Quem é você sem a lei?

Quem é você sem a lei?

Se, hoje, retirassem a legislação de nosso país, o que lhe restaria? Você, como indivíduo, possui um compasso moral forte o suficiente para nortear suas ações? Indo além: se ao invés de retirar as leis, estas fossem trocadas gradativamente por normas cada vez mais autoritárias, você seria capaz de notar a mudança?

A base para a sociedade ocidental atual deriva, em grande parte, das leis que orientam suas nações. Mas, como seria se essas leis não existissem? Para entender a noção de uma civilização sem leis formais, é preciso voltar um pouco no tempo. 

A Grécia Antiga é um ótimo exemplo de uma sociedade que não tinha um sistema legal formal como o que conhecemos hoje. Em vez disso, a moralidade e os costumes desempenhavam um papel crucial na regulação do comportamento dos cidadãos.

Os gregos acreditavam que a moralidade era essencial para a harmonia social. Suas crenças religiosas e mitológicas influenciavam suas ações e decisões. As leis eram menos codificadas e mais baseadas em tradições e valores compartilhados. Os cidadãos, por sua vez, eram guiados por normas morais transmitidas oralmente e por práticas culturais.

A ágora, uma espécie de praça pública, era o centro da vida grega. Lá, os cidadãos se reuniam para discutir questões políticas, éticas e sociais. O debate público e a persuasão eram fundamentais para resolver disputas e tomar decisões. Não havia um sistema judiciário formal; em vez disso, os cidadãos buscavam consenso e resolução através do diálogo.

A cidadania grega estava ligada à participação ativa na vida pública. Os cidadãos tinham responsabilidades morais para com a comunidade. A honra pessoal e a reputação eram altamente valorizadas. Aqueles que agiam de forma imoral ou prejudicial à comunidade enfrentavam o ostracismo social. Vê-se, portanto, um forte exemplo de indivíduos norteados por uma forte noção de moral, valores compartilhados e um forte senso de autorresponsabilidade.

Avançando um pouco nesta linha do tempo, em sociedades antigas, como o Egito antigo e a França pré-revolução, o poder era concedido a um único cidadão que atendesse a dois requisitos: nascimento em uma família rica e poder estatal. Esse líder se auto proclamava como a “voz de Deus”. As leis eram poucas e favoreciam principalmente as classes hierárquicas ou os financeiramente poderosos. O Absolutismo, caracterizado por concentração total de poder, excluía certos tipos de cidadãos, facilitando a corrupção e a escravidão.

Um pouco mais à frente, pensadores do liberalismo, como Voltaire e Montesquieu, combateram o neo-absolutismo. Eles mostraram que uma estrutura social com poder dividido entre várias partes era mais racional e eficaz. O liberalismo retomou e enfatizou a importância de princípios morais universais, como justiça e igualdade, na criação de um sistema jurídico justo e equitativo. Reforçaram também a noção de que a moral é o conjunto de regras que determinam o comportamento dos indivíduos na sociedade. Essas regras são adquiridas por meio da cultura, educação, tradição e cotidiano.

Ao longo da história humana, a relação entre direito e moralidade tem sido objeto de intenso debate e reflexão. Algumas escolas de pensamento argumentam que o direito deve ser completamente separado de considerações morais, enquanto outras sustentam que a moralidade é a própria base da lei e da ordem legal. 

Um bom exemplo dessa junção é a obra do sociólogo Émile Durkheim, que argumentou que a sociedade era mais do que a soma das partes individuais. Ela possuía uma existência própria e independente dos indivíduos. A solidariedade social era fundamental para a coesão da sociedade, alcançada pela integração dos indivíduos em grupos e instituições sociais.

O movimento mais moderno acredita numa necessária separação entre a moralidade e o Direito, buscando um falso ideal de que desvincular a lei da moral tornaria a primeira mais imparcial. A imparcialidade legislativa é sim necessária, no sentido de que a lei deve ser criada sem levar em conta um caso em específico, mas sim de forma que possa abranger diversos casos. Contudo, as leis são, na realidade, um reflexo da moralidade presente em uma sociedade. 

Os códigos jurídicos que norteiam uma nação, por exemplo, são escritos, ainda que de forma indireta, como resposta aos costumes daquela sociedade. A separação entre lei e moral não só seria incapaz de tornar a legislação mais imparcial, como tende a ser prejudicial para aquela nação. O direito positivo, ou seja, aquele que impõe comportamentos, só atende às necessidades de uma democracia se for reflexo das vontades daquele povo. O ponto comum de regimes autoritários é possuir uma legislação que reflete interesses de apenas um indivíduo, ou de um grupo seleto de indivíduos – como remonta o Absolutismo.

O indivíduo que age corretamente por puro medo da legislação, ignora a existência de uma moral intrínseca ao seu ser. Age doutrinado, sem levantar questionamentos e sem entender se as ordens que lhe são dadas zelam, de fato, pelo seu melhor interesse. Ao contrário, pelo medo de ser punido, obedece o que mandam, como quem segue cegamente um dogma, aceitando-o por inteiro e, por conseguinte, alimentando o poder daqueles que possuem a responsabilidade de redigir e fazer valer o ordenamento jurídico.


Lorena Mendes

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.


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