Brasil Imperial: Entre Sonhos e Verdades

Brasil Império: entre sonhos e verdades

Foi publicado recentemente no Damas de Ferro o texto “Brasil império: o auge da política brasileira?”, onde foi feita uma extensiva revisão historiográfica e filosófica para responder a questão : A monarquia teria sido melhor ou não para o Brasil do que a República? (indo além, estaríamos melhores se voltássemos a ser uma monarquia?).

Como alguém que contribuiu com inúmeros textos deste período para o Damas de Ferro com uma leitura acadêmica específica desse período, fiquei feliz em ler um texto do Brasil Império com tamanha pesquisa. Porém, a análise desse texto comete erros graves tanto do ponto de vista historiográfico quanto filosófico; chegando a uma conclusão errônea de que ambos os sistemas possuem suas falhas e de que não faria a diferença a mudança de regime. Por isso, escrevo este texto resposta para oferecer uma análise mais verossímil do período imperial. 

Análise Historiográfica: o Brasil Patriarcal

É verdade que a análise historiográfica das personalidades históricas estava robusta, sendo citados tanto conservadores como o Visconde do Uruguai e o Marquês do Paraná; quanto liberais como Joaquim Nabuco, André Rebouças, e o Barão de Mauá. No entanto, a falha do texto está em querer apresentar ambos os lados como “o auge de uma elite política e intelectual que tentou modernizar o Brasil”.

O primeiro motivo disso é temporal: segundo Carvalho (1998) e Alonso (2015), o momento de modernização do Brasil ocorreu ao início da década de 1870. Nesse período, houve uma rápida expansão urbana dando início a um novo estilo de vida; assim como um maior acesso à educação, providenciado pelo Visconde do Rio Branco, permitindo a pessoas de origem comum preencherem espaços de poder antes acessíveis somente à aristocracia. Antes disso, Carvalho (1998) caracteriza o império brasileiro como uma reedição do racionalismo característico da cultura barroca. Um racionalismo de fundo teológico onde Deus, a Razão Suprema, fornecia as doutrinas morais, legais e políticas da vida secular.

(…) no Brasil, foi traduzido como uma razão de Estado […] cuja base se encontra a família patriarcal; acima delas, as famílias patrícias; e acima destas, mais perto, portanto, de Deus, o ‘cérebro’, o núcleo ativo daquele edifício, representado na pessoa do imperador. – (CARVALHO, 1998,  p.148). 

Isso é importante porque a carreira política do Visconde do Uruguai, marcada por seus grandes debates com Tavares Bastos, ocorreu entre 1835 e 1853; enquanto a do Marquês do Paraná ocorreu entre 1833 e 1856. Ambos, portanto, estavam muito longe do período de modernização do Brasil e não representavam as vozes conservadoras deste período. Os verdadeiros representantes, porém, nos ensinam algo muito mais sinistro.

Análise Historiográfica: o Brasil Escravista

Ao se analisar o império brasileiro, é preciso falar também da escravidão. Que fique claro: houve sim conservadores a favor da abolição e tentando modernizar o Brasil, como o Visconde do Rio Branco, responsável pela lei do Ventre Livre, e João Alfredo, o último presidente do gabinete antes da Lei Áurea. Não se pode ignorar, no entanto, que eram uma exceção. Afinal, segundo Alonso (2015), o próprio Rio Branco contou com uma enorme resistência conservadora tentando impedir a lei do Ventre Livre (ironicamente, essas mesmas pessoas exaltariam essa lei em 1884 para tentar impedir a Lei dos Sexagenários de passar).

Até mesmo entre liberais, tardou para que esse tema vingasse. Afinal, conforme Nabuco descreve em sua autobiografia, o período entre 1879 e 1883 foi um no qual os abolicionistas combateram a sós, entregues aos próprios recursos. Apesar de sempre terem havido pessoas a favor da abolição como os jesuítas, José Bonifácio, Castro Alves e Luís Gama; a liberdade ainda era um sonho impossível. 

É com este contexto que podemos apresentar os verdadeiros representantes do conservadorismo imperial no período de modernização Brasileiro: o senador Paulino Soares de Souza, filho do Visconde do Uruguai; o escritor José de Alencar; e o Barão de Cotegipe, futuro Presidente do Gabinete de Ministros (sim, aquele da marca de chimarrão). E todos eles tentaram frear a modernização da sociedade brasileira.

José de Alencar era um dos principais nomes escravistas de sua época, e suas obras perpetuavam a visão de Brasil rural escravocrata. Já notou, por exemplo, que não existem personagens negros em “Til”? É proposital. O Brasil de Alencar era formado pela união entre portugueses e indígenas, excluindo-se os negros. Quando retratados, como em “O Demônio Familiar”, eram como seres animalescos e imorais trazendo ruína para a família senhorial. É uma forma brasileira de racismo que, segundo Darcy Ribeiro (1995), ocorre pelo apagamento, fingindo que ele não existe.

Já Paulino seria um dos principais nomes responsáveis por atrasar a abolição, atuando por décadas para que ela fosse o mais gradual possível. Alegando prudência, seu discurso comparava a escravidão a um câncer que deveria ser retirado aos poucos para que o paciente não viesse a falecer junto.

Por que somente retardar a abolição, ao invés de tentar impedí-la? Simples: segundo Alonso (2015), os escravistas brasileiros aprenderam com a Guerra Civil Americana que isso levaria a uma abolição súbita e sangrenta. Optou-se, portanto, pelo que Mendonça (1998) chama de “abolição pela morte”: cortar os métodos de renovar a escravidão e lutar para atrasá-la até que todos os escravizados morressem. Dessa forma, a escravidão permanceria como um sistema legítimo no Brasil até acabar espontâneamente, o que estaria previsto para ocorrer na década de 1930.

A escravidão era a base de um estilo de vida, compartilhado por todo o estamento senhorial, cujos eflúvios se espalhavam pela sociedade em círculos concentricos, como pedra na água. Em modos, ações, pensamento, Paulino encarnava o éthos senhorial. Rebento fina flor. Nada em si recendia brutalidade ou ganância, desvio ou maldade. Culto e ilibado, amava o latim e a esposa, acreditava em Deus, no Império e na propriedade de escravos. Somente os insensatos, julgava, se insurgiram contra a ordem natural das coisas, que não vigeria por vontade de uns, e sim por necessidade de todos. Sem a escravidão não haveria café ou finanças, aristocratas ou monarquia, nem ordem, nem paz.. – ALONSO, 2015, p.53

Percebe-se portanto que não são Joaquim Nabuco, nem André Rebouças, e muito menos o Barão de Mauá os herdeiros do legado do espírito do Império. Paulino Soares de Souza é. Não podemos ver o Império apenas por seus nomes abolicionistas e/ou modernizantes, pois eles eram a exceção. Claro, uma exceção que conseguiu virar a opinião pública ao longo de décadas, mas ainda assim uma exceção.

Reconhecer isso é importante, por exemplo, para entender a falência do Barão de Mauá: os inúmeros boicotes que sofreu do governo imperial surgiram pois numa inauguração de obras, segundo Caldeira (1995), ele deu ao imperador uma pá de prata e o convidou a dar as primeiras escavadas no chão. Um ato que para Mauá significava a exaltação do valor do trabalho, significou para o resto das pessoas uma humilhação. A regra no Brasil Império era ver trabalho duro como um trabalho de escravo.   

Quando esse pensamento de exceção ganhou força em 1884 e ameaçou acabar com a legitimidade do sistema escravista, eis que entra Cotegipe para reprimi-la. Segundo Alonso (2015), Cotegipe chegou ao poder promovendo uma fortíssima repressão aos abolicionistas. Jornais foram invadidos; pessoas foram espancadas quase até quase a morte; um enorme grupo de 150 escravizados fugindo para Santos foi fuzilado na serra do mar, e a polícia foi utilizada para perseguir e prender abolicionistas. Foi apenas após a queda de Cotegipe que, conforme descrito por Nabuco, as pressões internas por mudança haviam se tornado insustentáveis. O apoio do partido conservador à abolição agora vinha tanto do medo de uma possível guerra civil quanto do medo de perderem o gabinete e ser um liberal a passar a abolição.

A Lei Áurea seria então assinada em 1888, com Paulino e Cotegipe sendo parte dos 9 votos contrários a ela. Uma pequena curiosidade é que Isabel aprovou essa lei em pleno período da colheita, levando boa parte dos principais senhores de engenho da época à falência.

Análise Filosófica:o Brasil de Benjamin Constant

Ao analisar filosoficamente o Brasil Império, o texto anterior o fez sobre a ótica de Montesquieu para questionar a divisão de poderes do Brasil; de Maquiavel para descrever D.Pedro II como um governante pragmático, porém condenando-o por não ter respondido às demanda populares rápido o suficiente; de Locke para questionar a legitimidade do regime imperial perante ao seu desrespeito aos direitos fundamentais; de Hobbes para argumentar que  uma monarquia diferiria muito pouco, ou quase nada, de uma república; e de Hans Hermann Hoppe para argumentar que monarquias poderiam ser moralmente superiores a democracias.

Embora todas essas análises do período imperial sejam academicamente robustas e individualmente válidas, estão incompletas ao não se abordar também a ótica do filósofo liberal Benjamin Constant. 

Isso porque, segundo Paim (2018), a nossa independência (1822) ocorreu antes de o modelo de representação republicano da Revolução Francesa se consolidar como vitorioso (na França, ainda existia o chamado democratismo, responsável pelo período do Terror). 

Era uma época onde apenas a monarquia constitucional inglesa era um modelo de representação sólido conhecido, e diversos teóricos liberais ainda propunham seus próprios modelos de democracia. Tendo a monarquia brasileira tido um raro papel ativo na independência do país, ela optou por seguir o modelo de Benjamin Constant, que mantinha um papel para a monarquia sem esvaziá-la totalmente. 

Para Constant, a divisão dos poderes deveria ocorrer com cinco poderes ao invés de três: os Poderes Executivo e Judiciário permaneciam iguais; enquanto o Poder Legislativo era dividido em dois, um para nobres e outro para cidadãos comuns; e era adicionado ao monarca um Poder Moderador. Houveram abusos quando D.Pedro I tomou à força para si os poderes Executivo e Moderador, porém a divisão dos poderes voltaria à estabilidade após a coroação de D.Pedro II. A partir disso, é possível complementar algumas das visões apresentadas:

  • Sendo o Brasil um país criado com base em quatro poderes ao invés de três, inverte-se a crítica de Montesquieu: a instabilidade política após a república poderia ser explicada pela adoção de três poderes num sistema criado com quatro. Estando vago o poder moderador, os outros poderes lutariam entre si para obtê-lo e serem capazes de dar a palavra final.
  • Verifica-se o argumento de Hobbes de que a monarquia e a democracia pouco se diferem. Inclusive, a legitimidade do governo imperial perante o povo foi maior durante o período imperial do que durante a República Velha. Isso porque, segundo  Carvalho (1987), a retirada da figura do imperador acabou por emancipar a população da austeridade que ele emanava para a sociedade. Ainda segundo Carvalho (1987), a Republica Velha tentava recriar esse lastro de legitimidade perante a população, porém fracassou. O sentimento da população quanto à República Velha era de que não existiam leis objetivas, mas sim uma elite governando sem o povo e disposta a mudar as leis sempre que lhe convinha.

Refeitas as revisões historiográfica e filosófica, é possível então chegar a uma nova resposta à pergunta do texto: seria o Brasil Império o auge da política brasileira?

Entre Sonhos e Verdades

É inegável que o período do Império teve alguns de nossos maiores heróis. Poucas pessoas em nossa história republicana se igualaram aos lendários nomes de José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Barão de Mauá, do Visconde do Uruguai, e do Marquês do Paraná; trazidos pelo texto anterior. Eu, inclusive, adicionaria a eles a Imperatriz Leopoldina, José do Patrocínio, Luís Gama, e José de Seixas Magalhães. Um dos poucos nomes republicanos a altura, Rui Barbosa, já era tido no Brasil Império como um de seus maiores sábios.

Ao mesmo tempo, este texto resposta demonstra que esses nomes eram uma exceção dentro do sistema imperial, cujo pilar central era a escravidão. O Império idealizado pelos seus saudosistas é, portanto, apenas um pequeno recorte dos anos finais do Segundo Reinado, onde pontos fora da curva são exaltados como se fossem exemplos gerais. Não são. Precisamos sempre nos lembrar de que o exemplo que melhor representa o Império não é nenhum deles, mas sim Paulino Soares de Souza.

O sonho dos saudosistas, porém, contém uma verdade: os regimes republicanos que vieram em seguida eram altamente instáveis e mais de uma vez se tornaram ditaduras. Segundo Paim (2018), o período Segundo Reinado foi um período ímpar na história brasileira, onde contamos com um sistema político extremamente estável e com ampla liberdade de imprensa. Houve a criação de um vácuo de poder deixado pela queda da monarquia e do poder moderador, sentido até hoje na política brasileira.

Dito isso, vivemos no período da Redemocratização: todos os cidadãos adultos, de todas as raças e classes sociais, têm tanto representação política quanto garantias e direitos individuais. Frente a isso, mesmo que não tenhamos mais personalidades tão épicas quanto as daquele período, nem a República Velha nem o Império podem ser vistos como um auge político a se retornar. Eram ambos sistemas profundamente elitistas onde a voz do cidadão comum não tinha vez nas decisões do país.

Há sim muito o que poderíamos melhorar, e concordo com a visão de Paim (2018) de que não deveríamos ter descartado o modelo de representação imperial por completo, mas um retorno à monarquia não irá nos reverter nossa realidade.

Concordo com a ideia do texto original de que temos “figuras políticas poderosas agindo como se fossem reis modernos, sem coroas, mas com palácios e séquitos de servos”, e que a discussão em torno da monarquia denuncia a fragilidade do atual sistema democrático. Minha opinião, inclusive, é de que poderíamos ter nos tornado um país melhor caso o Império tivesse sobrevivido além da Lei Áurea e crescido além da era dos grandes fazendeiros. Mas ele não sobreviveu, e o retorno à monarquia não apagaria os 135 anos de instabilidades que tivemos. 

O que podemos fazer é louvar os heróis do passado e tentar aprender quais dos bons exemplos desse período poderíamos utilizar na realidade atual. Não olhemos para o passado que poderia ter sido, mas para o futuro que ainda podemos ter.


Paulo Grego

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.


BIBLIOGRAFIA

ALONSO, Angela. Flores, votos e balas. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2015.

CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do império. São Paulo: Companhia Das Letras, 1995.

CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1998. p. 256

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados : o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia Das Letras, 1987

MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis. A lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Edunicamp/Cecult, 1999.

NABUCO, Joaquim. Minha Formação, Brasília: Câmara, 2019, p. 264 

PAIM, Antônio. História do Liberalismo Brasileiro, São Paulo: LVM, 2018, p. 408

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. FrontLog, 1995.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *