É fácil esquecer que a instituição da escravidão constituiu uma norma social na história humana. A partir da perspectiva ampla do tempo, seus apoiadores e defensores facilmente superaram em muito seus críticos e condenadores.
A Igreja Católica é frequentemente criticada por ter tolerado, até mesmo promovido, a escravidão quando as nações católicas expandiram seus impérios para a África e o Novo Mundo. Mas uma leitura justa das evidências mostra que a Igreja esteve mais frequentemente do lado dos anjos – e dos escravizados.
The Worst of Indignities: The Catholic Church on Slavery
By Paul Kengor
(Emmaus Road, 2023)
Embora possa-se encontrar insinuações de mal-estar com a escravidão em alguns pensadores gregos e romanos, existem poucos questionamentos de que foi o cristianismo que introduziu as mais profundos dúvidas sobre a legitimidade da escravidão como uma prática e sobre o disseminado hábito cultural de visualizar categorias inteiras de pessoas como escravos naturais.
Este fato é contrário a narrativa comum que somente a partir de vários pensadores iluministas que a escravidão foi subsequentemente contestada. Com algumas notáveis exceções, os pensadores iluministas eram ou silenciosos sobre o tema ou decididamente ambíguos. Factualmente, a instituição que mais frequentemente foi o alvo de muitos pensadores iluministas – A Igreja Católica – acabou por ser a mais consistente e precoce em sua condenação da escravidão.
Conhecimento sobre a posição firme do catolicismo contra a escravidão não é disseminada, mesmo entre católicos, alguns dos quais ocupam cargos importantes na Igreja hoje em dia. Eu fui relembrado disso recentemente enquanto lia a resposta do Papa Francisco a questões enviadas por cinco cardeais em julho de 2023: especificamente, a parte em que o Papa abordou o tema amplo da interpretação da Escritura pelo magistério e suas próprias declarações anteriores. Referindo-se particularmente à bula Dum Diversas (1452), escrita pelo Papa Nicolau V, Francisco descreve esta como um documento magisterial que “tolerou a escravidão”, e, portanto, um texto que “requer interpretação”.
Introduzindo um livro novo e muito oportuno, The Worst of Indignities: The Catholic Church on Slavery. Seu autor, Paul Kengor, endereça o tópico da Dum Diversas, além de outra bula de Nicolau V, Romanus Pontifex (cerca de 1454), bem no início de seu livro. Como qualquer bom estudioso, Kengor analisa os dois textos cuidadosamente e consulta dois sérios consultores sobre o tópico. Isto leva-o a duas conclusões.
A primeira é que é necessário entender o contexto de ambos os documentos. Um é sobre o tratamento de reféns capturados durante guerras, em um período em que os costumes e regras em torno deste tópico, especialmente como expresso nas leis das nações, estavam sendo então debatidos. Este foi um período em que, Kengor aponta, “a noção de escravidão ‘justa’ era aceita como uma forma de punição para lidar com prisioneiros de guerra em uma guerra justa”. Outros estudiosos também observam, Kengor aponta, que Nicolau V estava abordando uma situação particular (a expansão de Portugal pela África Ocidental e o posterior conflito com as populações pagãs e muçulmanas). Os comentários do papa, um dos estudiosos comenta, não eram “destinados a aplicar-se a todos os períodos e lugares”.
A segunda conclusão de Kengor é que, mesmo considerando a pior interpretação destes documentos (as quais, Kengor admite, ainda podem ser corretas), nós devemos ter em conta que estas declarações
eram exceções absolutas, completamente anómalas a outros papas, clérigos, líderes e conselhos da Igreja através de dois milênios – isto é, imediatamente antes, imediatamente depois, e desde então. Qualquer acadêmico moderno que procura elevar estas duas declarações para além de todo o resto está sendo totalmente injusto. Isso não seria acadêmico.
Grande parte do livro de Kengor explica o “antes”, o “depois” e o “desde então” da condenação da escravatura pela Igreja Católica e como tal ensinamento surgiu precocemente na história da Igreja. Juntamente com a exploração da história do ensinamento, Kengor aborda a forma como os bispos católicos, os padres, as ordens religiosas e como as pessoas comuns tratavam os escravos. Em outras palavras, as ideias e a prática são objeto de similar atenção.
No nível do ensinamento formal, o histórico da Igreja, como Kengor ilustra, é de consistente oposição à escravidão. Muito rapidamente, a escravidão foi entendida como pecaminosa pela Igreja. A posição surgiu mais ou menos diretamente através dos Evangelhos e dos escritos de São Paulo. Foi também considerada universal em sua aplicação.
Este último ponto importa porque alguns poucos acadêmicos argumentaram que a Igreja se opunha somente à escravização de cristãos, tanto por cristãos quanto por não cristãos, a implicação sendo que era aceitável escravizar estes últimos. Certamente, algumas declarações de papas e conselhos referem-se explicitamente aos cristãos, mas a omissão de referências aos nãos cristãos não é intencional. Em primeiro lugar, a maior parte dos documentos da Igreja sobre a escravatura referem-se ao carácter incorreto de escravizar qualquer pessoa. Também é verdade que as declarações de papas como Eugénio IV sobre a escravatura de cristãos foram acompanhadas por outros documentos compostos pelos mesmos papas “que abordavam o bem-estar de todas as pessoas”.
Durante sua argumentação, Kengor analisa uma quantidade formidável de material para demonstrar a consistência dos ensinamentos oficiais do magistério católico sobre a natureza intrinsecamente maléfica da escravidão. O Santo Ofício (o atual Dicastério para a Doutrina da Fé) emitiu declarações especificamente concisas durante o século XVII. Tais declarações, em forma de perguntas e respostas, detalharam não somente a injustiça da própria escravidão, mas também a obrigação dos sequestradores, compradores e donos de escravos em libertá-los e indenizá-los. Não há nenhuma menção de que a culpa e responsabilidade de qualquer envolvido na indústria da escravidão ser diminuída por fatores culturais, psicológicos ou sociológicos que podem afetar a culpabilidade pessoal pelas ações destes.
Ensinamentos católicos sobre a escravidão, Kengor também demonstra, estavam “muito à frente do resto do mundo”. Apesar de ser politicamente incorreto afirmar, Kengor sublinha que a escravidão simplesmente não foi questionada de maneira significativa dentro da Europa pagã ou das culturas pré-cristãs na América do Norte, América Latina, África e Ásia. Em um tempo em que há tendências em idealizar tais culturas – ou até mesmo negar que coisas brutais como escravidão em massa e sacrifício em massa ocorriam em culturas da Mesoamérica – essas verdades merecem ser repetidas.
O ensinamento formal, entretanto, é uma coisa. A prática é outra. Kengor não se esquiva de reconhecer que múltiplos católicos através da história falharam em reconhecer e aceitar os ensinamentos católicos sobre a escravidão. Bispos, padres, e ordens religiosas masculinas e femininas compraram, possuíram e venderam escravos em diferentes pontos da história. Kengor destaca, por exemplo, como a Sociedade de Jesus (os jesuítas) possuíam escravos durante a sociedade pré-colonial e a América pré-guerra civil: algo pelo qual os jesuítas e outras ordens religiosas católicas já se desculparam.
Um tzompantli escavado, mostrando as vítimas sacrificadas no Templo Mayor, exibido na atual Cidade do México.
(Foto por Juan Carlos Fonseca Mata / Wikipedia)
Vendo por um lado, o fato de tais práticas existirem é perturbador. De outro lado, entretanto, não há nada extraordinário sobre estes fatos. Todos os católicos, incluindo aqueles formalmente declarados como santos, pecaram. Já existiram também muitos católicos que decidiram que os ensinamentos magisteriais da Igreja de alguma forma não se aplicam a eles, ou que tenham silenciosamente (ou em alto e bom som) discordado dos ensinamentos da igreja.
Mas para cada católico que negou que certos atos pecaminosos são, de fato, malignos, e que nunca devem ser realizados, existem aqueles que não apenas mantiveram uma posição firme a respeito dos ensinamentos da igreja sobre tais assuntos, mas também procuraram ver tais implicações realizadas na prática. Isso inclui trabalhar para amenizar os efeitos e o funcionamento da escravidão, além de lutar a favor de sua abolição.
Em muitos casos, isso foi refletido nas decisões daqueles que, tendo se convertido ao cristianismo, decidiram também libertar seus escravos. Alguns clérigos trabalharam arduamente para libertar escravos, frequentemente indo a mercados de escravos, onde prisioneiros de guerras ou invasões estavam sendo leiloados, para adquiri-los, e então, libertá-los imediatamente. Algumas vezes, autoridades elevadas da igrejadiretamente confrontaram cristãos engajados em práticas associadas à escravidão. Um bom exemplo é a decisão do Papa Gregório III de emitir uma proibição contra cristãos que persistiram “na prática de vender seus escravos à pagãos para serem utilizados em sacrifícios”.
Tal ênfase no trabalho prático de libertar escravos eventualmente assumiu forma institucional. Já no começo do segundo milênio, ordens religiosas inteiras foram criadas com o propósito principal de emancipar escravos. São João de Matha (1160 – 1213), por exemplo, fundou uma ordem em 1198 dedicada a resgatar cristãos que haviam sido sequestrados e vendidos como escravos por piratas da Costa da Barbárie. Tal trabalho – que em grande parte era perigoso e frequentemente custou a vida dos monges liberadores – continuou por séculos. A efetividade dessas atividades frequentemente envolvia evitar o confronto direto com os escravizadores, o que teria prejudicado a capacidade de tais indivíduos e ordens religiosas de resgatar pessoas da servidão.
Então, houve as batalhas intelectuais realizadas por teólogos que lutaram contra os esforços para produzir racionalizações para a escravidão de pessoas. A política espanhola em relação aos povos nativos das Américas é um destes casos. Missionários nos atuais territórios do Haiti e República Dominicana, por exemplo, abertamente pregaram contra o tratamento severo dado a estes povos por seus senhores espanhóis.
Isso foi seguido pelo crescimento de uma rede inteira de pensadores católicos, sintetizada pelo teólogo dominicano Francisco de Vitoria, que veio à defesa dos povos nativos e empregou a única ferramenta que eles tinham – a tradição da lei natural – para afirmar a dignidade intrínseca dos nativos, e, portanto, todos os direitos que vem diretamente desta dignidade. Isso envolveu o engajamento em debates intensos com outras doutrinas católicas que lutaram para reviver a ideia Aristotélica de escravidão natural para justificar a desapropriação das terras dos povos nativos pelos conquistadores espanhóis.
Mas a parte mais impactante do livro de Kengor é seu relato sobre as vidas de três ex-escravos da era moderna. Um deles, Josephine Bakhita (1869 – 1947), uma convertida ao catolicismo, que foi declarada uma santa. Os outros dois, Pierre Toussaint (1766 – 1853) e Augustus Tolton (1854 – 1897), foram declarados o título de “veneráveis”, significando que suas heróicas virtudes foram formalmente reconhecidas formalmente pela Igreja.
Kengor não ameniza o impacto da escravidão nestas três pessoas, entretanto. Os detalhes da infância de Santa Josephine Bakhita são especialmente angustiantes. Em cada caso, deve ser apontado que eles não escolheram nem um caminho de amargura e vingança e nem um caminho de autodestruição. Ao invés disso, eles adotaram a fé cristã em toda sua amplitude, e mostraram que, apesar de terem sido escravizados, viver a vida cristã não é um mero “ideal”, mas algo que qualquer um é capaz de realizar.
Em direção ao fim de seu livro, Kengor chama atenção às poderosas afirmações do Papa Francisco contra a escravidão no mundo moderno, seja ela o tráfico humano ou as formas antigas de escravidão que persistem em muitas partes do mundo atual. Kengor também aponta, entretanto, que o Papa Francisco aparentemente não possui uma boa compreensão do longo histórico da Igreja Católico em oposição a escravidão. Em sua encíclica de 2020, Fratelli Tutti, por exemplo, Francisco comenta: “Eu, às vezes, me pergunto porque, à luz do [o mal evidente da escravidão moderna], tomou tanto tempo para a Igreja condenar inequivocamente a escravidão e as várias formas de violência.” (FT 86).
Como Kengor afirma, este é “uma declaração decepcionantemente imprecisa de uma Igreja Católica Romana que condenou de forma louvável a escravidão antes de praticamente todos os países, culturas e instituições existentes”. Este julgamento negativo sobre a escravidão foi baseado diretamente na lógica interna do que Cristo em última instância revela sobre a natureza, dignidade, e a missão final da pessoa humana. Também não possui nada em comum, Kengor destaca, com os contemporâneos movimentos seculares liberacionistas, baseados em ideologias como política identitária, interseccionalidade e teoria crítica racial, todas essas imitações das reivindicações da citada religião.
No fim, a condenação cristã da escravidão é firmemente baseada na ideia, tão belamente expressa na bíblica hebraica e no Novo Testamento, que todas as pessoas – não importa seu sexo, etnia ou fé – são feitas à imagem de Deus (Imago Dei). Isso significa que cada um de nós é uma integração perfeita da materialidade e espírito, que inclui a razão e o livre arbítrio. Essa imagem da natureza comum não somente faz com que a escravidão de outras pessoas seja impensável; é também central para nossa capacidade de resistir a outras formas de escravidão: a escravidão do pecado e do mal para a qual Cristo veio nos liberar.
Artigo Original: Catholicism and Slavery: Setting the Record Straight