Escola Sem Partido – um post mortem

O antes tão predominante projeto Escola Sem Partido (ESP) parece ter evaporado completamente do discurso público. O projeto visava criar uma “cartilha de deveres” dos professores na sala de aula para que os estudantes pudessem manter seu direito de ter uma educação “neutra e livre da doutrinação ideológica”. Embora o projeto tenha reconhecido um problema na educação brasileira, sua recepção nunca foi encarada pelo meio estudantil como algo sério. À luz de seu fracasso, este texto fará uma análise sobre a qualidade e viés da educação brasileira para discutir se há realmente um problema com a liberdade de cátedra de nosso país. 

A Escola tem Partido. Porque?

É bem conhecido o viés de esquerda em muitos de nossos professores brasileiros, a ponto da imagem cliché dos professores de humanas como militantes atacando o imperialismo americano e defendendo o comunismo vem à mente de muitos quando se fala em educação. Esse clichê é a base do ESP, que defende seu projeto abaixo:

“Como se sabe, a visão crítica dos estudantes é direcionada sempre e invariavelmente para os mesmos alvos: a civilização ocidental, o cristianismo, os valores cristãos, a Igreja Católica, a “burguesia”, a família tradicional, a propriedade privada, o capitalismo, o livre-mercado, o agronegócio, o regime militar, os Estados Unidos, etc.

Em contrapartida, nada ou quase nada se diz aos alunos sobre os mais de 100 milhões de cadáveres produzidos pelo comunismo; sobre a repressão política e o fracasso econômico da antiga União Soviética; sobre a KGB, o Gulag, a Grande Fome 1932-1933; sobre a ditadura cubana, os presos políticos e a falta de liberdade naquele país; sobre os campos de reeducação e trabalho forçado na China comunista; sobre a fome de 1958-1961, causada pela política econômica de Mao Tsé-Tung — que matou, segundo o historiador holandês Frank Dikötter, pelo menos 45 milhões de chineses entre 1958 e 1962, sendo que desse total, entre 2 e 3 milhões de pessoas foram executadas ou torturadas até a morte. Em suma, o olho crítico dos “despertadores de consciência crítica” só enxerga — quando não inventa — os pecados dos adversários políticos e ideológicos da esquerda; nunca ou rarissimamente os da própria esquerda.”

A partir disso, o ESP propôs que todas as salas de aula do brasil tivessem a seguinte cartilha de deveres do professor, pregadas na parede para que todos os alunos pudessem ver:

  1. O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.
  2. O professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.
  3. O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.
  4. Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade -, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito.
  5. O professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
  6. O professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.

No entanto, seria ingenuidade da nossa parte, como liberais, pararmos por aqui. Até porque, verdade seja dita, também temos doutrinadores de direita entre os professores.  O ESP age como se os professores brasileiros fossem uma sociedade secreta se reunindo em segredo para propositalmente planejar o fim da sociedade ocidental, mas baseia sua argumentação em achismos e clichês ao invés de apresentar qualquer dado sério. O viés de esquerda até existe, mas nada indica que seja mais do que isso: um viés.  O que então faz um professor ser doutrinador? 

Na dúvida? Friedman explica

Como Milton Friedman tanto exaltou em seu documentário “Livre para Escolher”, o dinheiro é um meio de informação indireto que avisa a população para tomar decisões independentemente de condução estatal. É um número mágico que condensa todas as possíveis variáveis de um produto em uma informação útil, sem que o seu consumidor final precise saber em detalhes os problemas do produtor. 

Pois bem. Sendo a profissão de professor, principalmente a de professor de escola pública, uma profissão tão mal paga, desgastante, e sem recursos, quais incentivos uma pessoa teria para colaborar? Não é uma profissão como medicina, onde a alta classe brasileira luta com as unhas e dentes por uma vaga.

O incentivo que move os professores brasileiros é muito menos financeiro e muito mais ideológico. São pessoas que olham a nossa terrível realidade educacional e, por princípio, batalham com unhas e dentes para mudá-la. Qual a realidade da nossa educação? Seguem abaixo dados do IBGE:

Note como o ESP não tocou nestes dados na hora de falar sobre educação. A principal reclamação deles é a de que os professores de humanas não estão ensinando os valores com os quais eles concordam, mas o ESP ignora os problemas da educação em si. A motivação do projeto não era uma iniciativa para melhorar nossa educação, mas sim uma iniciativa para introduzir a própria doutrinação nas escolas. 

Guerra ideológica ou guerra pela educação?

Frente a índices tão ruins na educação,  as escolas brasileiras vivem em constante estado de emergência. A falta de recursos e incentivos econômicos e culturais à educação causam um desfalque de professores, e há alunos que passam vários anos sem nunca terem professores de alguma matéria. Para tentar suprir este vazio, é regra no Brasil que professores lecionem disciplinas sobre as quais não possuem formação acadêmica. Gente com formação em TI dando aula de Química, pessoas formadas em ADM lecionando História, etc.. É nestes casos onde ocorrem as maiores distorções e polarizações políticas que vemos na sala de aula, com o professor tentando preencher os conhecimentos que lhe faltam com sua posição política pessoal num esforço para tentar levar educação ao maior número possível de jovens carentes. É desmotivante e muitos desistem de fazer um bom trabalho por conta disso, mas o foco está sempre na educação. Se não fosse por eles, muitos alunos não teriam nem isso.

Para piorar, como já comentei em um texto sobre homeschooling, o nosso método de ensino foca no aprendizado do mesmo conteúdo padronizado para todos e não considera os talentos e habilidades pessoais de cada aluno. Neste modelo “conteudista”, muitos professores são incapazes de controlar uma sala ou motivar os alunos a quererem aprender sua matéria, levando a altos níveis de evasão escolar e analfabetismo funcional. É um ensino que trata o aluno como “recipiente vazio” a ser preenchido em vez de co-autor de sua história. Pasme! Esta crítica que acabei de fazer é de Paulo Freire, e é um dos motivos de os professores o adorarem tanto.

Dito isso, é verdade que este comportamento também pode ser encontrado em escolas de elite, como vimos no revoltante caso da escola Avenues. Existe sim um grupo de professores nas escolas particulares que utiliza o ensino como ferramenta para transmitir sua ideologia. No entanto, é um grupo tão minoritário dentre os professores que colocá-los todos nessa categoria seria uma difamação. O professor do colégio Avenues tem a mesma liberdade de cátedra de chamar a PSOLista Sonia Guajajara que um professor liberal teria de chamar o diretor do Livres Magno Karl. Um professor moderado poderia inclusive chamar ambos e promover um debate para que os alunos possam desenvolver suas próprias ideias.

 Nada disso ocorre, porém, porque não temos professores liberais o suficiente no meio para que isso aconteça. Se vemos o viés de esquerda entre os professores, portanto, é antes de tudo um sintoma da falta de professores liberais no meio educacional.   

Então onde estão os professores liberais?

Até pouco tempo? Em extinção junto com o liberalismo. O Brasil teve grandes nomes liberais no passado como Joaquim Nabuco, André Rebouças, e Rui Barbosa, mas a tradição liberal foi em grande parte esquecida com a ascensão do Estado Novo, que promoveu uma ruptura tão forte com os valores liberais anteriores que impediu sua renovação. Os liberais após a Era Vargas eram poucos, sem vínculo com os autores do passado, e subgrupo dos militares ou social-democratas. 

“Na República Velha (…) os liberais estiveram atuantes e é à sua bandeira que se recorre em 1930, com a Aliança Liberal. Na fase subsequente, o fato de que o liberalismo clássico tenha partido muito de sua aura levou a que vissem excluídos da hegemonia do processo, entregue à oscilação pendular entre populismo e autoritarismo.”

Antônio Paim, a História do Liberalismo Brasileiro

Foi apenas na redemocratização que o liberalismo brasileiro começou a renascer como movimento em si mesmo. Nomes como Roberto Campos, Hélio Beltrão, José Guilherme Merquior, e Henry Maksoud trariam as doutrinas do liberalismo conservador e liberalismo social de volta ao debate público. Dentre eles, nenhum liberal se dedicou tanto em sua vida pública à educação quanto Marco Maciel, reconhecido pelo historiador Antonio Paim como o primeiro homem de Estado a destacar o caráter prioritário da educação para a cidadania.

Maciel viria a ser Ministro da Educação e também vice de Fernando Henrique Cardoso,  defendendo um número maior de séries no ensino fundamental para que os alunos pudessem ter uma maior formação cidadã. No entanto, setores muito articulados da sociedade moldaram este ensino como um preparo para o vestibular, bloqueando a discussão e condenando mais uma geração de alunos a um ensino conteudista. Diferente da época de Maciel, hoje temos institutos, grupos e grandes nomes defendendo as ideias de liberdade. Seja o Livres, o Instituto Liberal, o Instituto Mises Brasil, o Partido NOVO, ou até nossa própria união estudantil na UJL, nossas ideias tem mais uma vez os números e representação na sociedade necessários para fazer a diferença, e é o que deveríamos fazer. Como lidar então com a esquerda nas escolas?

Todos pela educação

Muito parecido com Marco Maciel, tivemos na era petista os esforços de Fernando Haddad na reforma educacional. Com a sua reformulação do ENEM, havia um otimismo muito grande nas disciplinas de licenciatura de que este ENEM seria o caminho para transformar o currículo da escola brasileira para não apenas ensinar conteúdos, mas sim desabrochar as competências de cada estudante. Além disso, a inclusão de ensino de sociologia e filosofia no currículo dava esperança de que estivéssemos mais próximos do currículo do aluno cidadão.

Mas deu tudo errado, e Haddad conseguiu a FAÇANHA de quase quadruplicar os gastos com educação (de 19bi para 69bi) sem melhorar a qualidade do ensino. O ENEM se tornou um vestibular tão conteudista quanto os outros vestibulares tradicionais (e inclusive com a empresa que fez o pré teste ganhando 7 vezes mais, sem licitação). Federais de ensino superior foram abertas por todo Brasil ao invés de focar no ensino básico, e os enormes investimentos para profissionalização dos professores não vieram junto de melhores salários ou condições de trabalho,  e mais uma geração de jovens brasileiros sofreu as consequências.   

Até aí nada de novo sobre o sol. A “Arrogância Fatal” de Hayek já previa que isso aconteceria. Mas note como as intenções ao redor de Marco Maciel e Haddad são parecidas: ambas foram as gestões que mais investiram na formação dos professores, mas não conseguiram melhorar a qualidade de ensino ou mudar o ensino conteudista para um ensino cidadão.  Independente de ideologia, há um desejo genuíno para que a educação melhore de qualidade e que os alunos tenham um ensino cidadão ao invés de conteudista. Sabe o que faltou em ambos os casos? Os liberais. Não tínhamos números suficientes ou organização popular necessária para fazer frente aos setores que venceram Marco Maciel, não estávamos lá quando era necessário fiscalizar devidamente os superfaturamentos da gestão Haddad, muito menos estivemos presentes para cortar os supersalários e privilégios da elite do funcionalismo público (juízes, promotores, militares, e políticos), de forma a permitir aumentos de salários para a classe dos professores. 

Apenas agora temos um liberal como Kim Kataguiri à frente da comissão de educação. Não podemos cometer o mesmo erro do ESP e cobrar que os outros devam aplicar por conta própria as ideias que nós defendemos. Teria o ensino se tornado essa ferramenta conteudista de estudo para o vestibular e o dinheiro tão desperdiçado se estivéssemos lá para fiscalizar e propor nossa idéias? Sim, a esquerda detém vários professores da área de humanas e grande parte das universidades, mas é por WO.

Fazendo a nossa parte

Com base nisso tudo, ouso dizer que a liberdade de cátedra no Brasil está bem viva e deve ser respeitada. Devemos deixar que os professores usem dos seus melhores métodos (contanto que dentro dos limites da pedagogia) para educar os jovens de uma maneira que os permita crescer como cidadãos e abra as portas para uma vida melhor. O ponto de vista liberal para resolver os vieses de esquerda no ensino não são regulações como o Escola Sem Partido, mas sim ocupar os espaços da educação com profissionais liberais, legalizar o homeschooling, e melhorar os incentivos financeiros para que as pessoas queiram ser professores. Com cada vez mais professores liberais no meio, o pensamento de esquerda deixará de ser tão hegemônico como seus críticos apontam, assim como aqueles que quiserem um ensino customizado para seu filho e que reflita seus ideais terão uma opção no homeschooling.

Educação é assunto sério e não dá pra resolver na canetada ou com soluções mágicas. Estamos numa operação de guerra e precisamos de mais e mais professores para suprir essa demanda tão urgente, afinal eu duvido muito que o mais marxista e doutrinador dos professores seja contra a escola dele finalmente ter um professor de matemática para o ensino fundamental só porque ele é liberal. Discutir os vieses educacionais dos professores é sim fundamental, mas precisamos antes fazer nossa parte e ocupar esses espaços. 


Paulo Grego

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