Only Fans, Cyberbullying, e o indivíduo na parasociedade digital

Only Fans, Cyberbullying, e o indivíduo na parasociedade digital

O Japão inteiro parou quando a lutadora profissional Hana Kimura tirou a própria vida. Hana tinha 22 anos e participava de um reality show da Netflix chamado Terrace House, no qual três homens e três mulheres vivem temporariamente na mesma casa. Entretanto, ao ter um ataque de fúria e tirar o chapéu de um participante que estragou sua roupa de luta, ela atraiu uma fúria tão grande das redes sociais que entrou em depressão e, por fim, desistiu de tudo.

 O caso de Hana chama a atenção porque ela não era nem de longe uma pessoa de mente fraca: participava de lutas desde os 7 anos e havia ganhado torneios juvenis na adolescência. Era uma pessoa intensa, que vivia no ringue e lutava contra coisas muito piores do que apenas palavras ruins. Como então uma pessoa assim foi vencida por um cancelamento de internet? Entender isso é importante não apenas para nossa vida digital, como também nos mostra uma nova luta pelo indivíduo que não podemos ignorar.

O verdadeiro perigo do Cyberbullying

Vou compartilhar com você, caro leitor, algumas das mensagens que Hana recebeu. Quero que preste bem atenção nelas e tente adivinhar o que todas elas têm em comum.

  • “Você é a coisa mais nojenta que já apareceu em Terrace House. Não, em toda televisão”.
  • “Você é feia tanto por dentro quanto por fora.”
  • “Se você pudesse desaparecer rápido, eu adoraria.”
  • “Se você só desaparecesse, nós todos estaríamos muito mais felizes. Então, por favor, vai logo.”
  • “Vai logo e morra. Eu vou dizer mais uma vez: vai logo e morra.”
  • “Essa gorila arruinou o show”. (Hana tinha pele mais escura por ser uma mestiça filipina)

Talvez você tenha achado muito extremo, talvez não tenha achado nada demais, ou provavelmente alguma coisa entre esses dois. Mas você percebeu como, em todas essas mensagens, você leu com a sua própria voz? Agora, imagine receber mais de 100 dessas mensagens todos os dias, ao longo de dois meses. Muitos de nós vamos dormir e deixamos pra recomeçar o dia quando acordarmos, certo? Hana acordava e as mensagens continuavam lá. 

É uma situação onde não importa o quão forte você seja, pois em algum momento vai encontrar uma mensagem que te atinja e que abrirá o caminho da sua mente para as outras. É um reforço mental negativo: pouco a pouco, repetí-las para si mesmo irá te consumir por dentro, internalizando os insultos e tornando a decisão de acabar com tudo cada vez mais tentadora. 

Parece horrível, né? Mas já vivemos isso no Brasil há não muito tempo.

O Tombo que Uniu um País

Na edição de 2021 do reality Big Brother Brasil, a rapper Karol Conká foi eliminada com 99,17% dos votos. Todo o país, incluindo eu e você, sabiamos de seu nome, suas mentiras, seus assédios, e intolerâncias religiosas. A ira foi tanta que teve até mesmo âncora de jornal local terminando seu programa ensinando como votar para eliminá-la, e ela saiu da casa tendo perdido todos os seus patrocínios e sido abandonada por todos os seus fãs.

Claro que há muita diferença entre Hana Kimura e Karol Conká, afinal o tempo mostrou que Karol tinha uma personalidade reprovável mesmo fora do Big Brother, mas que o surto de Hana foi na verdade armado pelos produtores do Terrace House. Ainda assim, mesmo se você não tiver participado desse cancelamento, eu te pergunto: como você se sentiria se a Karol Conká também tivesse tirado a própria vida? Porque ela provavelmente teria se não tivesse passado a pior parte de seu cancelamento isolada numa casa sem internet.

Protegidos pelo nosso anonimato virtual,  pessoas disseminam ódio nas redes todos os dias. Todos nós vemos isso e pensamos ser a exceção, enquanto espalhamos o mesmo ódio sem perceber que nossas palavras ditas sem pensar podem acabar matando alguém. A razão disso é algo que sempre existiu, mas que foi potencializado na era digital: as relações parassociais. 

Mas o que, afinal de contas, é uma relação parassocial?

Todas as noites, William Bonner aparece no Jornal Nacional e diz “Boa Noite”. Ele fala isso para uma câmera, sem nunca esperar que alguém o responda. Ainda assim, muitas pessoas ouvem isso na televisão e o respondem “Boa Noite”. Pode não parecer muito, mas estar lá todas as noites falando conosco é o suficiente para que criemos uma relação com ele. E claro…não conhecemos William Bonner na sua vida pessoal, então usamos o que vimos dele na TV para inventar um personagem do que achamos que ele seja. Fazer isso é ter uma relação parassocial com Bonner. 

Consegue imaginar o quanto isso foi potencializado no mundo digital? Temos agora uma vida virtual onde vemos personalidades da TV, músicos, atores, youtubers e streamers favoritos falando conosco “cara a cara”, e criamos relações parassociais com todos eles. Mais do que isso: nossa interação online faz com que criem essas mesmas relações parassociais conosco!

Algumas pessoas que acompanho nas redes sociais e me inspiram muito são Raphaël Lima, Ricardo Almeida, Paulo Cruz, Glenn Greenwald, Kambrea Pratt, e Eli Vieira. No entanto, meu melhor exemplo de relação parassocial seria o diretor do Livres, Magno Karl: desde que vi uma entrevista dele explicando como visitou cidades do interior do Brasil 20 anos atrás para difundir ideias de liberdade, eu criei um imenso respeito por ele. Ai vi que ele também era um comentarista de jornal e fiquei muito impressionado com sua inteligência. Então o segui no twitter para acompanhá-lo nas notícias do dia mas…ELE. SÓ. FALA. DO. VASCO!!! 

O Magno é um sócio torcedor do time, daqueles fanáticos que passam a noite de fim de semana no aeroporto só pra poder ver por 5 minutos os jogadores chegando do avião. Ver a emoção com que ele torcia pro próprio time me inspirou a voltar a acompanhar futebol e, mesmo que eu seja são paulino, a ficar feliz quando vejo que é o Vasco jogando! E não vou mentir: na primeira vez que fui convidado pelo SFL a ir para a Casa Livres, eu criei esperança de que poderia conhecê-lo.

Ele obviamente não estava lá no dia, mas digamos que estivesse e eu pudesse conhecê-lo. Sobre o que eu conversaria? Ok. Ele é uma pessoa muito inteligente e culta e deve ter um milhão de outros gostos, mas eu não sei absolutamente nada da vida pessoal dele além do fato de que ele adora o Vasco! 

Magno não é um dos nomes que mais acompanho, mas é um excelente exemplo de relação parassocial pois é muito fácil perceber como a imagem que ele nos traz online não condiz com quem ele é na vida real. É apenas uma caricatura criada exageradamente pelas poucas informações que ele decidiu compartilhar conosco. Na maior parte das vezes, porém, é muito difícil perceber essa divisão justamente porque compartilhamos online muito mais informações de nossa vida pessoal do que deveríamos. 

Quando você posta um stories no Instagram ou um textão no Facebook, todo mundo vê. Faça isso por tempo suficiente e você vira um personagem na cabeça das outras pessoas assim como Hana Kimura virou para seus espectadores. E isso tem consequências.

OnlyFans e as novas fronteiras do indivíduo

Quando postamos algo online, temos a ilusão de que estamos seguros e de que somente as pessoas que queremos verão o que postamos; no entanto, fazer isso é se iludir. A internet não é um lugar seguro. A internet é para sempre. Tudo o que você postou em qualquer lugar pode ser exposto com a pior interpretação possível, e lutar para esconder as coisas que publicou só vai torná-las ainda mais conhecidas. 

Exemplo maior disso não há do que o OnlyFans, uma rede social que viralizou na pandemia e é bem parecida com o Youtube, mas onde o produtor de conteúdo publica sua própria pornografia explicita para seus inscritos pagos. Os maiores canais costumam ser de mulheres e ganham cerca de R$500.000 todo mês, ao ponto de ter se tornado uma piada recorrente entre garotas que “se tudo der errado, vou abrir um OnlyFans e ficar rica”. A realidade do site, porém, é muito longe desse glamour: o usuário médio ganha apenas R$500 e tem 21 inscritos. E note: se a média é 1000 vezes menor do que o das pessoas que ficaram ricas na plataforma, significa que a esmagadora maioria das pessoas está ganhando bem menos do que R$500 (provavelmente, não ganhando é nada). 

Muitos produtores de conteúdo continuam mesmo assim na esperança de que um dia viralizem e façam sucesso, mas a triste realidade é que, no momento em que postaram seu primeiro vídeo, nunca mais poderão ter uma vida real. Isso porque casos não faltam de pessoas tendo seu conteúdo do OnlyFans vazado para os empregadores, pedindo para que sejam demitidos, e até mesmo seus filhos sofrendo bullying na escola porque os colegas de classe espalharam para toda a turma os vídeos de sua mãe fazendo sexo. 

A importância aqui do exemplo do OnlyFans, no entanto, não é fazer qualquer julgamento moral sobre os produtores de conteúdo em si, mas sim expor a fragilidade da privacidade do indivíduo na era digital. Você sabia, por exemplo, que o famoso áudio de Arthur do Val sobre as mulheres ucranianas, pelo qual ele teve seu mandato cassado, foi mandado para um grupo de Whatsapp com apenas 8 pessoas? 

Na era digital, basta apenas uma pessoa mal intencionada; e não importa se você postou num site privado para assinantes, se é seu ex publicando como vingança ou até mesmo se vazou porque seu celular foi roubado: qualquer pessoa que tenha postado nudes em algum momento de sua vida corre o mesmo risco de ter sua vida pessoal e profissional arruinadas pra sempre caso esse conteúdo seja vazado para a pessoa errada. Se for o seu caso, quem as ver criará uma relação parassocial com você, e te tratará como lixo por acreditar que você seria essa pessoa indescente que só pensa em sexo e não liga em fazer isso com qualquer um. Lutar para apagar será inútil, pois só fará com que 10 cópias surjam para cada foto ou vídeo apagados.

Isto tudo está claramente errado, e o caso de Hana chocou tanto o Japão que leis foram criadas para combater mais pesadamente o cyberbullying. Ainda assim, é importante estarmos cientes de que as relações parassociais que criaram este comportamento são agora a regra quando se trata de relações humanas. 

Privacidade Online: uma luta que não pode ser ignorada

O indivíduo, tal qual o conhecemos hoje, é tratado como pessoa pública, e a ele é exigido da sociedade o mesmo decoro. Da mesma forma, a luta pelo indivíduo só pode estar completa quando leva isso em consideração. É uma nova dimensão para o problema, com seus próprios perigos autoritários a serem combatidos.

Porque não se engane: muita gente que leu este texto ou que já conhecia as informações contidas nele começa a ver a censura como a única solução. E temos como culpá-los por isso quando a situação é a mais pura distopia? Ainda assim, a censura é ineficaz para conter o cyberbullying porque não altera a forma parassocial como nos relacionamos online. Pior: acaba é sendo o bode expiatório perfeito para tecnocratas censurarem as opiniões que discordam, segregando grupos políticos e, com isso, aumentando o ódio entre eles.

É uma situação complexa, pra qual não temos resposta fácil. Eu pessoalmente sou a favor das duras leis japonesas que punem o comportamento online resultantes da morte de Hana Kimura, mas não vejo a censura prévia proposta pelo PL 2630 como uma solução para combater isso. O que podemos fazer, no entanto, é incorporar à nossa defesa dos direitos individuais a luta pela privacidade online, compreendendo que a separação entre a vida pública e privada foi quase eliminada e lutando com unhas e dentes para preservar a separação que ainda existe.   

Até mesmo no mundo digital, o preço da liberdade continua sendo a eterna vigilância.


Paulo Grego

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.

1 comentário em “Only Fans, Cyberbullying, e o indivíduo na parasociedade digital”

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