A Resistência Ucraniana e o Espírito Inquebrável

Nessa semana o mundo foi surpreendido duas vezes: a primeira surpresa foi o violento ataque russo à Ucrânia, enquanto a segunda foi a fortíssima resistência civil aos invasores. Nos perguntamos perplexos como esse país abandonado pelo ocidente e cujo líder era um comediante pode ter coragem para lutar numa guerra tão impossível de se vencer.

Porque eles não desistem e se rendem? O que faz esse povo defender a sua terra com uma força de vontade tão implacável? Para lhe responder isso, caro leitor, quero compartilhar com vocês o que descobri no Memorial Ucraniano de Curitiba e aprendi mais a fundo com Leonardo Lopes: o horror do genocídio chamado Holodomor (“morte pela fome” em ucraniano).

1930-1931: Uma meta impossível

A Ucrânia conseguiu sua independência pouco antes de ser anexada pela União Soviética, e se tornaria importantíssima para o país comunista. Isso porque Stalin queria desenvolver exponencialmente a indústria e a economia da URSS, mas precisaria de muitos recursos para isso. Por sorte a Ucrânia tinha os maiores campos de trigo do mundo, cuja exportação daria a Stalin os recursos de que precisava.

Em 1930, o Homem de Aço coletivizaria todas as fazendas do país e expulsaria 285 mil famílias camponesas kulaks (cerca de 1 milhão de pessoas) de sua própria terra natal (confiscando todos os bens deles, claro). Quem não conseguiu fugir virou escravo do regime, trabalhando em troca de um salário que só receberia se batesse a meta de produção. Essa primeira cota só foi obtida após esvaziar todas as reservas de grãos do povo, deixando os trabalhadores enfraquecidos e desnutridos. O regime então aumentou as cotas de 1931 para “motivar” os produtores, mas nem uma aldeia sequer conseguiu atingi-la. Sem salário e sem comida, afinal toda a sua colheita foi tomada, começou a fome generalizada.

1932: O início do genocídio

Stalin não recuou e determinou que dois terços de todo grão consumido na URSS deveriam vir da Ucrânia, mas não havia mais incentivo para trabalhar. Afinal, absolutamente todo tipo de comida, desde animais como porcos e galinhas até batatas e hortaliças, era confiscado. A morte passou a ser rotineira. O desespero levou até ao canibalismo, e as crianças deixaram de pedir comida na rua porque suas mães temiam que fossem mortas e devoradas.

Para resolver este problema, Stalin aprovou em 1932 a “lei das cinco espigas”: qualquer pessoa pega roubando qualquer quantia de grão para si (inclusive crianças) seria condenada à prisão ou até a morte por fuzilamento. No início de 1933, cerca de 54.645 pessoas foram julgadas e condenadas por essa lei e, destas, 2.000 foram executadas.

As mães ucranianas então passaram a colocar seus filhos escondidos em trens, na esperança de que alguém na cidade os adotasse e eles escapassem deste inferno. Essas crianças se tornaram moradores de rua na capital soviética, atrapalhando a visão stalinista da utopia soviética. Stalin então resolveu a situação subindo a maioridade para doze anos para que essas crianças pudessem ser condenadas, como adultos, ao fuzilamento. Ele também introduziria a chamada lista negra, que controlava os passaportes e permitia apenas a quem atingisse as suas metas de produção – vulgo ninguém – a transitar além do seu bairro.

É óbvio que nada disso fez os ucranianos baterem a cota de 1932 e Stalin ficou furioso.

1933: Genocídio? Que Genocídio?

Já no primeiro dia do ano ele mandou um telegrama aos fazendeiros ucranianos ameaçando usar “as mais severas medidas de punição” contra todos os fazendeiros que não entregassem “voluntariamente” os grãos que supostamente escondiam do Estado. Possuir comida virou crime, com pena de prisão a fuzilamento. As razões eram ridículas, como “deliberadamente permitir que ervas daninhas crescessem nos campos” ou “encorajar a propagação de meningite entre cavalos”.

No auge da fome, é consenso entre os historiadores que os ucranianos morreram em uma taxa de 25.000 por dia, e que a população ucraniana pode ter sido reduzida em até 25%. Aldeias inteiras foram dizimadas e, em algumas regiões, a taxa de mortalidade chegou a 30%. Em fevereiro de 1933, todos os órgãos da URSS (exceto a polícia secreta) foram proibidos de registrar dados sobre a fome ucraniana, e todas as mortes relacionadas a isso deveriam agora ser colocadas como velhice ou gripe (soa familiar?).

Essa tragédia chamou a atenção de ajudas humanitárias internacionais, que foram negadas pela URSS sob justificativa de que não existia nenhuma fome. Políticos, jornalistas e entusiastas do comunismo passaram a ser chamados para Moscou para ver como não existia fome na URSS, e eles espalharam essa mentira mundo afora. Foi só com a queda do regime comunista que os documentos do holodomor puderam ser analisados sem a censura e seus horrores descobertos. Dentre eles, temos:

  •  3456 documentos incluindo os assinados pelo próprio Stalin
  •  3186 livros de registros de óbitos entre 1932 e 1933
  •  1730 depoimentos de vítimas
  •  857 valas comuns
  • 735 assentamentos de fazendas coletivas
  •  400 documentos secretos desclassificados, incontáveis fotos e vídeos

A Ucrânia tinha 44 milhões de habitantes na época do massacre, e estudos atuais apontam que não havia nenhuma razão climática significativa na época que justificasse a grande fome. Estima-se que 7 milhões de vidas foram ceifadas, lutando pelo direito de comer aquilo que plantaram, e desses, 4 milhões morreram de fome.

2021: Mas foi intencional?

O holodomor foi negado por décadas. De início, era negado que esse genocídio sequer existiu, mas, agora que isso é inegável, os negacionistas dizem que não foi genocídio alegando que a tragédia não foi intencional. Isso é refutado por Alexandra Ilia em seu artigo na revista romena de Ciências Políticas Studia Politica:

“Os assassinatos na Ucrânia não foram numerosos apenas na fome de 1932-1933. O número de mortos na Ucrânia depois que os bolcheviques chegaram ao poder também foi bastante alto. Nos anos antes da fome, o regime bolchevique tentou acabar com os sentimentos nacionalistas do povo ucraniano passando por expurgos da elite intelectual, impondo língua russa e dissolução da igreja nacional”

O holodomor aconteceu porque a Ucrânia especificamente era vista pela URSS como uma região com etnia, religião e cultura contra revolucionárias, e que por isso deveriam ser eliminadas. Por definição, é genocídio.

2022: Se fere a minha existência, serei resistência

Vivemos o 90º aniversário do holodomor neste ano, o que significa que ainda existem pessoas vivas que passaram por isso. Para elas, voltar a ser parte da Rússia é como um judeu voltar a viver sob o nazismo ou como um ex escravo ver a revogação da lei áurea. Não é uma opção. Desistir e se render à opressão não vai trazer paz.

É por isso que, mesmo que todos os países do ocidente tenham a abandonado para lutar sozinha, e mesmo que seja quase impossível vencer um inimigo tão poderoso, eles não vão desistir de lutar. Os civis se juntaram aos soldados e lutam como podem porque, mesmo que a esperança de vencer seja mínima, preferem morrer de pé do que viver de joelhos.


Texto por Paulo Grego

Arte por Nathália Marques

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