Os brasileiros merecem o país que tem?

Os brasileiros merecem o país que tem?

“O brasileiro é um feriado”
-Nelson Rodrigues

Começo o texto de hoje com o que é talvez uma das frases mais “mansas” de Nelson Rodrigues quando o assunto é o Brasil, se é que algo assim existe em sua obra. Cronista e Jornalista, Nelson Rodrigues constantemente transitava entre a ficção e realidade nos debruçando através de seus escritos sobre todos os assuntos que tocava, aqui notadamente a relação de dubiedade com seu país, ora defendendo-o e falando contra qualquer síndrome de vira-lata, ora botando o dedo na ferida e mostrando nossas próprias hipocrisias. É válido ressaltar que a frase destacada acima é dita num contexto onde o próprio Nelson Rodrigues exalta o espírito comemorativo brasileiro, mas esta mesma frase pode carregar um lado sombrio, talvez nunca sequer notado pelo autor, mas que teria muito muito a ver com as entranhas do famoso “jeitinho brasileiro” e com alguns fatos que podemos abordar ao decorrer do texto. Assim, não é absurdo dizer que o próprio Nelson Rodrigues, como muitos, vêm a compartilhar sentimentos mistos não só sobre o país em sí, como também com relação ao nosso modo de vida, tradições, comportamento, etc, uma vez que é atribuída ao mesmo a seguinte exortação:

 “O brasileiro não está preparado para ser o maior do mundo em coisa nenhuma. Ser o maior do mundo em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.”

Assim, pinta-se um retrato dúbio de uma nação. Perguntar não ofende: O Brasileiro merece o país que tem? Para responder, permita-me o leitor não me alongar mais tanto nas citações diretas e lembrar-lhes apenas da icônica frase de Tom Jobim. Ora, realmente fica  óbvio que “O Brasil não é para amadores” quando consegue ser ao mesmo tempo o décimo país com maior número de startups registradas e a pior qualificação num ranking de competitividade educacional. Mesmo se tentarmos pôr em cheque a existência de uma correlação direta entre ambas, ainda soa bastante contra-intuitivo, tal qual o fato de que tivemos uma renovação menor na câmara do que na eleição passada, mesmo sob polarização pujante e uma possível recessão econômica se encaminhando. Com isso, não  pretendo realmente dizer que vivemos uma contradição ambulante e insolucionável, porque acredito que todos esses fatos podem ser explicados sob a devida ótica, mas trazer a velha máxima: Nem tudo é preto no branco, principalmente quando não há a opção de ser um amador. Se pretendo ser responsável com o leitor (o que sempre fará parte do objetivo) raramente poderei dar uma resposta de sim, ou não, simplesmente. Aqui vamos nós rumo a um “depende” com seus devidos detalhes. Isto posto, os problemas se alongam, com números como o Índice de desenvolvimento humano pior e a inflação com expectativa de alta , enquanto os brasileiros demonstram cada vez menos entendimento de seu sistema político. Tendo essa noção tal pergunta se faz mais relevante. Logo, permita-me o leitor levá-lo a uma rápida olhada no que temos de teoria política para ver se existe um meio de olhar o Brasileiro baseado na ótica política, sem com tal ato ser vago ou injusto.

Provavelmente, de Thomas Jefferson à John Rawls, ambos teóricos políticos e filosóficos, um fator seria de comum acordo: A necessidade de participação e organização política, (com cada um apontando os porquês a sua maneira), mas engana-se quem acredita que sequer isso é uma unanimidade. Lendo autores como Murray Rothbard e Ludwig von Mises, da escola austríaca, por exemplo, é possível tecer bons argumentos tanto à favor da participação política quanto contra, uma vez que na noção Rothbardiana o estado é nada mais nada menos que uma organização que trabalha mediante e dependente da espoliação forçada através de tributação, não realmente produzindo nada, numa última análise. Leitores igualmente sagazes poderiam inferir que, portanto, culpar alguém de omissão enquanto diariamente espoliado pelo estado é o mesmo que culpar a vítima de um crime por não adentrar no esquema que a lesou. Entretanto, outros, poderiam argumentar que se é assim, então não usar a política como forma de tentar conter abusos institucionais é um desperdício de meios (E em alguns casos uma certa leniência com a própria condição). Curiosamente, ambos argumentos estão corretos dadas as devidas proporções, e daqui se percebe que poderiam nascer inúmeros impasses à análise que pretendemos, abrindo muito o escopo, algo que não é bem a pretensão aqui. Se na esfera política há uma nebulosidade de conceitos e interpretações possíveis (que diriam mais sobre um país e um povo, mas que são intermináveis), é interessante praticar uma modéstia sincera e analisar o Brasil e o Brasileiro numa esfera um tanto mais palpável e que ainda assim  nos dá pistas para a resposta que procuramos: A esfera cível.

Isto porque nela existe uma gama pré-estabelecida e extremamente mais consensual de comportamentos a serem tomados para uma boa convivência e impactos sociais positivos que na política propriamente dita, onde uma gama de ideologias vêm pondo (ou ao menos tentando inferir) uma série de críticas ao modelo político tradicional. Por outro lado, a ética cível parece mais acessível, verificável e até empírica que a esfera política, portanto se faz mais justo olhar o Brasil através dela.

 Numa primeira olhada, as coisas já parecem um tanto quanto complicadas. Pesquisas indicam que o Brasil é o país da América Latina com a menor confiança nas instituções e nas pessoas. Isto, por si só, soa alarmante não só para negócios, como para iniciativas no geral, e até para aspectos envolvendo socialização e associação de pessoas. Não seria surpreendente inferir que a alta permissividade à corrupção e uma tendência cultural ao atraso à compromissos sejam fatores que denotam o porquê estamos numa situação onde a confiança é baixa, aliás, essa será uma palavra chave daqui em diante no texto: confiança.

Isto porque, há uma teoria que tenta explicar como a dinâmica da confiança entre pessoas funciona, denominada teoria dos jogos. Essa teoria funciona à base de um experimento, onde duas pessoas podem escolher livremente quando e se vão colocar moedas dentro de uma caixa, que lhes recompensará se ambos colocarem moedas. Um jogador não sabe a ação do outro até que a rodada termine, mas eles sabem que se um colocar e o outro não, aquele que não colocou a moeda receberá três moedas, enquanto que o que a colocou perde a moeda colocada. A recompensa padrão para ambos cooperando é de duas moedas (Neste site, é possível jogar uma simulação interativa que explica pormenores da teoria). Tal dinâmica serve para analisar possíveis comportamentos diante de uma quebra  de confiança ou até do mantimento desta, e mostra que em determinadas situações, onde a suspeição sobre os demais é alta, a tendência é que todos percam (ou deixem de ganhar) cada vez mais. Além disso, se a recompensa for “pequena demais” (o que aqui matematicamente equivale a uma moeda para cada moeda colocada) o “jogo” (leia-se a cooperação) perde seu sentido, já que se perde uma moeda para ganhar outra, o conhecido “jogo de soma zero”. Numa dinâmica sem uma recompensa existente de fato, ganha apenas aquele que trapacear primeiro (já que este ganharia sua moeda de volta e a de seu adversário). Além disso, se o jogador do outro lado, que sofreu a trapaça parar de cooperar, esqueça a dinâmica, agora o resultado dela é literalmente zero.


Tal ambiente hostil não parece similar aos dados descritos anteriormente? A alta suspeição entre as próprias pessoas é algo que se verifica não só nos dados, mas também na nossa própria arquitetura, onde casas se escondem por entre muros, fugindo dos olhares e intenções alheias num contexto onde mais da metade dos brasileiros não se sentem seguros. Portanto, é difícil entender outra coisa senão o fato de que caímos numa espiral ruim da teoria dos jogos, onde quer por um instinto de revide ou de autopreservação tentamos nos isolar daqueles que começaram este ciclo, cujo início provavelmente remonta das origens da nossa história. Talvez por isso parte de nós veio se despegar das “responsabilidades” as quais se referia Nelson Rodrigues, passando a jogar o “jogo da confiança” como o velho arquétipo malandro, dando um “feriado” às relações, à ética, e, em última análise, à própria confiança. Por outro lado, este mesmo lugar merece o devido  aplauso  quando tenta vencer este ciclo na inovação e na caridade, por exemplo.

Portanto, lamento se desapontar algum leitor que quisesse alguma resposta altamente reveladora, mas uma conclusão justa é puramente individual. Estamos falando de um brasileiro que apenas se protege e se esforça para conviver e superar as dificuldades do ambiente ou alguém que só as perpetua? Como essa pessoa é com seus acordos, contratos, prazos?  Ela cumpre o que promete? Mais ainda, ela realmente se importa com o tipo de relações que constrói? Em suma, quem é ela na teoria dos jogos? Dependendo do que digamos, a resposta pode mudar bastante, porque seria extremamente injusto dar a todos os brasileiros um único rótulo sendo todos nós tão diferentes entre nós mesmos em vários aspectos. Certo é que uma reforma cultural e de ambiente é urgente, pois se o ser humano trabalha com reforço comportamental, precisamos nos certificar de que a recompensa para a cooperação e desincentivo à “trapaça” estão balanceados, bem como o entendimento geral sobre tal dinâmica, para tentarmos minar o ciclo negativo criado em seus diversos fatores. O primeiro passo é o entendimento da importância do indivíduo enquanto tal, e o respeito a esses preceitos, em quaisquer situações, pois se é certo que nem todos merecem o brasil que têm, todos são afetados por ele.


*As opiniões do autor não representam o Damas de Ferro enquanto instituição.

Referências

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BRYSON, Lucy. Why Brazilians are always late. BBC: Travel, [S. l.], p. 1-1, 30 jul. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/travel/article/20180729-why-brazilians-are-always-late. Acesso em: 15 jan. 2023.

CÂMARA DOS DEPUTADOS (Brasília, Brasil). Com mais deputados reeleitos e menos novatos, renovação da Câmara será de 39% Fonte: Agência Câmara de Notícias. Agência câmara de notícias, [S. l.], p. 1-1, 3 out. 2022. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/911393-com-mais-deputados-reeleitos-e-menos-novatos-renovacao-da-camara-sera-de-39/. Acesso em: 15 jan. 2023.

CNN (São Paulo, Brazil). Educação brasileira está em último lugar em ranking de competitividade. CNN Brasil, [S. l.], p. 1-1, 17 jun. 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/educacao-brasileira-esta-em-ultimo-lugar-em-ranking-de-competitividade/. Acesso em: 15 jan. 2023.

DE LIRA, Roberto. Boletim Focus: mercado volta a projetar inflação maior em 2023, 2024 e 2025: Projeção para taxa de juros básica (Selic) foi mantida em 12,25% para este ano, mas a de 2024 subiu de 9,0% para 9,25%. Infomoney, [S. l.], p. 1-1, 9 jan. 2023. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/economia/boletim-focus-mercado-volta-a-projetar-inflacao-maior-em-2023-2024-e-2025/. Acesso em: 15 jan. 2023.

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