Kant e a sociedade liberal

Kant e a Sociedade Liberal

Há muito que penso se Ayn Rand teria se baseado na Paz Perpétua, de Kant, para produzir A Revolta de Atlas. Muito antes dos consagrados autores do libertarianismo, o prussiano Immanuel Kant havia elaborado sua tese de um mundo livre e não-intervencionista. O objetivo destas linhas será evidenciar o aspecto liberal contido no projeto filosófico internacionalista de Kant.

Para dar início, porém, se faz necessário comentar que Kant divide suas concatenações em artigos preliminares e definitivos, e que por alguns fugirem da temática central destas linhas, não serão abordados.

Tendo isto posto, podemos começar a exposição com o terceiro artigo preliminar, onde trata da questão de que “Exércitos permanentes devem desaparecer completamente com o tempo”. Nele, o autor argumenta que a constante manutenção de exércitos fomenta a tensão, que acaba em rivalidade entre Estados, levando à guerra: “eles estimulam-se mutuamente a se superarem na quantidade de homens armados, que não conhece limites, e posto que, devido aos custos relacionados a isso, a paz torna-se finalmente ainda mais opressiva do que uma guerra curta […]” (KANT, 2020, p. 31). Neste ponto, é possível ver nitidamente o viés não-intervencionista do autor, quando este defende que a tensão advinda pelo fortalecimento dos exércitos é maléfica para o florescimento da paz.

Além de ser uma ameaça para a paz entre as nações, a manutenção contínua dos exércitos é dispendiosa em relação à economia, pois requererá o aumento progressivo de impostos às populações. Desse modo, é possível concluir que Kant defende uma carga tributária enxuta como forma de melhores condições para um povo e para seu Estado.

Existe, contudo, um aspecto fundamental neste terceiro artigo contra os exércitos permanentes: “Totalmente diferente é o exercício militar periódico voluntário assumido pelos cidadãos com o propósito de, dessa forma, proteger a si mesmos e sua pátria contra ataques

externos” (Ibid., p. 31). Ou seja, fica escancarada a sua defesa de um alistamento voluntário, em detrimento do obrigatório. Kant, no fim do século XVIII, foi um dos primeiros pensadores a propor tal ideia de não-coerção dentro da área militar.

Avançando para o quinto artigo preliminar, onde “nenhum Estado deve interferir pela força na constituição e no governo de outro Estado”, o autor questiona onde está o direito – ou legitimidade – que autoriza um Estado a intervir de tal forma em outro, e afirma que, por pior que seja a constituição de determinado país, e por pior que estejam as condições desse país, por recorrência da mesma, inexiste justiça numa intervenção, pois implicaria numa violação à soberania de um Estado. Em seguida, Kant faz a apologia da secessão de povos de um mesmo Estado: “a interferência de potência externas seria uma violação aos direitos de um povo independente de todos os outros, que luta apenas com sua doença interna” (Ibid. p. 33.). Nesta parte, o autor faz referência a uma nação em guerra civil, e argumenta que um conflito interno deve ser resolvido única e exclusivamente dentro de suas fronteiras, com seu povo, sem interferências externas.

Adentrando nos artigos definitivos, no primeiro o autor defende os princípios liberais do estabelecimento de um Estado moderno e justo, tendo por base constitucional a igualdade de direitos entre seus membros a liberdade jurídica, enquanto cidadãos de uma mesma nação. Mas, ao contrário do que afirma Hoppe, Kant vislumbra que, para alcançar a paz perpétua, os Estados em torno do globo devem ser republicanos, não monarquias – daí surge o princípio de federalismo universal, onde vigora a máxima de que não há guerra entre democracias: nessa perspectiva, a dinâmica entre os Estados é vista da mesma forma entre a dos indivíduos, portanto valeria o que conhecemos como princípio universal do direito: as ações de um indivíduo hão de concordar com as dos demais indivíduos.

A constituição republicana, para Kant, é a única válida para alcançar tal empreitada, pois seria nutrida, como vimos acima, de liberdade, independência e igualdade. Sendo assim, haveria descentralização de poder, logo as decisões políticas e relativas à guerra estariam nas mãos de seus cidadãos, então o risco de haver um conflito internacional seria – novamente na visão do autor –, menos propenso que num regime centralizado e autocrático.

Tratando do segundo artigo definitivo, que aborda a já mencionada questão do federalismo livre entre as nações. Nesta parte, o prussiano adverte que a condição natural originária entre as nações é um estado de hostilidade e guerra. Dessa maneira, o autor prevê a

criação das organizações internacionais, com a proposição de uma “liga de povos”, ou a federação livre. Pautando-se no devido ordenamento jurídico, em forma de cooperação internacional para a paz, os Estados republicanos estariam em constante harmonia entre si, e não estariam subordinados a uma espécie de “Estado universal” que promulgaria a paz.

Vejo, porém, que geralmente nas discussões entre liberais pouco se fala de Immanuel Kant. Ao contrário, porém, no estudo das Relações Internacionais, este é valorizado por sua curta, porém expressa obra política. Uma vez analisadas tais proposições, é impossível desconsiderar sua relevância no meio político-filosófico e pondero que sua obra, bem como sua pessoa, seja mais convencionalmente discutida nas rodas liberais.



Referências Bibliográficas

KANT, Immanuel. À Paz Perpétua: Um projeto filosófico. 1ª edição. Petrópolis, RJ. Editora Vozes, 2020.

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