O Estado e a Falência da Liberdade em “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago

O Estado e a Falência da Liberdade em “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago

E se, de repente, toda a sociedade ficasse cega? Sem engenheiros para manter a energia funcionando, sem operadores para gerir o sistema de água e saneamento, sem ninguém para realizar trabalho algum, forçados a enfrentar a misteriosa “cegueira branca”, uma doença que tornaria irrelevante até mesmo o conhecimento de um oftalmologista. Esse é o cenário do Ensaio sobre a Cegueira, romance de José Saramago. 

Em uma cidade, a população começa a perder a visão repentinamente, enxergando apenas uma densa “nuvem branca” sobre os olhos. Os primeiros infectados são enviados para uma quarentena forçada pelo governo, não por uma decisão fundamentada, mas simplesmente porque “era assim que se fazia antigamente”. Sem qualquer planejamento ou assistência adequada, cerca de 300 pessoas acabam isoladas em um prédio abandonado de um hospital psiquiátrico.

Antes mesmo do número de doentes chegar às centenas, a luta diária pela sobrevivência já se tornava desumana. Sem a visão, contando apenas com um escasso suprimento de alimentos do governo – que diminuía a cada dia – os cegos viam sua dignidade se esvair. A única forma de “proteção” oferecida era a vigilância militar, que impunha uma sentença de morte a qualquer um que tentasse escapar, tudo em nome da contenção da propagação da misteriosa doença que os atingia.

Ler cada página foi uma experiência angustiante, testemunhar a degradação da dignidade humana diante da cegueira — excrementos espalhados por toda parte, resultado da falta de infraestrutura e tecnologia para suprir as necessidades básicas; a alimentação, inicialmente dividida de forma comunal, logo se tornou insuficiente, favorecendo aproveitadores que, livres de punição, exploravam a limitação dos demais.

A cegueira involuntária não apenas roubou a visão,  mas culminou na perda da liberdade, uma vez que os afetados foram forçados a suportar o comunismo primitivo como única forma de organização viável. Contudo, esse cenário revela uma realidade que a ideologia marxista se recusa a admitir: seu sistema não elimina a opressão, apenas a centraliza e a transfere para novos dominadores.

Esse ponto de ruptura torna-se evidente quando um grupo de cegos passa a seguir um líder armado. A princípio, pode parecer contraditório que uma arma, cuja eficácia depende da visão, ainda represente poder. No entanto, sua posse simboliza autoridade, medo e submissão, reforçando que a força bruta e a coerção sempre encontram meios de se perpetuar. A ausência de visão não impede a perpetuação do domínio, pelo contrário, nesse novo regime de escuridão branca, a ordem é mantida pelo pavor e pela violência, e não pelo consentimento ou pela razão.

A cegueira, mais do que uma metáfora para a falta de discernimento, escancara a fragilidade da civilização diante do colapso de suas instituições. Sem a garantia de direitos individuais a moralidade se desfaz e a barbárie se instala, provando que, na ausência de liberdade e propriedade, o caos e a tirania emergem como as únicas certezas.

Com isso, a ordem externa baseada em leis se desfaz completamente. Roubo, assassinatos e a dissolução das normas sociais tornaram-se rotina. Casais que chegaram juntos tornaram-se infieis, com atos sexuais públicos que, mesmo sendo invisíveis, eram audíveis. Com a liberdade e a propriedade eliminadas, os direitos humanos deixaram de existir. No ápice da degradação, a violência atinge seu nível mais cruel: o grupo armado controla o suprimento de comida e obriga que as mulheres sejam subjugadas e submetidas a abusos em troca dos alimentos, selando o colapso definitivo da dignidade humana.

Acredito que meu texto mal consegue traduzir o impacto que essa obra causa. Especialmente porque José Saramago escreve de forma magistral, desafiando a estrutura tradicional da narrativa. Sem parágrafos convencionais, sem aspas para marcar diálogos, apenas o uso preciso de vírgulas e pontos para guiar o leitor na identificação dos discursos e das vozes que se entrelaçam. Além disso, seus personagens não possuem nomes, tornando a experiência ainda mais impessoal e universal, desenhando com o texto o fim da individualidade nessa realidade cega cruel.

Além disso, a edição que li trazia um português mais antigo, o que inicialmente tornou a leitura ainda mais desafiadora. No entanto, essa dificuldade logo se transforma em uma experiência única—uma prazerosa tortura. Prazerosa porque a escrita de Saramago é brilhante, sofisticada e instigante. Torturante porque, ao mergulhar nesse estilo singular, cada cena de degradação humana se torna ainda mais crua e imersiva, impossibilitando desviar o olhar dos horrores que se desenrolaram ao longo da história.

Mesmo quando parecia que a degradação havia atingido seu limite, o silêncio dos “homens de bem” e a opressão dos mais fortes sobre os mais frágeis persistia. No entanto, foram justamente esses considerados mais vulneráveis que, ao custo de muitas vidas, puseram fim a esse domínio. Com isso, a quarentena chega ao fim—mas apenas para revelar uma verdade ainda mais avassaladora: toda a cidade havia sucumbido à cegueira.

Certamente, a vida humana não poderia continuar assim. Entre os cinco sentidos—visão, audição, fala, tato e paladar—perder qualquer um deles seria extremamente limitante. No entanto, este romance me fez perceber que, na minha opinião, a perda da visão seria a mais catastrófica de todas. Talvez, com o tempo, a seleção natural pudesse conduzir os humanos ao desenvolvimento de uma nova forma de “enxergar”, mas a falta de visão, por si só, não foi a única responsável pelo colapso da dignidade humana.

Atualmente, ainda que a maioria da população tenha excelente acuidade visual, ainda existem aqueles que jogam lixo e excrementos em vias públicas, são infiéis aos seus compromissos, roubam, enganam e mentem —mesmo sabendo que há quem os veja, os julgue e possa puní-los. 

Os abusos continuam existindo, sejam contra mulheres, crianças ou até mesmo homens. E o mais assustador: os agressores enxergam, sabem que estão sendo observados e, ainda assim, cometem crimes. Infelizmente, há inúmeros casos de violência contra mulheres, mas mesmo em situações mais raras, há também abuso de homens, como o ocorrido no início desse mês durante uma briga de torcidas em Pernambuco, a barbárie se manifestou à vista de todos.

O Estado, ineficiente, lento e burocrático, falha em punir aqueles que violam direitos naturais. E pior: muitas vezes, ele próprio se torna o violador desses direitos. O governo vê, mas ainda assim impõe restrições à liberdade humana, desrespeita o direito à propriedade privada e impede o pleno exercício da realização individual. Afinal, a cegueira que mais destrói não é a dos olhos, mas a da consciência.

Diante desse cenário, fica evidente que a cegueira retratada por Saramago vai muito além da perda da visão: ela simboliza a degradação da civilização quando princípios básicos como liberdade, propriedade e moralidade são destruídos. A experiência dos personagens mostra que, sem esses alicerces, a humanidade regride à selvageria, onde a força se sobrepõe à razão e o domínio de poucos oprime a maioria.

O romance escancara uma verdade incômoda: não é apenas a visão que nos permite enxergar, mas a consciência, a responsabilidade e a ordem social construída sobre valores sólidos. Quando esses elementos se perdem, pouco importa se os olhos funcionam — a sociedade continua cega.

Assim, “Ensaio sobre a Cegueira” não é apenas uma ficção angustiante, mas um alerta. A verdadeira cegueira não está nos olhos, mas na recusa de enxergar os próprios erros e na aceitação passiva da opressão e da injustiça. E, como a história mostra, quando a liberdade é sacrificada em nome de uma falsa segurança, a única certeza é que a escuridão sempre vence.


Diane Matos

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *