perfeito à mercê dos especuladores financeiros. ”

–  Giorgia Meloni, primeira ministra italiana

Como na filosofia de Pritchett, não há verdades absolutas, pois os argumentos e a moral do indivíduo agora estão atrelados a qual subgrupo ele faz parte: entre outros, todo homem é machista, todo branco é racista, e todo heterosexual é homofóbico. Não importa mais se a pessoa falando tem razão, mas sim a qual grupo ela pertence, pois a crítica ao dogma progressista é vista apenas como uma expressão destes preconceitos estruturais intrínsecos do seu subgrupo. É manifestar a verdade pessoal do seu subgrupo que, por definição, é preconceituosa e, portanto, deve ser ignorada.

Nenhuma área sofreu tanto com isso como a ciência. Enquanto antes ela era sinônimo de usar o método científico para descobrir a verdade, agora é vista por muitos apenas como um lastro não teísta para os seus (não tão científicos) dogmas religiosos. Seus adoradores não buscam saber se o resultado é reproduzível ou revisado por pares, mas sim se eles poderão ser usados como argumentos de autoridade para validar as próprias crenças no debate público. O papel do “cientista” é então substituído pelo do “especialista”, aquele cujas palavras devem ser seguidas como dogma porque “representam a ciência”.

Exemplos disso não faltam, como quando no Oregon, em plena pandemia, não brancos foram isentos da obrigatoriedade de máscaras, ou também, quando os protestos “Black Lives Matter” surgiram e vários especialistas e profissionais de saúde deixaram de promover o distanciamento social para promover os protestos. Não importava que a covid viria para todos. Apenas quais grupos deveriam ser obrigados ou privilegiados pelo Estado e qual mensagem política deveria ser passada. 

Verdade e Liberdade

O liberalismo foi o grande inimigo da religião nos últimos 200 anos. Ironicamente, agora que ele conseguiu finalmente vencê-la no debate público, estabeleceu seus próprios dogmas religiosos e misticismos com o progressismo identitário. Tal qual as religiões que jurou destruir, persegue e censura a verdade e a razão quando estas não concordam politicamente com sua verdade pessoal. E quando a verdade torna-se inacessível, é substituída pelo consenso daqueles capazes de argumentar: os grupos de elite.

Com isso, os movimentos modernos de libertação deixam de ser a defesa do indivíduo como a menor minoria a ser protegida e degeneram-se num hedonismo puro capaz de passar por cima da liberdade de qualquer um para maximizar seu prazer próprio e obter seus objetivos. Como dito por Ratzinger, buscam tornar-se como um Deus, não dependendo de nada nem de ninguém, e nem ser limitado na própria liberdade pela liberdade alheia. Vimos isso quando o governo americano estabeleceu seu próprio Ministério da Verdade, e sua diretora Nina Jankowicz cantou a seguinte canção.

Quero ser rica, famosa e poderosa. Pisar em todos os meus inimigos e nunca fazer nada. Quero ser rica, famosa e poderosa. Para que tudo o que eu tenha que fazer o dia todo é sentar e cantar. Eu não quero trabalhar, lutar ou me comprometer. Quando eu estabeleço uma meta, quero alcançá-la imediatamente. Porque pagar suas dívidas? Isso é apenas para os outros. Quanto a mim, eu quero o que eu quero e eu quero tudo hoje! Eu não quero fazer provas! Eu não quero ter aulas! Eu quero ser descoberta enquanto estou sentada na minha bunda. Eu não deveria ter que sofrer, eu não deveria ter que suar. Eu tentei isso por dez minutos uma vez e olha, o que eu consegui?”

-Trecho da música “My simple Christmas Wish, cantado por Nina Jankowicz

Nina tinha o poder do Estado Americano de decidir o que era ou não verdade, assim como declara a plenos pulmões que não vê valor algum naqueles abaixo dela. Suas palavras ecoam nas mentes de todos os tecnocratas e planejadores centrais que, sob a filosofia de Heidegger, tornam-se os “ungidos” descritos por Thomas Sowell: uma minoria esclarecida narcisista que acredita estar não apenas correta, mas também em um plano moralmente superior do que as massas alienadas a quem deve governar. 

Sob Heidegger, porém, eles ganham também a certeza de que não sofrerão nenhuma punição divina por quaisquer atrocidades que cometerem, pois os indivíduos foram esvaziados de qualquer valor que não o seu poder material e, com isso, caem por terra as utopias de racionalismo e direitos negativos propostas pelos defensores da secularização. 

Fica a lição tardia de que nós liberais temos um papel importante em criticar e fiscalizar a religião, mas que falhamos ao tentar substituí-la, e precisamos, portanto, dos valores religiosos na sociedade para manter o nosso liberalismo coerente. Afinal, o preço da liberdade é a vigilância eterna, e não há ninguém para nos vigiar quando nós, os vigilantes, preferimos nos isolar em nossa própria verdade pessoal conveniente do que em reconhecer as evidências e combater tiranias. Para que a liberdade sobreviva, precisamos ser os céticos capazes de reconhecer evidências objetivas, não os dogmáticos ungidos que querem moldá-las à sua imagem e semelhança. 
Que nunca nos esqueçamos então: sem a Verdade, não há Liberdade.


Paulo Grego

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição

2 comentários em “Liberdade e Verdade: dois conceitos inseparáveis”

  1. Pingback: Em Defesa Das Minorias: A Crítica Que Todo Liberal Deveria Estar Fazendo » Damas De Ferro

  2. Pingback: Ditadura Do Relativismo: Como A Ambiguidade E A Falta De Conceitos Objetivos Ameaçam A Liberdade » Damas De Ferro

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *