A aplicação racionalista das leis e seus impactos na sociedade

Introdução

O uso do racionalismo no mundo jurídico causa grandes implicações e refletem na sociedade de forma imprevisível, podendo em determinados momentos causar grandes instabilidades institucionais. Dessa forma, o objetivo desse artigo visa fazer uma correlação entre o uso racionalista na aplicação ou interpretação de leis com o que  Michael Oakeshott descreveu como racionalismo na política. Apesar do autor falar em seu livro “Rationalism in politics and other essays” na questão do uso do racionalismo na política, percebe-se a amplitude das suas ideias e críticas em outras searas. 

O direito, as leis, as jurisprudências estão intrinsecamente ligadas à vida política e social. Em termos abstratos e práticos se completam como alicerces de uma conjuntura formalizada e materializada em hábitos e regras.  

Conhecimento técnico e prático

Com isso, temos que esclarecer o que ele afirma no “Rationalism in politics and other essays” sobre o que é conhecimento técnico e conhecimento prático. Oakeshott descreve o conhecimento técnico como aquilo que pode ser formulado em um conjunto de regras, princípios e máximas mais ou menos precisos que podem ser aprendidos mecanicamente. 

Uma vez que o conhecimento técnico é capaz de ser formulado em regras mais ou menos precisas, ele tende a ser associado a uma aparência de ordem, certeza e completude […] já o conhecimento prático é descrito por ele como um conhecimento que não é nem ensinado nem aprendido, apenas transmitido e adquirido, e muitas vezes parece impreciso, incerto e incompleto como resultado. Como Oakeshott coloca, o conhecimento prático “existe apenas na prática” e pode ser adquirido “apenas por contato contínuo com alguém que o está praticando perpetuamente” (Oakeshott, 1991). Ainda no livro, ele relata de maneira formidável como a habilidade sutil do cozinheiro é a ilustração mais famosa de conhecimento prático. 

Na cozinha, o cozinheiro júnior aprende não apenas a técnica do cozinheiro mais experiente, mas também adquire um conjunto de sensibilidades, habilidades e julgamentos, muitas vezes “sem nunca ter sido comunicado com precisão” e “sem ser capaz de dizer exatamente o que isto é’ (Oakeshott, 1991). E, a partir dessas definições, ele sustenta que tanto o conhecimento técnico quanto o conhecimento prático estão envolvidos na maioria das atividades humanas, ou seja, querer excluir um em favor do outro vai contra a natureza humana e pode correr em determinados erros e equívocos dos mais simples aos mais complexos. 

A falácia racionalista

Um dos grandes erros do racionalista é tratar o conhecimento técnico como elemento superior para qualquer tipo de atividade humana, não levando em conta o vínculo entre passado e o presente. O conhecimento técnico ou tradicional não pode ser ensinado no ponto de vista instrumental, só há uma maneira de aprender essa dinâmica, como foi supracitado, é estando naquele lugar, estando com aquelas pessoas e participar do patrimônio prático que aquelas pessoas foram desenvolvendo durante os anos para serem capazes de produzir determinados tipos de efeitos. 

No início do texto ele diz que o racionalismo tem uma capacidade negativa que é a necessidade de predominar-se à experiência. Isso seria uma capacidade geral do racionalismo. Isso estaria em posição contrária do que poderia ser chamado de uma aceitação dos mistérios e da incerteza da experiência – são dois lugares – o lugar do tradicional é o lugar em que as certezas são aceitas, onde os mistérios são aceitos. E o lugar da técnica onde o mistério e a incerteza não são aceitos e a atitude principal é a subjugação da experiência por alguma coisa que possa ser ensinado diretamente em um livro. O Oakeshott fala que as virtudes das ciências são aquelas que decorrem na incerteza, são virtudes que decorrem da atitude investigativa, e esta é caracterizada pelo “não sei”, não pelo “sei”. 

O racionalismo na política

Na esfera política, assim como em outras esferas, o racionalismo se assegura como a última palavra, que legitima através do direito e da lei. Um dos argumentos de Oakeshott é de que é importante para o discurso racionalista dizer que fora do âmbito da autoridade baseada em certezas é que não há mudanças. Que as coisas só mudam, geralmente, para melhor, quando alguém enuncia certeza e obtém autoridade com a certeza. Por exemplo: como é que nós vamos mudar para melhor? Como o nosso país vai se tornar menos injusto? Alguém vai ter que aparecer publicamente e dizer: “eu sei como isso vai ser feito. Me deem autoridade, porque eu sei”. Ele diz que o racionalismo é uma política da urgência.  Ele aparece publicamente dizendo: “existe uma urgência e eu sinto como resolver essa urgência”. 

O racionalismo na esfera jurídica

Dito isto, há de fazermos um paralelo do racionalismo no meio jurídico, visto que isso não é um fenômeno atual, mas um fenômeno que se pode fazer comparações, em seus termos práticos e conceituais, com o positivismo jurídico. Um grande pensador do positivismo jurídico foi Hans Kelsen, o qual formulou a teoria pura do direito, tendo como inspiração o positivismo filosófico de Augusto Comte. Este, sendo o fundador de tal filosofia, diz que para o positivismo a ciência é o coroamento do saber humano, porque esta é a única confiável. 

Os demais conhecimentos, provenientes de outras fontes não são confiáveis e seriam postos de lado com o passar do tempo. (Comte, 1830). Nesse sentido, Kelsen tem seu insight para elaboração de uma teoria pura do direito. O filósofo político Norberto Bobbio fala na sua obra – Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos, que Para Kelsen, o Estado é “uma ordem coativa, um conjunto de normas que se fazem valer contra os transgressores até mesmo recorrendo à força” Assim, o Estado é considerado, meramente, uma técnica de organização social, que pode ser manipulada para vários objetivos, dependendo de quem estiver no controle do poder. Preocupado em saber o que é e como é o direito, Kelsen afirma que seu estudo científico implica, apenas, na compreensão de sua estrutura e de sua natureza, libertando a ciência jurídica de tudo que lhe é estranho: psicologia, sociologia, ética e política. 

Mas, lógico, há de se criticar essa visão pura da norma, uma visão que se remete ao racionalismo de várias formas, tanto na criação, aplicação e na interpretação dela. (Bobbio, 2000) Mas como bem disse o jurista Paulo Nader, que em seu comentário abordou os principais problemas e criticou a forma racionalista de se pensar as ciências jurídicas: O positivismo jurídico, que atingiu o seu apogeu no início de nosso século, é hoje uma teoria em franca decadência. Surgiu em um período crítico da história do Direito Natural, durou enquanto foi novidade e entrou em declínio quando ficou conhecido em toda a sua extensão e consequências. 

O declínio do positivismo 

Com a óptica das ciências da natureza, ao limitar o seu campo de observação e análise aos fatos concretos, o positivismo reduziu o significado humano. O ente complexo, que é o homem, foi abordado como prodígio da Física, sujeito ao princípio da causalidade. Em relação à justiça, a atitude positivista é a de um ceticismo absoluto. Por considerá-la um ideal emocional, acessível apenas pelas vias da emoção, o positivismo se omitiu em relação aos valores. Sua atenção converge apenas para o ser do Direito, para a lei, independentemente de seu conteúdo. (Nader, 2003) 

Mas um dos grandes filósofos na área jurídica do nosso país, Miguel Reale, fala muito bem da importância de se levar em consideração outros elementos no meio jurídico: 

”O direito e a experiência jurídica seriam uma só coisa, mas ela é antes a compreensão do ‘direito in acto’, com efetividade de participação e de comportamentos, sendo, pois, essencial ao seu conceito a vivência atual do direito, […]. Trata-se, por conseguinte, de uma compreensão necessária do direito, enquanto este não pode ser reduzido à simples vigência normativa ou mero juízo lógico preceptivo – que o mutilaria em sua essência – mas deve ser interpretado como real processo de aferição dos fatos em suas conexões objetivas de sentido” (Reale, 1992). 

O criador da teoria tridimensional, a qual é adotada pelo nosso ordenamento jurídico, teoria que permite que na aplicação das leis sejam analisadas de acordo com o fato, o valor e a norma, pois, na visão deste autor, o direito positivo e o jurisdicional deixavam o direito apenas como algo parcial, insuficiente e incompleto.

Uma perspectiva do além do juspositivismo

Existe uma grande importância na estabilização social através de instituições legitimadas a regulamentar o convívio entre os indivíduos, seja pelo poder legislativo seja pelo poder judiciário, sempre levando em conta o seu contexto social-local, observando os costumes, as tradições. Por isso, para essa análise, o Michael Oakeshott é tão importante, pois ele fala da disposição de se manter aquilo que demonstra ter sua eficácia no processo prático, aquilo que já se encontra de uma certa maneira no nosso meio social, sem ter algo para dogmatizar e nem mecanizar essas experiências. Mas, infelizmente, não é o que se observa na prática. 

O ordenamento jurídico-político brasileiro, mesmo com toda sua evolução histórica, ainda se mostra longe da perfeição. Pode-se visualizar em decisões, jurisprudências de várias jurisdições com interpretações e aplicações literais das leis, resquícios de uma herança juspositivista, uma herança que enxerga a lei de forma fria e morta, sem levar em consideração elementos e fontes que trariam muito mais eficiência tanto do ponto de vista do Direito quanto da Justiça. 

Não me refiro aqui em mudar o sistema adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro (civil law) pelo common law (adotado por países como Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e outros países). Nosso ordenamento permite, a partir dos princípios encontrados nele, um olhar mais crítico a algumas leis e uma maior discricionariedade quanto a forma de aplicar e até mesmo de elaborá-las. 

E Benedito Pereira filho aborda muito bem essa preocupação de visualizar o ordenamento jurídico aos olhos da justiça, de modo que o Estado atenda as necessidades sociais e reveja a sua forma de subjugar os indivíduos através da lei: 

“A intenção, no momento, é demonstrar que as exigências sociais cada vez mais em ascensão e as consequências desastrosas para o Estado em não atendê-las satisfatoriamente, como descrédito, criação de justiças paralelas, distúrbios etc, contribuíram, sobretudo, para um repensar na administração da justiça e, principalmente, no papel do juiz, se de fato seria ele um simples aplicador da lei ou se deveria, acima de tudo, ser um agente político que, junto com as partes em juízo, aplicaria a justiça, ao servir-se do processo e não somente da lei”  (Pereira, 1999). 

Quando se aplica a lei, deve-se, claramente, levar em conta seus valores, prestando uma atenção maior aos costumes, à moral, para que em seus efeitos práticos venham a preponderar a justiça e não só a satisfação de empregar a frieza da lei. 

Como os princípios constitucionais podem ser parte da solução para essa análise mais ampla das codificações, eles também podem ser um problema se usados de forma inconsequente. Pois a maioria dos princípios são simplesmente aquelas ideias e valores em seus formatos abstratos que já se encontravam presentes na história em seus contextos práticos, sendo positivados na carta magna fortalecendo essa estrutura preexistente. 

Conclusão

Oakeshott exprime que a ideologia política trata os princípios como ideias que existem antes e independentemente das atividades concretas a que se referem. O Racionalista vê sua tarefa como implantar princípios premeditados para fazer (ou refazer) os arranjos de uma comunidade política. O Racionalista faz isso sem se preocupar em como esses arranjos são atualmente atendidos. Mesmo em se tratando de política, é totalmente válido fazer essa confrontação, com base neste pensamento, no meio jurídico, já que, patentemente, Ministros da Corte Suprema se valem destas ferramentas principiológicas, de acordo com sua vontade e ideia de mundo, para reformar parte do ordenamento através de decisões totalmente incontroversas e, em algumas situações, até mesmo arbitrárias. Causa-se uma enorme confusão e instabilidade jurídica, pois a inovação sem levar em conta seus efeitos pragmáticos, acarreta insegurança constitucional e social. 

É fundamental transparecer a exiguidade de um prisma dos aplicadores, intérpretes, juízes e juristas, presente aos institutos jurídicos, que operam, em algumas ocasiões, como repetidores crônicos de uma continência positiva, doutrinadora e mecanizada. Ser meditativo, pois a análise hipoteticamente isenta e imparcial da lei crua, acaba, também, refletindo a mentalidade idealizadora daqueles que só se preocupam com o poder e o seu controle. Por isso, há de salientar o quão importante é a conservação de bons costumes, assim como os seus pilares (família, ética, moral), é essencial para geração de condutas que irão reconhecer a importância do ordenamento jurídico, assim como, além do cumprimento das leis, o respeito pelas leis. 



Referências

OAKESHOTT, Michael. Rationalism in politcs and other enssays. United Kingdom: Liberty Fund, edição 1991.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos. Rio de Janeiro: GEN Atlas, 2000.

REALE, Miguel. O Direito como Experiência: Introdução à Epistemologia Jurídica. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1992.

NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 23ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

GEE, Graham, WEBBER, Grégoire. Rationalism in Public Law. The Modern Law Review, vol. 76, no. 4, Wiley, 2013.

REES, John C. Professor Oakeshott on Political Education. Mind, vol. 62, no. 245, Oxford University Press, Mind Association, 1953. 

COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 

PEREIRA FILHO, Benedito. Pressupostos teóricos para a efetividade material da tutela executiva (dissertação). Curitiba: UFPR, 1999

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