O Verdadeiro Legado da Princesa Isabel

O Verdadeiro Legado da Princesa Isabel

Quando ouvimos pela primeira vez na escola sobre a Lei Áurea, sempre costuma a vir com a observação “mas ela não fez isso porque ela era boazinha”. Nos contam que a abolição não foi um presente dela, mas sim o resultado de muita luta. 

O motivo dessa conversa vem de uma disputa pelo legado de Isabel: seria ela mesmo a Redentora que libertou os escravizados quando ninguém mais conseguia ou apenas uma aproveitadora que nem ligava para eles e apenas agiu obrigada para garantir a sobrevivência da coroa? Qual seria então a resposta certa? Qual seria o verdadeiro legado da Princesa Isabel?

Princesa Isabel: Redentora ou Aproveitadora?

O culto à Princesa Isabel como “A Redentora” sobrevive até hoje, tendo sido considerada em 2012, por voto popular,  a terceira maior brasileira de todos os tempos. O culto a Isabel resultante da abolição fazia com que o 13 de maio fosse visto como a grande data de celebração da comunidade afro-brasileira. Surge aqui o mito de Isabel como esta figura sagrada que, sozinha, olhou para os escravizados quando ninguém mais o fazia e libertou-os apenas por sua graça.

Entretanto, esta data seria substituída na década de 70 pelo dia da Consciência Negra, marcado no dia da morte de Zumbi dos Palmares. É importante aqui ressaltar que essa escolha é sim legítima, afinal visava dar mais espaço ao papel da resistência negra ao invés de adorar uma salvadora branca. Surge aqui o mito de Isabel como alguém que não se importava com a questão dos escravizados e nada fez até que a resistência negra tornasse a abolição inevitável. Uma oportunista tentando salvar a coroa.

Para entender o papel de Isabel, é preciso começar entendendo que ambos os mitos estão errados: o mito da Redentora junta em Isabel as ações de todos os grandes nomes abolicionistas esquecidos pela história popular, como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, André Rebouças, Antonio Bento, João Clapp, e muitos outros; enquanto o mito da Oportunista surge da escolha de exaltar Zumbi no lugar de Isabel, esvaziando-a como figura histórica na tentativa de substituí-la pelo líder quilombola.

Vemos então como nem o mito da Isabel Redentora nem o da Isabel Oportunista refletem a Isabel histórica. Para entender quem ela realmente foi, precisamos analisar a lei abolicionista mais inútil de todas: a Lei dos Sexagenários. 

Projeto Dantas e a Abolição no Tapetão

Segundo as memórias de Joaquim Nabuco, a opinião pública na década em que viria a abolição teve as seguintes etapas.

  • 1879–1883: neste período, os abolicionistas combateram sós, entregues aos próprios recursos. Apesar de sempre terem havido pessoas a favor da abolição como os jesuítas, José Bonifácio, Castro Alves e Luis Gama. A liberdade ainda era um sonho impossível, e ser abolicionista nessa época era visto como arruaça. Tanto para o partido conservador quanto pelo liberal, aderir ou não ao federalismo era um assunto mais importante do que a abolição.
  • 1884–1887: a luta dos clubes abolicionistas e da resistência negra, assim como o sucesso de livros como “O Abolicionismo”, converteu o Partido Liberal à causa abolicionista. Ser abolicionista ainda exigia sacrifícios, mas já havia uma massa de jovens, jornalistas, magistérios e padres trazendo o tema ao debate público e convencendo cada vez mais pessoas ao seu redor.
  • 1888: foi neste momento que o clamor das ruas tomou o Rio de Janeiro. O partido conservador aderiu à causa abolicionista, que virou moda entre a população e a elite. A abolição havia ganhado tanto espaço que, como Nabuco relatou ao Papa, havia sequestrado o debate político todo para si. Os próprios proprietários, que enfrentavam fugas em massa da resistência negra e alforrias em massa dos clubes abolicionistas, agora também libertavam seus escravos em massa por medo. A situação havia se tornado insustentável e a Lei Áurea inevitável.

O marco histórico que liga estes três períodos e cujos acontecimentos tornaram a Lei Áurea inevitável foi, por incrível que pareça, a Lei dos Saxagenários. 

Originalmente chamada de “Projeto Dantas” (1884), ela ia muito além de apenas garantir a libertação dos sexagenários: o “primeiro ministro” Souza Dantas reconhecia que muitos escravagistas mentiam no registros de escravizados, falsificando a idade dos nascidos livres para serem mais velhos do que a Lei do Ventre Livre (1873) e a dos escravizados trazidos da África para serem mais velhos do que à Lei Feijó (1831), de modo a driblar essas leis e manter na escravidão quem já deveria estar livre. Para complicar a situação, os escravizados eram vendidos entre os estados, de modo que seus registros ficassem ainda mais confusos e pudessem permancer ilegalmente na escravidão. 

Sabendo dessa deficiência, Souza Dantas incluiu em seu projeto um censo de todos os escravizados do país, junto à proibição do comércio interno de escravizados. Dessa forma, a maior parte dos escravizados ilegais poderiam ser libertados “no tapetão” ao participar do censo. Os únicos que ficariam de fora seriam os sexagenários, trazidos para o Brasil antes da Lei Feijó (1831). Estes, portanto, estariam livres sem qualquer indenização aos senhores. 

Mais do que isso, o Projeto Dantas propunha uma espécie de reforma agrária que emprestaria terras aos libertos pela lei que não tivessem encontrado emprego ou lugar para morar, deixando explícito na lei que essas terras poderiam ser mais tarde transferidas ao liberto conforme ele trabalhasse nelas.

Preciso dizer que ele tomou um impeachment? 

Projeto Saraiva, e a Questão da Indenização

Apesar de ser um projeto tímido que apelava para técnicas indiretas de abolição, o que fez o Projeto Dantas ser revolucionário foi libertar os sexagenários sem qualquer indenização aos senhores de engenho. Ouso até dizer que isso os irritou ainda mais do que a reforma agrária!

Por que disso?

Nossos senhores de engenho tiveram um teaser do que seria uma abolição violenta com a Guerra Civil Americana e perceberam que defender esse sistema não seria mais possível. Por isso mudaram sua estratégia, e passaram a defender a chamada “abolição pela morte”: proibindo a chegada de novos escravizados da África em 1831 e garantindo que os filhos dos escravizados estariam livres a partir de 1873, acabavam-se os meios para repor os escravizados e, com isso, garantia-se o fim da escravidão com a morte natural dos ainda escravizados. E Pasme! Isso só estava previsto para acontecer lá por 1940!!

Através da “escravidão pela morte”, os senhores de engenho conseguiriam que o sistema escravagista acabasse sem que nunca a moralidade dele fosse questionada. E, por isso mesmo, a questão da indenização se tornou tão fundamental para eles: porque ser indenizado pela alforria de um escravo significava que a escravidão seria um sistema legitmo.

Souza Dantas arruinava tudo isso ao tentar aprovar uma lei de abolição sem indenização. Ele questionava o sistema e fazia com que os senhores de engenho deixassem de ser “investidores protegendo seu direito de propriedade” para se tornarem “monstros responsáveis pelo maior sistema de tortura e morte da história”. Foi por isso que Souza Dantas foi substituído por José Antônio Saraiva, e seu Projeto Dantas seria esvaziado de qualquer outra medida até que sobrasse apenas a libertação dos sexagenários (com indenização aos senhores, claro).

Sendo Saraiva um liberal, o esvaziamento do Projeto Dantas na Lei dos Sexagenários causou um racha ideológico dentro do partido, fazendo-o renunciar. No lugar dele, assumiu o conservador Barão de Cotegipe, um dos maiores escravistas de seu tempo, que chegou até mesmo a ser uma das seis pessoas a votar contra a Lei Áurea. Agora “primeiro ministro” do Brasil, ele considerava que a questão da escravidão já estava extinta. 

Conduzindo a competição interpartidária para o terreno da identificação com o escravismo, o Gabinete Cotegipe promove uma política de repressão ao abolicionismo, ao mesmo tempo em que procura atribuir ao Partido Liberal e a Saraiva toda a responsabilidade pela passagem da lei dos sexagenários. 

– Sérgio Buarque de Holanda (2004)

Estando divididos, os liberais haviam perdido totalmente o poder de ação no parlamento, e nada mais podiam fazer contra a repressão de Cotegipe. Os abolicionistas seriam perseguidos pelo governo como criminosos, responsabilizados publicamente pelo ônus das leis abolicionistas ao mesmo tempo que teriam de ver a audácia do partido conservador em clamar para si a responsabilidade da abolição (pela morte). A batalha acabou e os abolicionistas perderam.

Ou perderiam, se não fosse por Isabel.

A Princesa das Camélias

Dentre as medidas repressivas de Cotegipe, estava a nomeação de um novo Chefe de Polícia “linha dura”, e o endurecimento de leis contra as fugas de escravizados e a práticas abolicionistas como, por exemplo, a de dar abrigo a escravizados fugidos. Um desses abolicionistas era José de Seixas Magalhães, que escondia escravizados em sua fazenda no Leblon que tinha uma plantação de camélias. 

Essa fazenda, conhecida pelo movimento abolicionista como o “Quilombo do Leblon”, era um local onde eles se reuniam para discutir e planejar os próximos passos do movimento. Como forma de se reconhecerem, utilizavam camélias em suas roupas ou na frente de suas casas, sinalizando a qualquer escravizado fugido que estariam seguros por ali. O Quilombo do Leblon seria denunciado em 1886 à polícia, e foi a intervenção de Isabel e seu pai que impediu que os abolicionistas fossem presos. Como recompensa, Isabel receberia camélias de Magalhães, as quais ela plantou na frente de sua casa e ousou usar em suas roupas durante bailes oficiais. 

No ano seguinte, Isabel assumiria a regência no lugar do já idoso Dom Pedro II, e iria além: demitiria o chefe de polícia responsável pelas perseguições aos abolicionistas, causando uma crise institucional que , em 1888, resultou na demissão de Cotegipe! E como se não bastasse, ela não deixou que ele nomeasse seu sucessor, como era tradição na época, e nomeou o conservador abolicionista João Alfredo como “primeiro-ministro” do Brasil.

Essa invertida foi mortal para os escravagistas! Estando o abolicionista João Alfredo no comando, era certo que um projeto de lei abolicionista voltaria a ser pautado e eles não poderiam mais ser contra. Afinal, estavam há três anos vangloriando-se de terem sido os responsáveis pela abolição (pela morte). 

Logo, o clima inevitável de 1888 descrito por Nabuco, no qual a pauta abolicionista virou moda entre a população e a elite e com fugas em massa da resistência negra e alforrias em massa só aconteceu por conta de Isabel. Se não fosse por ela, a política de repressão linha dura de Cotegipe teria conseguido calar tanto o movimento liberal quanto às resistências negras na base da violência, e a abolição só aconteceria décadas depois pela morte dos escravizados. Isabel tinha pressa. Ela usou de todo o seu poder para agilizar o processo legislativo, aprovando com a Lei Áurea uma abolição total, irrestrita, e sem indenização.

Entendendo finalmente qual foi o papel da Princesa Isabel, fica a pergunta: porque ela fez tudo isso? Ela tinha realmente um interesse na causa ou só estava agindo como aproveitadora? 

O Legado da Princesa “boazinha”

Se fossemos analisar a vida política da princesa Isabel, não encontraríamos muita coisa: a própria personalidade da princesa a distanciou da política e de quaisquer confrontos com seu pai, ficando satisfeita com uma vida calma e doméstica. Inclusive, os políticos da época viam um terceiro reinado como um reinado do muitíssimo impopular Conde D’Eu, e nem mesmo o próprio imperador conseguiu conceber que sua filha seria capaz de dar conta do papel de imperatriz. 

Entretanto, é notável que a princesa era muito católica, e ela foi muito influenciada pelo movimento pró abolição mundial que a Igreja Católica promoveu sob o comando do Papa Leão XIII. Foi uma devoção pessoal que a fez, ao assumir a regência em 1887, enfrentar o poder estabelecido dos escravistas, operar politicamente para que Cotegipe renunciasse e quebrar todos os protocolos para garantir um abolicionista em seu lugar. 

Não satisfeita, Isabel operou para que a Lei Áurea fosse aprovada em tempo recorde no parlamento e aprovada já em 13 de maio. E é importante aqui notar como tanto seu pai quanto seu marido estavam tentando convencê-la a deixar a Lei Áurea para mais tarde! Mas Isabel, apesar do papel da mulher naquela época ser o de obedecer a seus maridos, peitou ambos e fez pressão para que fosse aprovada o mais rápido possível.

Claro que agir tão bruscamente contra o centrão da época teria consequências, e Isabel sabia disso. Apesar de ser uma medida extremamente popular, Isabel estava ciente de que a abolição acabava com o último pilar de sustentação da monarquia, com o próprio Cotegipe a dizendo no dia da promulgação da Lei Áurea que ela havia redimido uma raça, mas perdido o trono. Eis que Isabel respondeu que, se mil tronos ela tivesse, mil tronos ela daria pela liberdade dos escravos do Brasil.

Para mim, a mais incontestável das provas de que Isabel estaria atuando por convicção naquele momento e apesar das consequências foi a conversão do abolicionista republicano José do Patrocínio em monarquista. Patrocínio era um pardo que sofreu com o racismo em primeira mão, e foi um dos mais famosos e enfáticos republicanos do Império. Ele se tornar monarquista com a Lei Áurea é pra mim uma prova de que Isabel realmente estava fazendo o que fez por acreditar na causa.  

O legado da princesa Isabel, portanto, é o de uma pessoa fundamental para a abolição que conseguiu passar por cima do sistema escravocrata e aprovar a Lei Áurea décadas antes do que até mesmo Joaquim Nabuco conseguia imaginar.  

Conhecendo história de Isabel e a da abolição, eu diria que a ideia da abolição como “um presente da princesa” é resultado de nossa historiografia positivista e socialista que, segundo Antonio Paim, fez o possível para apagar o segundo reinado da história: Nabuco, Patrocínio, Rebouças, e diversos outros foram esquecidos porque não convinha ter heróis monarquistas num país republicano. O nome de Isabel, no entanto, era grande demais para ser apagado, e foi acumulando para si o papel dos abolicionistas que nossa história tenta esquecer. 

Mais do que apenas ter sido aquela que assinou a Lei Áurea, o legado de Isabel é hoje o de carregar também consigo o legado de toda a luta abolicionista na memória de nosso país. Por meio dela, nossos heróis esquecidos conseguem chegar até nós e dizer “eu existo e esta foi minha luta”. Ouçamos então o chamado dos esquecidos e lembremos da história de nosso país através da princesa que era sim só boazinha.


Paulo Grego

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.


Referências

BARBOSA, Rui. Projeto Dantas (dos sexagenários) e o parecer que o justifica. Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 1988.

CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1998. p. 256

HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira – Tomo II: O Brasil Monárquico – Vol. 5. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro – RJ, 2004, p. 220, 221.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira – Tomo II: O Brasil Monárquico – Vol. 7. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro – RJ, 2005, p. 330.

LEÃO XIII, In Plurimis: encíclica do papa Leão XII sobre a abolição da escravatura, 1888, Disponível em <https://www.vatican.va/content/leo-xiii/en/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_05051888_in-plurimis.html>

NABUCO, Joaquim, Minha Formação, Brasília: Câmara, 2019, p. 264 

NUNES, M. Entre a mão e os anéis, Campinas: Editora Unicamp, 2008, 360 p.

PAIM, Antônio. História do Liberalismo Brasileiro, São Paulo: LVM, 2018, 408 p.

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