Isso mesmo que você leu no título. E eu vou até dizer de novo em negrito: a direita brasileira não tem tradição. Tanto os liberais e libertários quanto os conservadores e olavistas. E é por isso que a esquerda domina o debate público há tanto tempo. Para demonstrar isso, preste atenção na foto abaixo:
Estes quadros contém os nomes e rostos dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. Há exatos 100 anos, eles se propuseram a reinventar e modernizar a cultura brasileira, e o fizeram tão bem que até hoje são lembrados.
A primeira geração modernista teve Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral como ícones da moda desfilando pelas ruas com roupas de grife europeias e influenciando a juventude, enquanto a segunda geração modernista teve nomes como Graciliano Ramos e Jorge Amado mudando para sempre o foco cultural do Brasil ao substituir a literatura de origem europeia pela local cultura do sertão, ascendendo a cultura nordestina ao seu atual lugar de destaque. Seja na moda, na arte, na literatura, ou mesmo na música, não houve nada que o modernismo trazido por eles não tenha mudado.
A Nova Esquerda nos ombros de gigantes
Com a política não foi diferente, pois eles também iniciaram no Brasil uma nova e rica cultura de esquerda. Antes do modernismo, a esquerda brasileira era formada por liberais membros da elite aristocrática conservadora, como Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa. Com o modernismo, porém, surge no Brasil a esquerda comunista. Oswald, Tarsila, Graciliano, e vários outros modernistas estavam todos envolvidos com o Partido Comunista Brasileiro, com Jorge Amado sendo até eleito deputado pelo partido. Tarsila teria viajado para a União Soviética por um tempo e Oswald teria se encontrado com Luís Carlos Prestes, líder comunista responsável pela intentona comunista, uma tentativa nacional de golpe de Estado aos moldes da União Soviética.
Continuando o trabalho deles, teríamos Caetano Veloso e Gilberto Gil com o movimento tropicália, servindo de resistência velada contra a ditadura militar e re-categorizando a esquerda como defensora dos direitos humanos e inimiga das ditaduras totalitárias. Os guerrilheiros comunistas, que passaram por um revisionismo para serem vistos como defensores da democracia, contaram com a ajuda de padres para se esconder em igrejas e , após a redemocratização, se tornaram importantes jornalistas e políticos.
E vale lembrar, claro, que toda essa estrutura que descrevi está longe uma cabala de gente do mal querendo dominar o Brasil. Todos os modernistas e artistas aqui citados foram gênios de seu tempo com obras e conquistas maravilhosas. Qualquer um que leia Grande Sertão Veredas ou assista ao Auto da Compadecida perceberá a importância da cultura nordestina.
O que acontece é que esses 100 anos de histórias e culturas são o que forma a esquerda brasileira como um movimento estruturado de maneira bem burkeana em todos os ramos da sociedade. Quando artistas da Globo defendem o PSOL, estão, entre outros, sobre os ombros de Oswald, Tarsila, Caetano e Gil; quando o MST invade terras, o faz sobre os ombros da teologia da libertação e de “Morte e Vida Severina”; e quando Lula defende o bolsa família e o desenvolvimento do nordeste, o faz sobre os ombros de Graciliano e Jorge Amado. A população olha para essas ideias e não estranha, porque já as conhece.
É tamanha a hegemonia da extrema esquerda no mercado de ideias brasileiro que, segundo o antropólogo Flávio Gordon, a cultura política socialista ocupa o centro do espectro político, ao ponto que a social democracia é vista aqui como “direita”, classificação inédita no mundo. A história do Brasil nos últimos cem anos é a história da esquerda comunista, e ser de esquerda no Brasil é senso comum. Compare tudo isso que eu falei com a direita. O que nós temos?
A Nova Direita sobre um castelo de areia
O Brasil de 1922 já começa com um enorme desfalque de conservadores. Isso porque, conforme Machado de Assis retrata na obra Esaú e Jacó, os conservadores e liberais do fim do império se dividiram, via de regra, entre monarquistas e republicanos. Quando a monarquia caiu, grande parte dos monarquistas, junto de monarquistas liberais como Nabuco e Rebouças, saiu da vida política ou se tornou dissidente (Revolta da Armada e Canudos). Quando Prudente de Moraes assumiu em 1894, os saquaremas restantes já haviam sido censurados ou reprimidos, e a sua tradição conservadora baseada em Edmund Burke se perdeu por mais de cem anos.
Já os liberais, como afirma o historiador Antonio Paim, duraram até o período do Estado Novo, onde a ditadura Vargas os perseguiu e cortou sua tradição pela raiz e os fez pendular como subgrupo de autoritários e populistas. Mais do que isso, Vargas fez a sua própria revolução cultural, introduzindo o nacionalismo e o apreço às forças armadas na população.
Após a era Vargas, os liberais estariam divididos entre os integralistas de Miguel Reale, literalmente nazistas brasileiros, e os moralistas de Carlos Lacerda e a União Democrática Nacional.
Foco aqui em Carlos Lacerda, tido pelo jornalista Eduardo Bueno como o melhor que a direita brasileira já teve a oferecer, foi também um dos idealizadores do golpe de 1964 na esperança de conseguir se tornar presidente após os militares devolverem o poder (ao invés disso eles dissolveram os partidos políticos). Morria pela a segunda vez a tradição liberal no Brasil. A partir daí, a ditadura militar cria a sua própria revolução cultural, que permaneceu até recentemente no Brasil da seguinte maneira:
- Conservadores: Ainda sem uma raíz intelectual burkeana, a Era Vargas e o Regime Militar os fez perder a noção do que deveriam conservar. Formado por reacionários, viúvas da ditadura, e religiosos tradicionalistas ou fundamentalistas. Não tinham ideias ou partido próprio, então votavam no PSDB (centro-esquerda).
- Liberais: Ou tentaram resistir à ditadura institucionalmente, como Ulysses Guimarães, ou fizeram parte do regime, como Hélio Beltrão. As raízes de um liberalismo independente surgiram nos anos 80 com Roberto Campos, Henry Maksoud, e José Guilherme Merquior, mas ainda seriam minoritárias por décadas. Não tinham representação popular nem pessoas suficientes para formar um partido, logo também votavam no PSDB (centro-esquerda).
Notou que até agora eu nem toquei na parte artística ou cultural? É porque a direita não teve mesmo. Salve algumas exceções pontuais como “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freire, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade perto da ditadura, ou na música sertaneja raíz, onde traços do conservadorismo tradicional católico sobreviveram ao expurgo das cidades, manifestações culturais duradouras de direita são quase inexistentes quando comparadas com às da esquerda. O entretenimento da Jovem Guarda de Roberto Carlos, mesmo que com um enorme impacto cultural na juventude da época, trazia como mensagem muito mais a estética americana de Elvis Presley (vazia) do que uma mensagem política. Até hoje a esquerda usa trechos de “é proibido proibir” ou “apesar de você” em seu ativismo político, mas você não vê a direita citando a “namoradinha do meu amigo”, vê?
A razão disso é que faltava, acima de tudo, uma tradição literária a seguir. A tradição conservadora foi extinta em 1894, e a liberal, em 1930. Os poucos que depois disso surgiram teriam seus nomes para sempre manchados pelo envolvimento com ditaduras, fragmentados pela troca de regime, ou foram constantemente reprimidos por elas.
Prova disso são as próprias redes sociais do SFL Brasil, que constantemente postam frases de Thomas Sowell, Milton Friedman, Margareth Tatcher e Ayn Rand, mas postam bem menos sobre nomes liberais brasileiros como José Guilherme Merquior, Roberto Campos, Carlos Lacerda, Joaquim Nabuco, André Rebouças, e Ruy Barbosa.
Nossas referências atuais de liberalismo e conservadorismo são importadas, e por isso a população brasileira se assusta ao ouví-las. Nem mesmo seus defensores entendem direito o que defendem, a exemplo de Carla Zambelli confundindo ao vivo a definição de conservadorismo com a de civilização ocidental (filosofia grega, direito romano, e moral cristã).
Uma Nova Semana de 22
Enquanto a sociedade brasileira vê a esquerda como um movimento contínuo, estruturado solidamente na cultura de todos os ramos da sociedade brasileira, ela não consegue entender as ideias de direita. É uma colcha de retalhos entre intolerantes religiosos, viúvas da ditadura, falsos moralistas que se provaram golpistas depois, e pessoas como Ruy Barbosa, que eram limpas e competentes mas não conseguiram construir bons sucessores para suas ideias.
Apenas em entre 2013 e 2018 a internet, local onde a direita cresceu pela cultura dos memes, possibilitou às massas ter acesso à literaturas e produtores culturais (youtubers) que explicassem suas visões de mundo novamente e formassem a Nova Direita. Esforços do Instituto Liberal, Instituto Mises Brasil(agora Instituto Rothbard), Olavo de Carvalho e Editora Record, assim como movimentos como o MBL e o Vem pra Rua com seus memes políticos, trouxeram de volta um século de tradições políticas e culturais perdidas, apenas para serem de novo manchadas pelo espectro do bolsonarismo.
Pegue, por exemplo, o Kim Kataguiri. Ele é sem sombra de dúvidas um dos deputados que mais fez pelo liberalismo em seu mandato, aprovando número recorde de projetos, chefiando a comissão de educação, abrindo mão de privilégios e doando grande parte de seu salário mensalmente para instituições de caridade. Mas a esquerda olha para ele e pensa “o que é você”? Ela só conhece a direita como defensores da ditadura, e a referência histórica mais próxima de Kim é Carlos Lacerda, o moralista que virou golpista.
Este ano de 2022 é único, pois faz 200 anos da Independência e 100 anos da semana de arte moderna. Diferente da esquerda, não temos nomes históricos que possamos nos orgulhar e emoldurar em nossa parede. A nossa geração é a primeira do último século a recuperar as tradições do liberalismo e do conservadorismo como forças de massa e partidárias. É nossa responsabilidade criar uma nova cultura na direita, uma sem o espectro da ditadura ou do Bolsonarismo. Como os jovens da geração heróica de 22, é o nosso dever resgatar nossas raízes perdidas e com elas construir as novas raízes culturais da direita brasileira, de forma que os jovens daqui a 100 anos possam se apoiar nos nossos ombros para fazer um Brasil melhor.
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