Música e Liberdade

Música, uma das artes mais antigas, considerada por muitos como a primeira arte, a música tem a capacidade de nos deixar vivos, afinal como diz Artur da Távola “Música é vida interior, e quem tem vida interior jamais padecerá de solidão.”

Muitos filósofos e pensadores já se debruçaram sobre a primeira arte e questionaram não só a sua importância para a sociedade, mas também a sua influência em nossa vida. Autores como Confúcio, Agostinho de Hipona, Platão e muitos outros já tentaram compreender a relação intrínseca da música com as nossas vidas.

A seguir, tentarei fazer mais uma reflexão assim como meus antecessores (apesar do meu nível intelectual ser infinitamente menor do que o de meus pares), vamos seguir por uma breve viagem e tentar entender qual a relação da nossa amada primeira arte, a música, com a nossa outra amada, a liberdade.

Todo texto requer contexto

Ora, nada mais natural do que antes de apresentar minha tese ao caro leitor, determinar o método o qual estarei utilizando para tentar transpor o conteúdo que encontra-se sob jugo da minha mente ao papel (nesse caso, a tela do computador, mas você entendeu o que eu quis dizer).

A minha análise irá centrar-se na teoria do Ethos, proposta pelo pensamento grego, mas não exclusiva deste, logo não é objetivo deste texto a tentativa de uma análise empírica e/ou centrada em elementos sociológicos, apesar de que estes podem estar presentes em menor escala.

Logo, este trabalho em questão, não tratar-se-á de uma análise etnomusicológica. Isto posto, podemos seguir com as premissas de análise.

Premissas fundamentais

Além do pressuposto do Ethos grego, estarei lidando aqui com termos teórico musicais, dados do contexto de harmonia clássica do século XVIII, a harmonia utilizada na maior parte das  peças de música erudita (conhecida como “música clássica”), o motivo disso é demasiado simples, a minha capacidade de expressão utilizando esse vocabulário harmônico é maior do que outros, porém há de se considerar outros contextos no que tange a ideia de “harmonia”, como a harmonia funcional, presente nas obras de jazz do início do século XX, o dodecafonismo, presente na vanguarda europeia liderada por schoenberg ou até mesmo o contexto harmônico de outras culturas tal qual a cultura indiana que trabalha com uma síntese harmônica que diverge do que estabeleci, utilizando-se de intervalos que vão além de um semitom, conhecidos como coma.

O que diabos é liberdade?

Afinal de contas, se estamos aqui tratando de um texto que fala de liberdade, me parece plenamente razoável tratar de definir a mesma não? Afinal de contas, poderíamos recair no problema semântico de algum querido leitor situar-se no seguinte impasse “veja, para mim liberdade é X”, enquanto outro leitor poderia compreender liberdade como Y, no fim ninguém iria entender porcaria nenhuma.

Portanto, estabeleço que estou partindo de princípios liberais desenvolvidos a partir do iluminismo inglês, de autores tão conhecidos aos liberais, tal qual John Locke, Adam Smith, Immanuel Kant e assim subsequentemente, autores mais modernos como Ludwig Von Mises, Friedrich Hayek e etc.

Portanto, compreenda liberdade por o direito de existir livre de coerção ilegítima, por parte tanto do Estado quanto de outros indivíduos, assegurando assim a propriedade privada e a vida.

Me parece uma definição razoável.

E a música, como fica?

O aparato bibliográfico não se encerra na definição de liberdade, afinal de contas, estamos lidando com música, sendo assim, o que significa e o que estarei utilizando para definir-me ao fenômeno da organização sonora?

Aqui, utilizo majoritariamente o intelecto do filósofo Roger Scruton para o meu auxílio, sumariamente a obra “Understanding Music”, de sua autoria. Sendo assim, é possível conceber que haverá pitadas de conservadorismo no texto, logo não se espante.

Então, compreendemos música aqui como o fenômeno de organização sonora com o intuito de transmitir mensagens, sentimentos, ideias e fatos, que servem de auxílio para o ser humano compreender e/ou ascender ao metafísico, sendo assim a música encontra-se ao lado de outras formas de expressão artística tal qual a literatura, o teatro e o cinema.

Mãos a obra

Estabelecidos tanto método de análise quanto fundamentação teórica, podemos partir para o que interessa, a tese sustentada nesse texto.

Bom, todos nós sabemos que a música está presente no nosso dia, sendo assim, é razoável afirmar que qualquer governo autoritário que deseja atingir sucesso na sua empreitada, deve assumir uma postura de controle artístico, sobretudo musical.

Sendo assim, veremos como a música se relaciona com a liberdade e como ela é um forte instrumento para nós.

Um meio para a ação

Segundo Platão, a música seria capaz de atingir mais profundamente a alma de um cidadão, podendo moldá-la para o bem ou para o mal. O que isso quer dizer?

Nós somos seres que reagimos ao ambiente e essa era uma preocupação especial de filósofos como Platão. Em sua obra “A república”, Platão é claro e resoluto quanto a necessidade de ordem nos caminhos da música, nós reagimos e somos  impelidos à aquilo que nos é mostrado.

Platão preocupa-se com os tipos de melodia e ritmo que os jovens irão se expostos durante a infância, afinal cada estilo musical impele um tipo de ação e/ou atitude.

Músicas com ritmo bem marcado e com a forte presença de tambores caracterizam musicas de exército, as famosas “marchas”. E músicas leves, com melodias limpas e serenas, podem ser cantigas. As músicas com forte presença de cânticos entoados com sublimidade, podem ser músicas litúrgicas. O meio pelo qual nós somos influenciados, tem forte presença da música e o Ethos de cada música que nós escutamos, determina a influência delas sobre nós.

Ditaduras não a toa tem a tendência de preocupar-se substancialmente com a música, não é uma coincidência que a primeira coisa que todo ditador busca fazer é varrer a cultura popular e substituí-la por uma cultura de culto ao Estado, frequentemente ligada única e exclusivamente a figura do ditador ou suas ideias.

Regimes como o de Cuba, China, URSS e Coreia do norte, são inundadas disso, a ponto de que nós ocidentais, muitas vezes temos mais acesso a conhecimento de tais culturas do que os próprios nativos, afinal de contas acesso à informação na China, por exemplo, não é algo que os cidadãos do país podem checar, diferente de nós.

Isto posto, uma cultura de adoração só pode ser efetivamente concretizada, se as pessoas não possuírem meios de pensar fora da caixa, fora do campo de influência que as tiras da cultura de adoração.

As músicas tradicionais de um povo mostram a eles quem eles são e a sua história. A música de um povo é um laço que vai além da matéria que liga os nativos daquela região e os lembra que existe algo muito além deles.

A indústria da cultura

Você possivelmente conhece as histórias sobre os músicos na era da ditadura do Brasil, vou presumir que sim.

Todos conhecemos Caetano Veloso, Gilberto Gil e o mais comentado deles, Chico Buarque como grandes desafiadores do sistema que foram capazes de tripudiar das garras da ditadura e protestaram de maneira velada.

Bom, por mais que essa história seja verdadeira, existem alguns pontos não tão bem estabelecidos quando se fala sobre a ditadura no Brasil e a sua realação com a música. Por que esses músicos foram apenas vanguardistas?

Não se engane, por maiores que sejam os nomes de Caetano, Buarque e Gil, eles não enchem um estádio de futebol, o que não é nenhum demérito, porém nós aprendemos que eles são figuras lendárias que ajudaram a acabar com a ditadura no Brasil por meio letras controversas que abriam as mentes dos jovens. Não? Não.

Vamos estabelecer uma coisa, ser influente não é a mesma coisa do que ser famoso e vice-versa. Com toda certeza os músicos da famosa MPB, contribuíram para a cultura do país, porém é preciso lembrar que nem de longe eles eram os maiores músicos da sua época, em termos de alcance.

Além disso, quem são os influenciados por esses artistas? Aí que entramos em uma questão. Músicos como Chico Buarque são influentes, mas em um ciclo específico de pessoas, com um tipo específico de ideias. Em sua época, muitas vezes os artistas inovadores, vanguardistas, quebradores de paradigmas e intelectualmente estimulantes não vendiam seus discos, bom, muitas vezes eles inclusive davam prejuízo para as gravadoras.

Isso mesmo, músicos da MPB muitas vezes eram considerados “chatos” para o povo comum, o afegão médio não tem tanto interesse em letras intelectualizadas e quebradoras de paradigmas, muitas vezes o cidadão comum quer apenas um “biquíni de bolinha” ou um Sidney Magal.

Durante os tempos de ditadura, o Brasil foi dominado pelo gênero musical “brega”, músicos como Sidney Magal, de certo modo, sustentavam as peripécias criativas de um Chico Buarque.

Essa é uma das mais duras demonstrações que um governo, quando interessados, podem muito bem permitir não só protestos, mas floreios intelectuais que vão contra a sua ideologia, basta que eles tenham as ferramentas corretas em mão e no caso do Brasil, os militares tinham.

Não que os cantores do Brega tivessem de algum modo contribuído com o governo, a questão é que, para o Estado Brasileiro, não era inconveniente que músicas aparentemente “bobinhas” fossem veiculadas na grande mídia e entre o cidadão médio. Para um governo ditatorial, dar a impressão para uma elite intelectual, que é o caso dos músicos da MPB, de que eles são vanguardistas revolucionários, é tudo que os próprios ditadores querem. 

Conclusão

A música é um fenômeno humano, que representa a nossa cultura e os nossos valores, não exclusivamente.

Quando nós procuramos entender o porquê de uma sociedade estar mais ou menos alienada em relação aos seus próprios desígnios, dar uma olhada em sua música é uma boa fonte de diagnóstico.


Gabriel Barros

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.

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