Não há mais espaço para o Grande Irmão

Orwell Refutado?! A Derrota do Grande Irmão

Quando ouve-se sobre o livro “1984”, de George Orwell, é difícil não achar quem fale bem. Seja pela perda de nossa privacidade, o pensamento crime, a novilíngua, o duplipensar, ou até mesmo a figura do Grande Irmão (Big Brother), cujo nome inspirou o maior reality show do país. Mas já imaginou lendo este livro lendário e pensar “eu consigo fazer algo melhor do que isso”? Foi o caso de Haruki Murakami, um dos maiores escritores japoneses e autor do livro 1Q84.  

Na história deste livro, no Brasil separado numa trilogia, acompanhamos dois protagonistas: 

  • Os capítulos ímpares são do ponto de vista de Aomame, uma assassina de maridos violentos que leva uma vida extremamente promíscua nas horas vagas que após descer uma estranha escadaria, é transportada para um mundo paralelo muito parecido com o seu, porém diferente o suficiente para fazê-la duvidar do que realmente é real.
  • Os capítulos pares são do ponto de vista de Tengo, um professor de matemática e escritor profissional que tem um caso com uma mulher casada e mais velha. Quando a editora de Tengo recebeu um livro promissor, porém mal escrito, o chefe de Tengo o colocou para reescrever a obra secretamente e publicá-la sob o nome da autora original, a misteriosa adolescente Fukaeri. 

Claramente a história de Aomame parece mais interessante, certo? Mas é na de Tengo que vemos a crítica de Murakami a Orwell ganhar corpo. Buscando conseguir a permissão de Fukaeri para reescrever a história, Tengo precisou se encontrar com o responsável legal dela, o professor e antropólogo Ebisuno. Foi lá que, após várias conversas filosóficas, ele soube que Fukaeri havia fugido de seu pai, um líder comunista, de uma pequena comuna nas montanhas, que mais tarde havia se tornado um culto religioso de terroristas. Visando explicar melhor a situação para Tengo, o professor Ebisuno aborda Orwell:    

“Em 1984, como já deve saber, George Orwell criou a figura do Grande Irmão. O livro é uma alegoria ao Stalinismo, mas, desde então, o termo “Grande Irmão” tornou-se uma espécie de ícone social. Temos de convir que esse é um mérito de Orwell. Mas, em nossa realidade do ano 1984, o Grande Irmão é famoso demais, uma existência óbvia demais. Se ele aparecesse aqui, imediatamente apontaríamos o dedo e diríamos ‘Cuidado! Aquele é o Grande Irmão.’ Em outras palavras, neste mundo em que vivemos não há mais vez para o Grande Irmão entrar em cena.”

– 1Q84, Haruki Murakami

Assim como o Professor alerta, nossa sociedade está vigilante demais para permitir que o Grande Irmão apareça. Foi o que vimos recentemente quando o governo americano estabeleceu o seu próprio ministério da verdade e a pressão popular contra ele foi tamanha que ele foi desfeito apenas três semanas após ser criado. Aqui no Brasil, tivemos reação similar quando uma comitiva de deputados bolsonaristas viajou para a China para tentar implementar o sistema de crédito social no Brasil. O perigo do Grande Irmão, porém, permanece, e Murakami nos aponta isso ao transformar a comuna num culto religioso. Compare a descrição do professor Ebisuno sobre o culto com o paradoxo da tolerância de Karl Popper:

“Na minha opinião, o que a organização em Takashima faz é apenas criar um bando de robôs incapazes de pensar. Eles retiram do cérebro o circuito que permite que a pessoa pense por conta própria. É um mundo semelhante ao que George Orwell descreveu em seu livro. Porém, como você sabe, não são poucas as pessoas que buscam avidamente viver nesse estado de morte cerebral. Viver desse jeito é muito mais fácil: não é preciso se preocupar com nenhum tipo de problema e basta acatar em silêncio as ordens dos superiores.

– 1Q84, Haruki Murakami

“Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente à opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente. Mas devemos-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, ao começar por criticar todos os argumentos e proibindo seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos ou pistolas.

– A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Karl Popper

A irracionalidade dogmática do fundamentalismo religioso exposto por Murakami gera o comportamento intolerante apontado por Popper. Entretanto, vale notar que isso não é exclusivo de religiões no nosso mundo secular.  

Palestra com o método da empresa Qualtrics, utilizado por muitas outras empresas: Transforme compradores em fanáticos, produtos em obsessões, empregados em embaixadores, e marcas em religiões.

Num mundo onde a religião não tem mais espaço, as marcas tomaram este lugar. A exemplo da Blizzard, o que não falta no mundo secular são empresas e grupos políticos tomando atitudes para preencher esse espaço deixado pela fé e fazer com que seus seguidores os apoiem religiosamente. Um desses movimentos é o identitarismo, pelo qual o aviso de Murakami se torna mais claro no caso do texto de Risério na Folha de São Paulo.

Fundamentalismo  secular

 A Folha sempre foi um jornal plural, anti-censura, e que abria espaço para todas as diferentes opiniões mesmo quando discorda delas. Caso um Grande Irmão tomasse o poder e tentasse censurar a Folha, ela resistiria avidamente e lutaria pela liberdade de expressão. No entanto, quando o pensador de esquerda Antonio Risério publicou na Folha um texto questionando dogmas do identitarismo, 186 jornalistas da própria Folha se manifestaram para o jornal censurasse Risério. Após uma breve resistência, a Folha criou um comitê para vetar e editar os textos críticos ao identitarismo. Simples assim, o jornal que lutava pela liberdade de expressão agora censura quem discorda do Dogma.

Saindo do privado e indo para o público, outro exemplo pode ser visto claramente no Bolsonarismo: Bolsonaro se elegeu com uma base olavista e  defendendo o liberalismo econômico, o tradicionalismo cristão e o combate à corrupção lava jatista. Ele rompeu com a pauta do liberalismo econômico, com a pauta anti-corrupção, a pauta tradicionalista, e com o olavismo, mas ainda tem seguidores que o veneram como salvador. Para piorar a situação, foi responsável direto por foi responsável direto para que mais de meio milhão de brasileiros morresse de uma doença evitável. Mas mesmo assim, há quem defenda-o com o mensaleiro corrupto Roberto Jefferson, lote cidades e bloqueia ruas numa manifestação em defesa da declaração de um estado de sítio. Ele é venerado como um deus, sem mais qualquer lastro em pautas ideológicas e muito menos uma repressão totalitária. Apoiam-no por conta própria.

“Bolsonaro,eu te amo! Jesus te ama”:Chorando e com crucifixo nas mãos,homem faz adoração a Bolsonaro

Orwelliano sem Orwell

Em ambos os casos que vimos acima, vemos os temas orwellianos do pensamento crime, novilíngua, e do duplipensar, mas sem sinal algum do Grande Irmão. Como Murakami previu, não há mais espaço no mundo livre para ditadores autoritários vigiar constantemente seu povo e impor violentamente um controle social. O controle não precisa mais ser imposto, pois o stalinismo ateu deu espaço para o fundamentalismo religioso (teísta ou não), e as próprias pessoas se radicalizaram a ponto de exigir o fim das liberdades. Murakami nos alerta que a liberdade pode não morrer sufocada, mas sim sob um estrondoso aplauso.


Texto por Paulo Grego

1 comentário em “Não há mais espaço para o Grande Irmão”

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