Cântico, Conhecimento e o Mundo Moderno

Cântico, conhecimento e o mundo moderno

Todo homem nasce com um instrumento que o distingue dos demais seres vivos: a razão natural. Esse instrumento é o que o permite organizar as informações obtidas pelos sentidos e subtrair delas conclusões – que, por sua vez, podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou falsas. Mas se a razão é capaz de conduzir o homem a conclusões, também o ajuda a avaliar se essas conclusões são verdadeiras ou não, e o faz comparando a conclusão com os dados que constantemente o intelecto obtêm pelos sentidos. Embora essa seja uma habilidade de todo ser humano, alguns são mais hábeis nesse processo de “produção de conhecimento” a partir dos dados dos sentidos organizados, hierarquizados e julgados pela razão. Essa classe de pessoas é a dos cientistas, sábios e eruditos. 

Esse é o caso de Igualdade 7-2521, personagem principal de Cântico, de Ayn Rand; o varredor – posição social ocupada pelo personagem – tem dentro de si uma profunda inclinação às atividades investigativas. Isso fica evidente no modo como ele se entretém com a pesquisa científica, chegando a trazer outra vez à luz uma invenção corriqueira na nossa época, porém revolucionária no tempo em que transcorre a história: a eletricidade. Ao contrário de todos seus concidadãos – inclusive os eruditos –, Igualdade 7-2521 viu despertar dentro si uma habilidade que ele e todo homem têm – embora nem sempre de modo plenamente desperto –, a razão natural. Essa habilidade operava, então, com os dados que ele obtinha pelos sentidos todas as vezes em que se enclausurava em seu reduto; o resultado disso foi uma invenção útil e luminosa: a luz elétrica.

Porém o herói, e peço perdão aos que estranham eu chamá-lo assim, imaginou que sua invenção seria festejada em toda a sociedade; qual foi a sua surpresa ao descobrir que tinha sido mais fácil descobrir a eletricidade do que seria dobrar a arrogância dos eruditos oficiais. Perseguido por causa de sua invenção, o personagem se refugiou bem longe daquela sociedade intelectualmente corrompida, como um eremita do início da era cristã que não mais pode conviver com a corrupção no seu meio social. 

O que ocorreu com Igualdade 7-2521 deu-se também com um importante personagem da cultura ocidental: Sócrates.  Perseguido em função das ideias que tinha, o ateniense não foi o único sábio a ser perseguido na longa marcha da história humana; estou certo que se pode encontrar muitos outros exemplos de homens que foram obrigados a renunciar a suas ideias e invenções. Isso gera uma questão que pode ser expressa na seguinte pergunta: por que perseguimos os sábios?

Uma pessoa pode ser perseguida e odiada pela busca do conhecimento devido a diversos motivos; parece-me que procurar uma única causa para isso é um trabalho vão. Pode-se perseguir um estudioso por inveja, e talvez tenha sido esse o motivo dos eruditos oficiais de Cântico não gostarem nada da invenção de Igualdade 7-2125, pode-se perseguir também por motivos políticos, caso as ideias do sujeito sejam inconvenientes aos donos do poder, e pode-se perseguir também por puro ódio ao que é diferente e autêntico, já nem todo intelectual tem ideias, por assim dizer, de acordo com a opinião da maioria. Todos esses motivos, porém, tem na sua base um modo de pensar anti-indivíduo. A atividade intelectual é sempre uma atividade individual, já que cada pessoa precisa de seus sentidos e de sua razão natural para fazê-lo. Não se pode pensar com a mente dos outros, isso não é pensar, é repetir as ideias alheias. Repetir ideias de alguém não necessariamente é algo ruim, desde que se tenha analisado os pontos e argumentos por si próprio; nesse caso a repetição não se constitui numa repetição exatamente, já que, uma vez que se submete às ideias de outros ao crivo da própria razão, elas tornam-se ideias próprias. Concordar com Aristóteles não é repetir o que disse Aristóteles, mas sim entendê-lo e ver nele um ponto de verdade. Verdade essa que é captada pelo intelecto, mas que existe fora dele, na realidade do mundo. Enquanto Igualdade terceirizava a tarefa de pensar para os eruditos oficiais, ele não pensava de fato.

Não deixa de ser curioso o fato de que uma época como a nossa, que tanto fala em direitos individuais, tenha as mesmas posturas dogmáticas que se observa em Cântico. Quem duvidar que o homem moderno é um tipo de dogmático esquisito — distinto sob certos aspectos dos dogmáticos do passado, mas sob outros, exatamente igual – ouse discordar de um Woke qualquer. Haverá choro e ranger de dentes! É errônea a ideia de que o homem moderno ocidental seja exatamente um individualista, ele professa certas ideias individualistas, como a noção de liberdades individuais, porém a cultura moderna aproxima-se mais de um curioso e contraditório coletivismo-subjetivista. 

Digo coletivismo porque as conquistas pessoais, não de um grupo ou de uma minoria, mas de um indivíduo, que antes caracterizava um motivo de glória e orgulho, já não querem dizer mais nada. Se uma pessoa conquista um feito, esse feito só tem valor caso o sujeito pertença a algum grupo historicamente oprimido. Não que as conquistas de uma pessoa que tenha sofrido opressão por pertencer a determinada condição social, econômica, sexual ou racial não devam ser comemoradas; isso é sim um motivo de se comemorar. Porém a conquista é sempre de um indivíduo, e as glórias de determinada conquista também. O coletivo não age, o coletivo não conquista, o coletivo é uma abstração. Mas para o homem moderno isso não é verdade: a individualidade só é aceita se estiver dentro dos limites do coletivo. Esse modo de pensar tem dado o tom da nossa política há algumas décadas. Agora, digo também subjetivismo porque, embora o homem de nossa época não se creia mais um indivíduo em termos políticos, em termos epistemológicos somente crê no que toca seus sentimentos, que para ele é toda a verdade. A verdade não mais existe no mundo lá fora, existe nos pensamentos e sentimentos de cada um. Nessas circunstâncias, o diálogo torna-se impossível, e, ouso dizer, a democracia também!

Por esses motivos, urge, no mundo atual, resgatarmos o espírito de Igualdade 7-2125. Crer em nossa capacidade de pensar, mesmo que não compreendamos o que é o pensamento; crer na nossa capacidade de decidir, mesmo que não saibamos ao certo o que fazer; assumir a responsabilidade de escolher e o doce fardo de ser livre. Podemos estar sozinhos, podemos encontrar oposições, podemos até ser forçados a fugir para uma floresta qualquer. Porém esse é nosso direito como seres racionais, temos o direito à liberdade, a buscar o conhecimento sem oposições e a propagar nossas descobertas sem censuras; e todo homem na face da terra tem esses mesmos direitos.


Gustavo Sanvezzo

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.

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