A arte copia a vida? O que a ficção nos ensina sobre regimes autoritários

A guerra bruxa não é tão mágica assim

Impossível falar de Harry Potter sem lembrar de um dos maiores vilões literários e cinematográficos: aquele que não deve ser nomeado. Lorde Voldemort, lorde das trevas, Tom Riddle, todos esses nomes remetem ao mesmo personagem, conhecido por sua crueldade inigualável, sua sede de poder e sua arrogância ao definir uma raça como mais pura e digna que as demais – os puro-sangue – mesmo que o próprio não pertencesse a essa raça, sendo mestiço. Em busca do poder supremo, liderou duas grandes guerras bruxas, verdadeiras chacinas, impondo seu ideal a todos e cerceando a liberdade de quem ousasse discordar.

Ainda nesse universo, mas agora nos filmes de Animais Fantásticos, Gellert Grindelwald marcou seu tempo por ser um bruxo sagaz, extremamente inteligente e poderoso. Contudo, este poder subiu à cabeça e o fez crer que as suas decisões seriam as melhores para todo o mundo bruxo. Assim, liderado pelo seu preconceito com bruxos que não fossem puro-sangue, liderou guerras contra seu ex-amigo, Alvo Dumbledore, e contra todos que discordassem de sua superioridade como líder do mundo mágico.

Aqui começam as semelhanças com a realidade: Adolf Hitler fez o mesmo. Apesar de parecer exagero num primeiro momento, basta um olhar um pouco mais atento aos fatos para enxergar os pontos comuns: uma guerra anterior (batalhas de Grindelwald – 1ª Guerra Mundial) que gerou uma segunda ainda maior e mais destrutiva (primeira guerra bruxa – 2ª Guerra Mundial), uma discriminação irracional pautada única e exclusivamente na vontade do ditador (mestiços e chamados “sangue-ruim” – judeus e demais raças/etnias que não se enquadrassem no ideal), uma exaustiva perseguição a todos que discordassem de suas ordens e a imposição de uma raça como superior (puro-sangue – raça ariana). São inegáveis os paralelos entre a saga e as guerras infelizmente vivenciadas pela humanidade do século passado.

Os dois lados da moeda

Mudando de saga, adentramos os Jogos Vorazes. Em Panem, após uma árdua guerra entre os distritos e a capital, quedou-se a última como vitoriosa, fazendo com que os 12 distritos restantes – visto que o 13 teria sido abolido – devessem servir a todas as necessidades dos moradores da Capital. Coriolanus Snow, a fim de manter a sede de poder de sua família, jogou todas as cartas sujas que podia para ascender ao “trono”, tornando-se o temido Presidente Snow, conhecido por manipular os jogos, tornar a vida dos distritos miserável e matar seus inimigos envenenados, sempre calmo, frio e discreto, a fim de não levantar suspeitas.

Contudo, a saga traz mais uma ditadora: Presidente Alma Coin, tendo seu sobrenome como um possível trocadilho para “moeda”, representando como ela e o Snow, apesar de estarem em lados opostos, eram dois lados da mesma moeda, visto que possuíam a mesma sede pelo poder, o mesmo ódio nos olhos e a mesma arrogância para acreditarem serem superiores e os únicos capazes de liderar propriamente Panem, sem qualquer espaço para oposição. Coin, que em boa parte das obras faz questão de ressaltar a maldade de Snow, sutilmente manipula os personagens para que guerreiem, matam e morram em prol de sua causa, sem que a mesma tenha que sujar as próprias mãos.

Aqui temos não só ditadores a serem lembrados, como boa parte da história de um país: a Rússia. Sendo um país feudal até sua guerra civil (1917-1922), passou a ter o governo Bolchevique no poder, com Lênin, e depois passando para Stalin. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas consistiu, de forma muito sintetizada, num grupo no poder liderando a Rússia e demais territórios anexados, utilizando da produção de toda a União, e consequentemente de sua população, para prover para o grupo de líderes e seus próximos enquanto o restante da população sofria em sua miséria – como é o caso do Holodomor, vivenciado pela Ucrânia. Snow não fez diferente disso, ao tomar para si o poder após a guerra e fazer os distritos alimentarem a Capital às custas do bem-estar da população.

Numa história mais recente, Vladimir Putin também deve ser citado. Assemelhando-se tanto à Coin quanto ao Snow, Putin faz com que seus soldados matam e morram em prol de suas causas, manipula as mídias para contarem apenas a narrativa que lhe interessa – alienando a população – e faz seus oponentes desaparecerem sem deixar vestígios, dizendo defender as causas que são melhores para a população russa, quando na realidade mascara as cartas que joga para se manter no poder a todo custo.

De boas intenções o inferno (e a galáxia) estão cheios

É claro que Darth Vader não poderia ficar fora dessa lista. Revoltado com a realidade em que vivia, vendo sua mãe ser escrava de um governo corrupto e falido, cedeu ao ódio que crescia dentro de si e usou o poder de um Jedi, que deveria proteger a população, para tomar o poder na galáxia, instaurando o Império Galáctico e matando friamente a todos que se opusessem à sua ditadura. Aos que conhecessem um pouco mais a saga, fica fácil enxergar que, para além do ódio do Darth Vader, era Palpatine (Darth Sidious) quem liderava e instigava essa raiva iminente de Anakin – como visto no Episódio III. Contudo, ao contrário das más intenções de Palpatine, Vader foi cegado pelo seu ódio ao sistema e realmente passou a acreditar que suas ações, por pior que fossem, eram em prol de um bem maior, evitando que a opressão existente continuasse – mas que na realidade gerou uma nova forma de oprimir a população.

O exemplo mais claro da realidade a se enquadrar aqui é o próprio comunismo, explicado, dentre outras obras, por Marx e Engels em seu Manifesto Comunista. Uma leitura básica da obra deixa claro as severas críticas a um sistema capitalista opressor, e oferece como solução uma revolução, com a tomada violenta do poder, às custas dos opressores e instaurando uma nova forma de governar. Ocorre que, assim como Darth Vader, a inconformidade com um sistema desigual motiva uma revolução até mais sangrenta do que as desigualdades vivenciadas, levando a uma falsa crença de violência e opressão justificadas em prol de um bem maior.

Por melhor que seja o discurso, inexiste a possibilidade de um governo, seja qual for e aonde for, pregar a liberdade através do derramamento de sangue dos opressores. Se não há espaço para discordar, para debater e ponderar acerca das decisões de um líder, definitivamente não há possibilidade de defender a liberdade da população. Não somente isso, mas qualquer ditadura anula friamente as características dos indivíduos governados, deixando-os à mercê de um governo que apenas preza pelos próprios interesses, doutrinando duramente o restante da população e aplicando a censura onde lhe for conveniente.


Lorena Mendes

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.

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