O grande economista Bryan Caplan é notável por demonstrar a plausibilidade, às vezes até a verdade, de ideias contra-intuitivas. Mas, ocasionalmente, seus argumentos se voltam contra si. Assim acontece em seu artigo “‘Sanção’: O Triunfo da Pior Ideia de Ayn Rand”, recentemente enviado aos seus assinantes do Substack.1
Neste artigo, Caplan argumenta que a falecida filósofa e romancista Ayn Rand é responsável por grande parte do tom desagradavel do discurso público atual. Mais ou menos. Ele reconhece que o problema, como existe hoje, não surgiu de Rand, pelo menos não diretamente: “Será que Rand é realmente responsável pela intolerância moral da modernidade? Provavelmente não; as linhas de comunicação intelectual não se encaixam.”
Elas não se encaixam, diz Caplan, porque — apesar do fato de que os romances de Rand terem liderado pesquisas de leitores como a melhor e mais influente literatura americana do século XX, apesar do fato de que as ideias de Rand ajudaram a dar à luz ao moderno movimento pela liberdade do qual Caplan faz parte — muitas pessoas “amam odiá-la”, o que significou (novamente, na estimativa de Caplan) “que ela não teve uma influência ampla”. No entanto, contra-intuitivamente, “Uma das posições mais peculiares de Rand se espalhou como um incêndio.”
A preocupação de Caplan aqui não é explicar, mas lamentar essa aberração, o “triunfo” da ideia de que justiça requer avaliar moralmente aqueles com quem se lida e nunca ficar em silêncio enquanto os seus valores estão sendo atacados. Ele cita a resposta de Rand a uma pergunta de um leitor, “Como se lidera uma vida racional em uma sociedade irracional?”
“Jamais se deve deixar de pronunciar um julgamento moral.2
Nada pode corromper e desintegrar uma cultura ou o caráter de um homem tão completamente quanto o preceito do agnosticismo moral, a ideia de que nunca se deve julgar moralmente os outros, que se deve ser moralmente tolerante com qualquer coisa, que o bem consiste em nunca distinguir o bem do mal.
É óbvio quem lucra e quem perde com tal preceito. Não é justiça ou tratamento igual que você concede aos homens quando você se abstém igualmente de elogiar as virtudes das pessoas e de condenar os vícios das pessoas. Quando sua atitude imparcial declara, de fato, que nem o bem nem o mal podem esperar nada de você — a quem você trai e a quem você encoraja?”3
Por mais que você tente, não encontrará exemplos no artigo de Caplan do que a ideia de Rand exige na prática. Em vez disso, ele nos assegura, com base em sua experiência pessoal com “uma subcultura que abraçou a virtude de intolerância moral” de Rand, isso significa nunca conversar com aqueles com quem você discorda — ou com aqueles que conversam com aqueles com quem você discorda. Significa, ele diz, selar-se hermeticamente de qualquer pessoa com visões opostas. Como ele coloca,
“O que isso significa na prática? Não fale com seus inimigos intelectuais — e não fale com pessoas que falam com seus inimigos intelectuais. Porque eles são seus inimigos também. Claro, você pode denunciá-los; mas você não pode ter uma conversa civilizada. De fato, engajar-se em tal conversa praticamente te faz tão ruim quanto eles.”4
Qualquer pessoa em seu juízo perfeito deve concordar com Caplan; isso de fato soa como uma ideia terrível, uma que talvez Caplan e alguns que se autodenominam Objetivistas praticaram, sem dúvida com resultados desastrosos5. Pode até ser uma ideia que objetivistas razoavelmente famosos praticaram. Não sei; eu não estava lá, e Caplan, por um tempo, aparentemente estava. Na minha experiência, ele parece um cara ótimo, e não tenho motivo para duvidar de seu testemunho.
Mas o que eu sei é que a ideia que ele descreve não é uma que Rand defendeu em publicações — não no ensaio que Caplan cita, nem, pelo que eu saiba, em nenhum outro lugar. O que ela escreveu não é que não devemos falar com aqueles cujas visões opomos, mas que não devemos ficar inertes enquanto tais pessoas atacam nossos valores. Fazer isso implica, na melhor das hipóteses, que não podemos formular uma discordância racional; na pior, que concordamos com eles.
Suponha, por exemplo, que você esteja almoçando com um potencial parceiro de negócios, e ele faça um comentário racista ou sexista para a garçonete. O que você deve fazer? Segundo Rand, você deveria moralmente condenar seu preconceito.
Sem dúvida, muitas pessoas iriam concordar, mas vale a pena perguntar por que Rand sustentou isso como uma questão de princípio, a ser agido em todo caso. O que muitos que “amam odiar” Rand ignoram (ou ignoram deliberadamente) é que o propósito central de sua filosofia, o fim para o qual todas as suas ideias-chave foram oferecidas como meios, é uma vida de felicidade. O propósito da filosofia, ela afirmava, “é ensinar você, não a sofrer e morrer, mas a desfrutar-se e viver.”6
A razão pela qual é errado aturar bobagens imorais silenciosamente não é “porque parece certo” ou “porque Rand disse”. A razão é que ao julgar as pessoas racionalmente e tratá-las de acordo — ou seja, praticar a virtude da justiça — é uma parte vital da busca pela felicidade, enquanto falhar em fazer isso sinaliza a aprovação ou indiferença ao comportamento imoral e convida e incentiva a mais irracionalidade e injustiça — tudo em detrimento próprio, à destruição dos próprios valores e, finalmente, se amplamente adotado, ao fim da sociedade civil. É por isso que é errado para o jogador de futebol do ensino médio ficar de braços cruzados enquanto um valentão bate em um jovem e leva seu dinheiro do almoço. É por isso que é errado não investigar e, se necessário, repreender ou demitir um funcionário que você flagra mentindo, roubando ou insultando seus clientes. É por isso que é errado apaziguar terroristas.
Virar a outra face não é uma virtude; é o vício de estender um tapete vermelho sobre sua vida e valores e convidar outros a pisoteá-los. A advertência de Rand contra sancionar moralmente o mal pode parecer “peculiar” quando tirada de contexto. Mas quando mantemos esse contexto e consideramos como agir corretamente em situações concretas, nunca sancionar o mal parece ser um requisito praticamente óbvio da justiça e, por conseguinte, de uma vida florescente.
De fato, até Caplan concorda com o núcleo da ideia de Rand quando diz que não devemos “ouvir respeitosamente a todos. Pessoalmente, eu traço a linha entre comunistas declarados e nazistas. Eles realmente não são dignos de uma resposta; portanto, eu não respondo a eles.” Amém. Esse é exatamente o tipo de distinção que Rand considerava racional e moralmente necessária.
Mas, deixando comunistas, nazistas e (outros) racistas de lado, aplicar o princípio da justiça é frequentemente — não, quase sempre — difícil. “Pronunciar um julgamento moral é uma enorme responsabilidade”, escreveu Rand.
“Tal como um juiz em um tribunal de justiça pode errar, quando a evidência é inconclusiva, mas não pode evitar as evidências disponíveis, nem aceitar subornos, nem permitir que qualquer sentimento pessoal, emoção, desejo ou medo obstrua o julgamento de sua mente sobre os fatos da realidade — assim cada pessoa racional deve manter uma integridade igualmente estrita e solene no tribunal dentro de sua própria mente.”7
Além disso, ela acrescentou:
“Julgar significa: avaliar um concreto dado em referência a um princípio ou padrão abstrato. Não é uma tarefa fácil; não é uma tarefa que pode ser realizada automaticamente pelos sentimentos, ‘instintos’ ou palpites de alguém. É uma tarefa que requer o processo de pensamento mais preciso, mais exigente, mais impiedosamente objetivo e racional.”8
E Rand também não tolerava o tipo de ataque “atirar primeiro, ouvir nunca” que Caplan lamenta.
“A política de sempre pronunciar um julgamento moral não significa que se deve considerar a si mesmo como um missionário encarregado da responsabilidade de ‘salvar a alma de todos’ — nem que se deve dar avaliações morais não solicitadas a todos aqueles que se encontra. Significa: (a) que se deve conhecer claramente, de forma plena e verbalmente identificada, a própria avaliação moral de cada pessoa, questão e evento com os quais se lida, e agir de acordo; (b) que se deve tornar conhecida a própria avaliação moral aos outros, quando for racionalmente apropriado fazê-lo.
Isso significa que não é necessário iniciar denúncias morais ou debates não provocados, mas que se deve falar em situações onde o silêncio pode objetivamente ser interpretado como concordância com ou sanção do mal. Quando se lida com pessoas irracionais, onde o argumento é fútil, um simples ‘Eu não concordo com você’ é suficiente para negar qualquer implicação de sanção moral. Quando se lida com pessoas melhores, uma declaração completa de suas visões pode ser moralmente exigida.” 9
Sem dúvida, muitos objetivistas falharam em aplicar corretamente essas ideias. Mas nem eles, nem ninguém estão salvos do erro. Como Rand disse, a realidade é o tribunal de última instância. Enquanto uma pessoa está errada, ela sofre consequências, seja desperdiçando sua vida “construindo uma Torre do Erro”, como Caplan diz, alienando possíveis aliados e/ou de outras formas. No entanto, as falhas deles em entender e aplicar corretamente a ideia são irrelevantes para a verdade ou falsidade da própria ideia.
Nem a fidelidade a esta ideia — ou seja, que devemos seguir escrupulosamente a verdade onde quer que ela nos leve e avaliar aqueles com quem lidamos com base não em sentimentos ou desejos, mas em fatos — explica o discurso incivil de hoje. Na verdade, esse problema precede Rand há muito tempo. De fato, foi um dos principais alvos dela no próprio texto que Caplan cita: “É apenas no reinado atual de cinismo amoral, subjetivismo e “hooliganismo” que os homens podem imaginar-se livres para proferir qualquer tipo de julgamento irracional e não sofrer consequências.” Além disso, os americanos lidam com esse problema há séculos. Qualquer um que seja familiarizado com a história inicial deste país [Estados Unidos] pode atestar que tal “hooliganismo” remonta pelo menos até as disputas presidenciais entre John Adams e Thomas Jefferson10. O poder das mídias sociais de amplificar mensagens controversas pode ter algo a ver com um aparente aumento na discórdia social. Mas as ideias de Rand sobre justiça e sanção moral não são nem a causa, nem uma contribuinte para o problema.
Elas são parte da solução.
Praticar realmente o que Rand defendeu (não o que foi falsamente atribuído a ela) requer não apenas ter (e, quando apropriado, fornecer) razões válidas para suas visões e valores, mas também elevar seus padrões de avaliação — descartando todas as considerações de “afiliação a equipes” ou suposta “identidade de grupo”, avaliando pessoas e posições com base em seus méritos — abstendo-se de “denúncias morais ou debates não provocados” e seguindo a verdade onde quer que ela nos leve. Isso, é claro, requer ouvir e lidar com visões opostas — não lançando críticas e se retirando para o seu “gueto intelectual” — mesmo quando essas visões vêm de pessoas que você “adora odiar”. Para usar os termos de Julia Galef, significa ser um explorador, não um soldado — priorizando ver as coisas claramente em vez de defender sua posição atual. Significa, como Adam Grant aponta, estar disposto a reconsiderar quando as evidências contradizem nossas visões.
Essas são novas formulações de ideias antigas. Elas nomeiam requisitos básicos de um valor que fundamenta as visões de Rand sobre justiça e sanção moral: objetividade. E isso é algo que precisamos mais, não menos.
Texto Original: Ayn Rand on ‘Moral Sanction’: What Bryan Caplan Gets Wrong

- The article originally was published five years ago, but he recently resent it to subscribers (apparently in preparation for a debate with a fan of Rand). See Bryan Caplan, “‘Sanction’: The Triumph of Ayn Rand’s Worst Idea,” EconLib, November 4, 2018, https://www.econlib.org/sanction-the-triumph-of-ayn-rands-worst-idea/. Also available at https://open.substack.com/pub/betonit/p/sanction-the-triumph-of-ayn-rands-worst-idea.
↩︎ - Caplan’s quote includes an errant “a,” which does not appear in Rand’s published piece. ↩︎
- Ayn Rand, “How Does One Lead a Rational Life in an Irrational Society?,” The Virtue of Selfishness: A New Concept of Egoism (New York: New American Library, 1964), 82.
↩︎ - Caplan, “‘Sanction’: The Triumph of Ayn Rand’s Worst Idea.”
↩︎ - Objectivism is the name of Rand’s philosophy, and Objectivists are those who ascribe to it and live by it.
↩︎ - Ayn Rand, “This is John Galt Speaking,” For the New Intellectual (New York: Signet, 1963), 173.
↩︎ - Rand, “How Does One Lead a Rational Life in an Irrational Society?,” 82–83 ↩︎
- Rand, “How Does One Lead a Rational Life in an Irrational Society?,” 84.
↩︎ - Rand, “How Does One Lead a Rational Life in an Irrational Society?,” 84.
↩︎ - See, for instance, Dennis C. Rasmussen, Fears of a Setting Sun: The Disillusionment of America’s Founders (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2021).
↩︎