Como George Orwell sabia?

Como George Orwell sabia?

Para aqueles presos atrás da Cortina de Ferro, a obra de George Orwell 1984 assemelhava-se mais a um documentário do que a uma descrição de uma distopia ficcional. Como um homem que nunca tinha viajado à Rússia fez uma descrição tão precisa?

A citação no título captura a exploração minuciosa do tópico na frase: George Orwell and Rússia. Masha Karp não foi a primeira a ponderar a relação da obra de George Orwell e a Rússia stalinista – e a relação de ambas as Rússias stalinista e a pós comunista para Orwell – porém, foi a primeira a enquadrar um estudo compreensivo e bem documentado acerca deles. Ainda mais importante, ela foi a primeira autora nascida russa a abordar o assunto  que busca criteriosamente em fontes russas em dimensão acadêmica de livro.

Apenas estes fatos já caracterizam a obra de George Orwell e a Rússia um estudo digno de atenção. Leitores que suspeitam de que nada de novo possa ser dito sobre Orwell, a figura literária mais citada do século XX, o autor de infindáveis palavras chaves e alcunhas oriundas do Grande Irmão: crime de pensamento, e Novilíngua e duplopensar, buraco de memória, e Quarto 101, estarão satisfatoriamente surpresos que George Orwell and Russia são estudados com observações recentes e intrigantes. 

Acima de tudo, George Orwell and Russia aborda uma questão incessantemente realizada por leitores no mundo comunista assim como seus leitores de língua inglesa: Como ele sabia? Como um homem que não falava nem lia russo, compreendia tão profundamente a perspectiva de realidade de russos comuns sobre regime stalinista ? Como ele entendia tão bem a natureza da tirania Stalinista e a experiência cotidiana de lidar com as traições da revolução russa?

Essas questões são precisamente o que prendeu Masha Karp quando, ela em seus 20 e poucos anos, morando em Leningrado (Atual São Petersburgo), leu pela primeira vez a obra de Orwell na segunda metade da década de 70. Como muitos russos antes e depois dela, ficou estupefata que um autor que nunca pisara em um país comunista conseguiu capturar como foi viver sob o comunismo. Ela segue uma longa linha de heterodoxos habitantes do leste europeu e da União Soviética, que veem desde Czesław Miłosz até Joseph Brodsky, que ousou ler 1984 durante a era da Guerra Fria. Eles sempre sentiram que era um “milagre” o fato de George Orwell entender tão profundamente a natureza do regime totalitário da Rússia de Stalin, apesar de nunca ter pisado em solo russo.

Igualmente miraculosa, assim como Karp reconhece, era o fato de que a visão de pesadelo de Orwell continuava a ser estranhamente apropriada à União Soviética das décadas mais tardias – assim como é apropriada a Rússia de hoje. Sua 

convincente explicação da maravilha dos insights está longe de ser uma pequena conquista nesse livro, ela demonstra como as experiências de Orwell, duramente conquistadas sobre a corrupção de regimes coletivistas, fortificaram e aprofundaram sua visão política, permitindo que ele conjurasse um mundo aterrorizante cujas numerosas frases de efeito prontamente se tornassem sinônimos de léxico cultural.

A experiência espanhola da bacia hidrográfica

Aproximadamente 12 anos após o encontro inicial com o trabalho de Orwell, em 1991, enquanto ocorria o colapso da União Soviética, Masha se realocou em Londres, onde se estabeleceu como uma respeitavel presença da sociedade intelectual britânica e, mesmo sendo russa, se tornou uma notável crítica de Vladimir Putin. Antes editora de conteúdo russo da BBC, ela trabalhou como tradutora e intérprete assim como a editora do jornal official da George Orwell society, sediada em Londres. Ela é a autora da primeira biografia de Orwell  escrita em russo, publicada em 2018. 

Na obra de Orwell e Rússia, Masha inicialmente investigou e analisou o desenvolvimento da consciência política emergente de Orwell, entendido como o crescente interesse de Orwell no socialismo e na crescênte consciência do que o comunista realmente era. Ela argumenta que a ‘educação política de Orwell’, começou quando ele passou algum tempo em Paris em 1928-29 com sua tia Nellie Limouzin e o marido dela , Eugene Lanti, ambos líderes de longa data do movimento Esperanto, que passou por uma fase stanilista, porém se desiludiu com o Stalinismo tempos depois.

Karp argumenta que Nellie e Lanti exerceram, até certo ponto, uma influência decisiva no jovem Eric Blair em seus 20 e poucos anos, especificamente no caratér do  seu desenvolvimento político como um socialista. Lanti, que visitara a União Soviética e inicialmente admirava a experiência soviética, era um comunista e co-fundador internacional do movimento Esperanto, uma tentativa de criar e disseminar uma linguagem internacional; Nellie abraçou o comunista em meados dos anos 1920 após eles terem se tornado amantes naquele momento. 

Masha superestima a influência do movimento Esperanto no âmbito geral e dos tios Nellie e Lanti em âmbito particular? Muito argumenta-se isso devido a frases como, “ele deve ter tido”, “sem duvidas ele teve”,”provavelmente ele pensou” entre outras. Nesses casos, as inferências realizadas por Karp de que a relação de Blair e sua tia e o movimento Esperanto moldaram sua formação política são um pouco forçadas, considerando as evidências apresentadas anteriormente. A riqueza de informações a respeito de Lanti é interessante, mas essa afirmação provocativa seria mais persuasiva  a um leitor cético, se fosse tentada mais vezes. O argumento necessita mais investigação, e Karp, justificavelmente, conecta seu interesse em línguas(já que era um linguista nato, fluente em burmese) com sua afiada atenção as conexões entre linguagem e pensamento (e suas sutis implicações políticas, que seu famoso editorial Politics and English society descreve), dos quais todos deram uma abordagem distinta ao socialismo e ao comunismo. Seus interesses políticos emergentes foram aprofundados graças as suas conexões com o circulo de pacificas e anarquistas associados aos jornais londrinos: Adelphi e New English Weekly, no início do ano de 1930. 

Karp observa, com razão, que os primeiros esboços e ficção de Orwell, incluindo o semi autobiográfico Na Pior em Paris e Londres e três romances tradicionais (Dias na Birmânia, 1934; A Filha do Reverendo, 1935; e Keep the Aspidistra Flying, 1936,sem tradução para o português, não refletem uma perspectiva política distinta. (Por outro lado, ela avalia muito positivamente o último romance de Orwell da década de 1930 Coming Up for Air,sem tradução para o portugues, seu retrato da Inglaterra às vésperas da Segunda Guerra Mundial, com sua atmosfera de apreensão em relação à iminente guerra).

Karp argumenta que a compreensão visceral de Orwell sobre a natureza coletivista e autoritária do socialismo de Estado, bem como o início de seu reconhecimento de que isso era algo único – ou seja, o comunismo como uma forma de totalitarismo – remonta a 1936-37, quando ele visitou o norte da Inglaterra para estudar as condições da classe trabalhadora, resultando em O Caminho para Wigan Pier. Essa afirmação não é uma unanimidade. Por exemplo, o primeiro biógrafo de Orwell, Bernard Crick, em George Orwell: A Life (1980), julgou que Orwell retratou a si mesmo como um neófito político demais, argumentando que sua compreensão do marxismo e da ideologia da esquerda britânica era maior do que Orwell admitiu quando visitou Wigan. Karp está em terreno mais sólido com suas pesquisas mais recentes.

Não há dúvida de que o ponto de virada na formação política de Orwell ocorreu durante seu tempo lutando na Guerra Civil Espanhola nos primeiros meses de 1937. A Espanha consolidou tanto seu comprometimento com o que ele descreveu como “socialismo democrático conforme entendo” (Orwell sempre colocava letra maiúscula  no substantivo na frase) quanto sua percepção de que a natureza fundamental do comunismo era totalitária. Na Espanha, ele viu como as forças comunistas traíram a revolução e ficou indignado com o que chamou de “a servilidade dos chamados intelectuais” em sua desonestidade em relação ao comunismo.

Karp destaca um impacto significativo da experiência espanhola em Orwell. Foi lá que ele tomou consciência pela primeira vez de como a própria ideia de verdade objetiva poderia ser subvertida ao ver relatos de eventos que ele sabia que não eram verdadeiros, mas produzidos para propósitos políticos. Esse tema viria à tona como um elemento importante em 1984.

Karp ficou muito impressionada com o que ela chama de ” intuição ímpar” de Orwell, que o permitiu enxergar o que seus colegas da esquerda não viam – que a União Soviética era um regime totalitário pouco diferente do nazismo. Ele também compreendeu, ao contrário de poucos de seus camaradas de esquerda, que o comunismo não era uma ideia revolucionária, mas sim uma força contrarrevolucionária. Ela observa que alguns de seus colegas da esquerda demoraram anos para aprender isso, e alguns nunca aprenderam..

Talvez a contribuição acadêmica mais impressionante e significativa neste estudo seja a descoberta de Karp em Moscou, em uma sede regional da polícia soviética, de um relatório de propaganda relacionado às atividades de Orwell na Espanha, acusando-o de “trabalho subversivo”. (Orwell havia lutado com uma milícia trotskista rotulada de traidora pelos soviéticos, e mais tarde sofreu um ferimento na garganta enquanto servia na Ofensiva de Aragão. Seus documentos foram apreendidos em uma busca pela polícia espanhola e entregues às autoridades comunistas soviéticas).

A “educação política” tardia de Orwell

Karp destaca o papel desempenhado por certas figuras em reforçar as lições da Espanha e moldar a “educação política” de Orwell sobre as tendências tirânicas do comunismo soviético, especialmente Franz Borkenau, Gleb Struve e Arthur Koestler. Eles ensinaram a Orwell as sutilezas da doutrina e prática comunistas, aguçando seu discernimento político. Escuridão ao Meio-Dia de Koestler também desempenhou um papel na formação de alguns dos conceitos que apareceriam em 1984, especialmente a maneira como o protagonista Rubashov aceita seu crime de pensamento, confessando para não trair o Partido. Struve trouxe a atenção de Orwell para a obra Nós de Zamyatin, o que ajudou a moldar a concepção de 1984 por Orwell. Karp acredita que foi Borkenau quem mais influenciou seu pensamento. Orwell havia feito uma resenha favorável de sua condenação do papel do comunismo na Guerra Civil Espanhola, The Spanish Cockpit, sem tradução para o potuguês , que o educou sobre as nuances da doutrina comunista e o funcionamento do sistema comunista na Rússia.

A experiência de Orwell com o comportamento russo na Segunda Guerra Mundial, e em particular o que ele chamou de culto repugnante a Stalin por muitos de seus companheiros da esquerda, verdadeiramente lançou as bases para suas duas obras-primas, A Revolução dos Bichos e 1984. A perfeita paródia de A Revolução dos Bichos da traição da Revolução Russa marcou o que Orwell se referiu, em Por que Escrevo (1946), como sua aspiração “de fundir propósito político e propósito artístico em um todo único.” Karp fica impressionada com a generosa disposição de Orwell em permitir que A Revolução dos Bichos fosse traduzida para quem estava atrás da Cortina de Ferro sem exigir qualquer pagamento. Ela também observa que os tradutores de Orwell presumiram que ele conseguia ler e entender russo. Como mais ele poderia retratar de maneira tão engenhosa e sutil a traição da Revolução Russa?

Em sua análise de 1984, Karp contrasta as respostas dos leitores no Ocidente com as dos cidadãos soviéticos. Os ocidentais viam o romance como um retrato de um futuro distópico e um aviso do que os governos democráticos do mundo viriam a enfrentar . Os cidadãos russos não viam tanto o livro como uma obra de imaginação artística – de fato, como uma obra de ficção -, mas sim como uma obra de arte que refletia a realidade deles. Não era um retrato de uma sociedade futura do ano de 1980. Era um retrato do presente deles. Para eles, 1984 já tinha chegado.

Karp tem como objetivo lembrar os leitores da importância da experiência russa para Orwell. Outros comentaristas de suas duas acusações clássicas ao totalitarismo concentraram-se em sua obsessão com a crescente ameaça do comunismo. Ela deseja colocar o foco em suas interações com o comunismo em um contexto e lugar específicos, a Rússia, e permitir que os leitores compreendam a centralidade dessa terra para o pensamento de Orwell. Ela também chama a atenção para a relevância contínua de sua obra para a política e sociedade russas, mostrando como as políticas e  (culto da)  personalidade associadas com Vladimir Putin exigem novos apelos para se atentar às advertências de Orwell sobre a adoração ao líder e os abusos de poder.

Leitores interessados em assuntos acadêmicos relacionados ao estudo da obra e vida de Orwell ficarão satisfeitos ao saber que Masha Karp é cuidadosa ao rastrear fontes e meticulosa ao citá-las. Com tantos debates em torno do legado de George Orwell – de fato, as controvérsias sobre sua herança representam um assunto político menor por si só – George Orwell and Russia é certamente bem-vindo, pois permite que os leitores sigam as linhas de argumentação de Karp e avaliem a qualidade de suas evidências. Escrito de forma clara e apresentado de maneira direta, George Orwell and Russia apelará não apenas para o leitor comum, mas também para estudiosos interessados em um tratamento especializado dessa dimensão significativa do trabalho e recepção de George Orwell, possivelmente a figura literária mais relevante dos tempos atuais.


Artigo Original: https://rlo.acton.org/archives/124979-how-did-george-orwell-know.html

Autor: John P. Rossi e John Rodden 

Tradutor: Caio Marthão 

Revisor: Evanilson dos Santos Ferreira


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