A Inconfidência Mineira: uma revolta contra os importos

A Inconfidência Mineira

A história do Brasil Colonial foi marcada por diversos conflitos, motins e guerras entre as autoridades coloniais, que respondiam a Portugal, e os colonos, desde as elites até os escravos. A Inconfidência Mineira de 1789 é a mais celebrada dessas revoltas, e tinha uma forte conotação de republicanismo, embora nunca tenha saído do papel.

A despeito de terem havido ações conspiratórias, reuniões secretas e até um planejamento detalhado, tudo isso foi desarmado pela delação de um dos envolvidos, que percebeu que se beneficiaria mais dedurando o movimento à coroa portuguesa do que participando dele.

Ali, encerrou-se uma convulsão social cuja clareza intelectual dificilmente seria repetida na história do país. Ela teve inspiração explícita pela Revolução Americana de 1776, que emancipou as Treze Colônias americanas do domínio britânico e estabeleceu os Estados Unidos da América, fundamentados nas ideias de liberdade de associação e desassociação, liberdade de mercado e a lei natural.

Vale lembrar também que estes acontecimentos nas Minas Gerais do século XVIII antecederam a Revolução Francesa, cujo início coincidiu com o fim da Inconfidência Mineira. Mesmo assim, muitos inconfidentes foram influenciados pelos escritos de franceses, como o padre Carlos Correia de Toledo e Melo, um dos líderes da Inconfidência, que fascinou-se com a obra de Guillaume Thomas François Raynal.

O mais famoso entre eles é Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Embora tenha sido um dos líderes da sedição, não foi o único. Por isso, este artigo foca em aspectos gerais da Inconfidência Mineira. Para quem procura mais informações sobre esse personagem, recomendamos fortemente o texto dedicado a sua vida, seu papel no movimento e suas crenças.

A economia vibrante e a política de opressão das Minas Gerais setecentistas

O que mudou em Minas Gerais para torná-la o centro das atenções, para começo de conversa? É que a descoberta do ouro nessa capitania, na virada do Século XVII para o XVIII, abriu um mundo de possibilidades para os colonos. Muitas possibilidades também para a coroa portuguesa, que logo voltou seu olho gordo para a maior reserva de ouro conhecida no mundo.

Em menos de cem anos, Vila Rica, a capital de Minas, alcançou os 79 mil habitantes, tornando-se mais populosa que Rio de Janeiro (39 mil), Salvador (46 mil) e Nova York (33 mil). A vila destoava do restante do país, já que desenvolveu-se rapidamente por causa do pujante mercado do ouro, tanto em termos urbanos e arquitetônicos, com suas igrejas, sobrados, pontes e teatros, quanto em termos culturais, que começavam enfim a ser genuinamente brasileiros, e não meras cópias portuguesas.

O que mudou em Minas Gerais para despertar nos mineiros um desejo por revolução? O ouro descoberto há décadas ficava menos e menos abundante, e a coroa portuguesa, em contrapartida, mais e mais exigente. A porção do metal precioso que se encontrava no fundo de riachos e nas encostas dos morros, de fato, estava acabando, mas as autoridades reais insistiam que, na verdade, a queda na produção aurífera explicava-se pelo contrabando e pela sonegação.

Em 1783, Minas não conseguiu pagar a cota mínima do “quinto”, o imposto sobre todo o ouro extraído da natureza, que era de cem arrobas (1474 quilos). Para consertar essa situação, naquele ano Portugal declarou pela primeira vez a derrama, como ficou conhecida a coleta forçada dos quintos atrasados.

A derrama visava recuperar tudo aquilo que não foi pago pelos colonos referente ao quinto. Para isso, as autoridades coloniais eram ordenadas a confiscar o ouro (e, se necessário, outros bens) dos devedores para cobrir esse débito. Mas, como a produção aurífera não responde a mandatos de reis, mas sim à geologia, o déficit de pagamentos do quinto continuava a crescer.

Afinal de contas, como a família real custearia seus gastos essenciais, como o conjunto para almoço do rei dom José I feito de ouro maciço? Ou a coleção de animais exóticos da rainha dona Maria? Ou ainda as festas luxuosas, como a cerimônia de posse de d. Maria e a do casamento do seu filho, futuro rei dom João VI?

A inspiração dos ideais da Inconfidência Mineira

É nesse cenário de pujança econômica, de um lado, mas de abuso e medo, do outro, que moldou o Século XVIII de Minas Gerais. A prosperidade gerada pelo mercado dos metais preciosos permitiu que filhos de fazendeiros, homens de negócios, comerciantes, mineradores, desembargadores, advogados, contratadores e militares de alta patente fossem até a Universidade de Coimbra para se educar.

Muitos deles encontraram lá o arcabouço intelectual que colocava em palavras o sentimento que muitos deles tinham. De repente, o descontentamento na capitania começou a se moldar ao discurso iluminista que varre todo o mundo, prometendo grandes mudanças na ordem política.

De maneira geral, podemos destacar três motivos para essa insatisfação:

  1. A exposição às ideias iluministas em voga na Europa, que desafiavam os conceitos do Antigo Regime, como o direito divino dos reis, que, dizia-se, governa por vontade de deus, não para a vontade o povo;
  2. O choque entre os interesses das elites locais e a coroa portuguesa. Enquanto os mineiros almejavam o desenvolvimento local e a consolidação das influências políticas e econômicas locais, a coroa focava nos planos do Império, o que incluía, por exemplo, usar o dinheiro arrecadado em Minas para construir uma estrada na fronteira com o Espírito Santo que tinha o propósito de conquistar a região de Cuieté dos temidos índios botocudos;
  3. Finalmente, o corte de privilégios, como os acessos a cargos na administração, concessão de títulos honoríficos e participação na cadeia de negócios, executado pelo secretário de Estado dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro. Como seu antecessor, Marquês de Pombal, permitia às oligarquias um espaço na burocracia colonial, a medida de Melo e Castro causou forte descontentamento em Minas e no Rio de Janeiro.

Os principais insurgentes, de fato, estudaram em Coimbra e trouxeram para o Brasil todo o ideário republicano. Entre 1780 e 1879, estudaram lá José Álvares Maciel, José Pereira Ribeiro, José de Sá Bittencourt Acioli e Antônio Pires da Silva Ponte, entre outros.

A Inconfidência Mineira começa tomar forma

Essa pequena elite intelectual discutia entre si com profundidade sobre filosofia e poesia. Alguns até se arriscavam a escrever sonetos, éclogas, canções e cantatas. Esse é o caso de Tomás Antônio Gonzaga, que foi eternizado na literatura brasileira pela publicação do poema Marília de Dirceu, mas que anonimamente publicava as Cartas Chilenas, poemas satíricos com forte crítica política à administração colonial:

“Para haver de suprir o nosso Chefe

Das obras meditadas as despesas,

Consome do Senado os rendimentos,

E passa a maltratar o triste povo

Com estas nunca usadas violências.”

Nessas discussões, a ideia de independência passou a ecoar cada vez mais forte e a ideia de um levante, levada cada vez mais a sério. José Joaquim Maia e Barbalho, carioca que cursou matemática em Coimbra, passou a sondar com poderosos homens de negócios na França o apoio a uma possível revolução nos trópicos.

Ele inclusive negociou com Thomas Jefferson, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, o seu apoio militar. Afirmou que os “usurpadores portugueses”, indo “contra a lei da natureza e da humanidade”, oprimiam os brasileiros e que havia um movimento almejando “seguir o admirável exemplo” dos Estados Unidos para libertar-se da pátria-mãe. Jefferson se empolgou bastante com as notícias, mas disse que, como embaixador na França, não tinha poder de decisão sobre isso, e nem achava prudente que a recém-instituída nação entrasse em conflitos internacionais por hora.

Meses depois disso, Maia e Barbalho faleceu, possivelmente de pneumonia ou tuberculose. Coube ao engenheiro José Álvares Maciel continuar as negociações, mas desta vez, do outro lado do Canal da Mancha, em terras inglesas, onde estudara metalurgia e tivera contato com diversas obras liberais, republicanas e democratas.

As definições cruciais da conspiração foram feitas

Com o retorno de Maciel ao Brasil, as conversas se intensificaram. Logo de cara, ele e Tiradentes, que fazia a ponte entre os insurgentes mineiros e cariocas, deram-se muito bem. O engenheiro exerceu grande influência no futuro mártir, definindo-lhe as bases do seu pensamento radical.

Haviam três grandes núcleos rebeldes:

  1. Na comarca de Vila Rica, com a liderança de Tomás Antônio Gonzaga e do advogado Cláudio Manuel da Costa, ambos formados em leis pela Universidade de Coimbra;
  2. Na comarca do Rio das Mortes, àquela altura a mais rica e diversificada economia de Minas, liderados pelos coronéis Inácio José de Alvarenga Peixoto e Francisco Antônio de Oliveira Lopes e o padre Carlos Correia de Toledo e Melo;
  3. Na comarca do Serro do Frio, liderada pelo padre José da Silva e Oliveira Rolim, contrabandista de diamantes e escravos.

Muitos dos conspiradores tinham grande influência na elite política e econômica de Minas e do Rio, como Maciel, outros tinham prestígio mediante as camadas mais populares, como o padre Rolim. Essa interseccionalidade trouxe grande potencial à revolta, já que nenhuma sedição seria bem-sucedida sem um apoio relevante da população.

As definições cruciais da conspiração foram feitas em uma reunião na casa do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, junto com aqueles que, de fato, eram os principais insurretos: Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa, Tiradentes, Maciel, padre Rolim, padre Toledo, Alvarenga Peixoto e o capitão da cavalaria Maximiano de Oliveira Leite.

Tiradentes, mesmo menos graduado que os demais do oficialato, liderou as discussões de estratégia militar. Ali, estabeleceram os planos para a tomada de Vila Rica e, em seguida, do Rio de Janeiro. Além disso, pensaram em como se proteger da inevitável contra-ofensiva de Portugal e na cadeia de suprimentos, desde alimentos até a pólvora. Acreditavam que aguentariam três arrastados anos de combate, esperando por uma desistência do império, assim como acontecera na Independência Americana.

Por outro lado, já fora definido que a nova nação seria uma república confederada, constituída de unidades autônomas — Minas, talvez o Rio, e quem mais aderisse. As decisões seriam tomadas em assembléias compostas de representantes eleitos — apenas em Minas, seriam sete parlamentos. Ainda decidiram que o primeiro governante, que lideraria o período de transição de três anos, seria Tomás Antônio Gonzaga.

Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa, Alvarenga Peixoto e o cônego Luís Vieira da Silva já haviam, inclusive, começado a esquematizar a sua futura constituição, que, dizia-se, estava em estágio avançado de redação.

A Inconfidência Mineira tem lema e bandeira, mas não tem data, nem hora

Nessa reunião, definiram também o lema da Inconfidência Mineira: Libertas quae sera tamen [Liberdade, ainda que tardia], um trecho de um verso do poeta Virgílio — ou, como dizia Oliveira Lopes, “Inda que tarde chegou a liberdade”. A discussão sobre a bandeira, por sua vez, foi deixada para depois já que nenhuma escolha foi feita entre o símbolo sugerido por Alvarenga Peixoto e Cláudio Manuel da Costa, um índio quebrando os grilhões que o mantinham preso — inspirado na bandeira de Massachusetts —, e o triângulo, proposto por Tiradentes.

Finalmente, um problema muito comum às elites da época foi abordado: as dívidas com Portugal. Os contratadores, que eram homens que se ofereciam para a coroa para cobrar os impostos a fim de ficar com uma porção, geralmente caloteavam descaradamente as autoridades coloniais. Nesse sentido, muitos dos endividados aproximaram-se dos círculos revoltosos pensando no seu bem-estar financeiro.

Esse foi o caso de Joaquim Silvério dos Reis, que andava tão preocupado com uma iminente cobrança na próxima derrama, que conversou com outros insurgentes até sobre queimar os livros contábeis da Real Fazenda em Minas Gerais.

Essa derrama foi anunciada pelo novo governador, o visconde de Barbacena, escolhido pelo secretário Melo e Castro para ser linha dura. Em um ambiente de incerteza, medo e desinformação — ninguém sabia ainda quanto seria cobrado, de quem e quando —, o sentimento de revolta varreu todas as Minas Gerais por todo o estrato social. A revolução, decidiram, se daria na data em que a derrama ocorresse.

Joaquim Silvério dos Reis: o dedo-duro da revolução

Entretanto, antes mesmo que isso fosse anunciado pelo governador, o visconde ordenou a Silvério dos Reis o pagamento imediato de tudo que devia: os 220 milhões de réis, cerca de 773 anos do salário de alferes de Tiradentes. O grande problema é que ele nunca aderira à Inconfidência Mineira por afinidade com as ideias revolucionárias, mas exclusivamente pelo prospecto de ter seus débitos perdoados. 

Silvério viu o chamado do governador como uma solução alternativa ao seu problema: delatar os inconfidentes e esperar pelo perdão da sua dívida. Isso porque o crime de lesa-majestade, ou seja, traição à coroa, era dos mais graves e abomináveis da monarquia. Entretanto, àquele que dedurasse seus comparsas seria dada a liberdade de qualquer pena e, em alguns casos, até recompensas. Foi nisso que Silvério apostou.

Nesse momento, a Inconfidência entraria para a história brasileira como a maior revolta anticolonialista que não ocorreu, que por pouco não ocorreu. Dias depois, o governador anunciou o cancelamento da derrama, o que atingiu a capitania inteira como um suspiro de alívio. Só nessa manobra, o ímpeto para a sedição se fora. Tomás Antônio Gonzaga, àquela altura o líder claro do movimento, anunciou: “A ocasião para isso se perdeu”.

Mesmo com alguma insistência de Tiradentes, Alvarenga Peixoto e do padre Rolim, era o fim da linha. Nos meses seguintes, o governador mandou espionar os principais envolvidos para, finalmente, dar voz de prisão a 34 réus, que passaram por três anos de investigação.

Onze foram condenados à morte, mas a pena de todos fora alterada para degredo (expulsão ou exílio), exceto Tiradentes. Joaquim José da Silva Xavier foi o único que, no final das contas, foi enforcado, já que foi o único que admitiu que, de fato, conspirava contra o império.

Outros seis, como Gonzaga, foram condenados ao degredo perpétuo e outros dois, a dez anos de degredo. Outros quatro foram absolvidos e todos os clérigos (padres e cônegos) foram excomungados. Assim terminava o sonho da liberdade e da independência em Minas Gerais.

O legado da Inconfidência Mineira

Apesar de ter fracassado, a conspiração pela independência da capitania de Minas Gerais marcou a história por trazer, de forma inédita, o pensamento iluminista ao Brasil. Aqui, a pressão por um Brasil independente começaria a decolar, sendo seguida por outras revoltas, como a Conjuração Baiana. No Rio de Janeiro, a despeito dos esforços da coroa de marcarem a Inconfidência Mineira como um exemplo a não ser seguido, a ideia de liberdade ficou viva e em movimento.

24 anos depois, o imperador dom Pedro I, o neto de d. Maria, que condenara Tiradentes à forca, declara a independência do Brasil de Portugal. A monarquia, entretanto, continuou até 1889, até ser derrubada pela Primeira República. Até os dias de hoje, vários movimentos ideológicos reinterpretam e apropriaram-se de Tiradentes, como a ditadura do Estado Novo (1937 – 45) e a luta pela redemocratização durante o regime militar de 1964. Entretanto, nenhum deles de fato representou a luta de Tiradentes. De nenhum deles vimos nascer os princípios da Inconfidência, mas hoje vemo-lo pelo que ela foi: uma luta contra o abuso do poder do estado, dos altos impostos e da centralização de poder. Que ela possa servir de inspiração para pautarmos ideias por um Brasil mais próspero e justo.


Matheus Fialho

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas enquanto instituição.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *