O que você precisa saber sobre a lei que pode mudar a internet
Está para tramitar o Projeto de Lei nº 2630, apelidado por alguns de lei das fake news e, por outros, de lei da censura. O Instituto Damas de Ferro se posiciona, junto de grande parte do movimento liberal e grandes instituições democráticas, como contrário à sua aprovação, enquanto os grupos de esquerda defendem em peso sua aprovação. No entanto, as Big Techs Google, Facebook, Twitter, Instagram, e Mercado Livre também se posicionaram contrárias em uma carta conjunta apesar de terem um fortíssimo viés de esquerda. Por que isso aconteceu?
O motivo é simples: há algo muito importante sendo discutido no PL 2630 que ninguém no debate público brasileiro está dando a devida atenção. Uma luta que já vem sendo travada mundialmente há anos, e que encontra no Brasil seu novo campo de batalha. Como alguém da área da tecnologia que acompanha esta batalha de perto, permita-me mostrar o verdadeiro perigo do PL 2630.
Plataformas vs Editoras
O PL 2630 criará a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, estabelecendo formas de controle para fake news, contas falsas e bots nas redes. Pessoas a favor argumentam como o descontrole em relação a tudo isso mergulhou o país num caos e resultou na onda de ataques a escolas infantis, enquanto seus críticos apontam que os artigos do projeto (principalmente o Art. 11) teriam critérios vagos demais que permitiriam ao governo perseguir seus adversários políticos e grupos evangélicos. O real problema, porém, não são quais regras estão sendo estabelecidas, mas sim o fato de elas existirem. Pera…oi? Calma que eu explico.
Como funciona hoje, as redes são tratadas como plataformas, ou seja, apenas fornecem um meio para que seus usuários se comuniquem (tipo telefone!). Caso esse projeto passe, porém, elas serão tratadas como editoras desse conteúdo publicado (tipo um jornal). Em outras palavras, o governo quer tornar as redes sociais responsáveis juridicamente por todo conteúdo postado por todos os seus usuários ao longo de toda a sua história. Seria o mesmo que, se você recebesse um trote pelo celular, pudesse processar diretamente a Vivo por isso.
Parece impossível de aplicar? É porque é. Tão impossível, aliás, que o parlamento europeu está processando 23 de seus 27 países por não terem conseguido implementar a versão europeia desta lei. Isso para não falar que, em países onde esforços ainda são feitos para aplicá-la, como a Alemanha, há inúmeras restrições e fortíssima rejeição popular. Dentre as vozes contrárias, estão os pioneiros da internet como Tim Berners-Lee, Vint Cerf, Jimmy Wales, and Mitch Kapor, que juntos publicaram uma carta aberta denunciando o verdadeiro risco da responsabilização judicial das Big Techs.
Sendo nós mesmos criadores, compartilhamos a preocupação de que deve haver uma distribuição justa das receitas online e do uso de obras com direitos autorais, que beneficia criadores, editores e plataformas. Mas o Artigo 13 não é o caminho certo para conseguir isso. Ao exigir que as plataformas da Internet realizem a filtragem automática de todo o conteúdo que seus usuários carregam, o Artigo 13 leva uma passo sem precedentes para a transformação da Internet de uma plataforma aberta para partilha e inovação, numa ferramenta de vigilância e controle automatizado dos seus utilizadores.
– Carta Aberta ao presidente do parlamento europeu
O PL 2630 não é sobre Fake News, assim como o artigo 13 da diretiva de 2018 do parlamento europeu não era sobre copyright em músicas, a revisão da seção 230 em 2020 não era sobre combater viés político, e as leis americanas SOPA/PIPA de 2012 não eram sobre combate à pirataria. Cada uma delas utiliza um bode expiatório diferente, mas todas elas tentam na verdade se impor legalmente sobre as plataformas digitais. O que está sendo discutido aqui é sobre se os governos poderão ou não se tornar uma autoridade moral capaz de decidir o que deve ser publicado ou censurado na rede.
Apesar de estarmos num momento em que as fake news e o assassinato de reputações já foram longe demais, com inclusive grupos utilizando as redes para coordenar ataques a escolas, o PL 2630 não será a solução para isso. Sabe quem já teve de lidar com algo parecido? A Apple.
Os terroristas de iPhone: perigos do pânico moral
Entre 2015 e 2016, um atentado terrorista em San Bernardino matou a tiros 14 pessoas e feriu gravemente outras 22. Mortos os terroristas, o FBI investigou suas casas e encontrou, entre bombas caseiras e munição, um iphone intacto. Desbloquear este iphone seria vital para o caso de terrorismo doméstico, mas as configurações do celular apagariam todos os dados caso os oficiais errassem a senha 10 vezes. Eis que o FBI pediu para que a Apple desenvolvesse uma forma de passar pela criptografia e segurança do celular para que o Governo pudesse desbloqueá-lo, e ela disse não.
O pânico moral sobre o massacre de San Bernardino era muito similar ao que vivemos hoje com os massacres em escolas, com até mesmo o presidente Obama pressionando a Apple a mudar de ideia. Mesmo assim, o CEO da Apple, Tim Cook, manteve sua decisão. O motivo disso era técnico: se a Apple desenvolvesse o que o governo estava pedindo, o código em algum momento vazaria e nenhum iPhone estaria seguro. Seria o Santo Graal para hackers mundo afora e governos autoritários querendo vigiar a vida de seus cidadãos, colocando milhões de pessoas em risco.
Além disso, a Apple deixou claro que isso não seria um caso isolado: mesmo que desenvolvessem a backdoor e a deletassem depois, isso criaria um precedente para que juízes o pedissem de novo e de novo. Em outras palavras, não existe meio termo. Permitir que o governo acesse dados de terroristas e indesejáveis significa necessariamente dar também a ele o poder sobre os dados de quaisquer cidadãos. E é justamente por causa desse princípio que aplicativos de mensagem desenvolveram a criptografia ponta a ponta: para que nem mesmo sob tortura os CEOs sejam capazes de ceder os dados de seus usuários.
O mesmo vale para o PL 2630. Pergunte-se: se o projeto fosse apenas sobre regular fake news e o ódio nas redes, porque querem aprová-lo com tanta urgência? O jornal O Globo, inclusive, chegou inclusive a defender a urgência dizendo que “não há mais tempo a perder com debates quando está em jogo a sobrevivência da democracia”. Um projeto importantíssimo como esse deveria ser debatido e melhorado no legislativo, mas estão fazendo de tudo para que seja votado e aprovado pra ontem. Por que será?
Esse órgão pode instituir um ‘protocolo de segurança’, obrigando as plataformas a ceder à entidade de supervisão o controle de suas regras, termos de uso, processos e características dos seus produtos, sem nenhuma checagem ou controle efetivos. (…) Sem os parâmetros de proteção do Marco Civil da Internet e com novas ameaças de multas, as empresas seriam estimuladas a remover discursos legítimos, resultando em um bloqueio excessivo e uma nova forma de censura.
– Posicionamento da Google contra o PL 2630
Fato é que, quando um governo faz de tudo para aprovar um projeto antes que a população descubra o que está sendo votado, o que está passando não costuma ser bom para a democracia. Tenha em mente que os legisladores sabem que é senso comum ver a violência e a incitação a ela como limites legítimos à liberdade de expressão, então vão usar sempre esses casos extremos para tentar te convencer a apoiar a causa sem pensar. Como sempre, o diabo está nos detalhes.
Vigilância Constante Também nas Redes
Em entrevista ao Wall Street Journal, Tim Cook afirmou que, se houvesse um meio de expor apenas as pessoas más, seja lá qual seja a definição de má, isso seria algo ótimo. Mas que isso não é o mundo.
De fato, nós brasileiros estamos cansados de saber que políticos podem ser corruptos, então porque esperar que, com o PL 2630, eles ajam dentro da letra da lei e a usem apenas contra quem espalha fake news? Lembremos como o Estadão passou os últimos 10 anos censurado por denunciar um escândalo da família Sarney, ou como um certo ministro do STF censurou a revista Crusoé em 2019 por uma matéria verdadeira denunciando corrupção no Supremo. Mais ainda! Lembremos como o antigo governo Lula já tentou três vezes criar um conselho para fiscalizar e punir a imprensa.
Neste contexto, imaginar que essa lei será abusada para perseguir e calar adversários políticos e vozes contrárias não é nenhuma fantasia. E nem precisa ser alguma conspiração sobre implementar o sistema de crédito social chinês no Brasil (o que, diga-se de passagem, políticos bolsonaristas já tentaram fazer). Basta lembrar que no Reino Unido, berço do capitalismo, já é uma realidade a polícia ir na sua casa te prender por twittar algo que não gostaram. Queremos viver isso no Brasil?
A batalha contra a censura nas redes é global e é constante. As Big Techs se posicionaram contrárias ao PL 2630 porque sabem que ele pode ser um precedente global para censura em seus próprios países. Por isso, não devemos tratar as redes sociais como editorias ao invés de plataformas em hipótese alguma, pois este é o caminho para a tirania.
Acima de tudo, nós, do Instituto Damas de Ferro, lembramos das palavras de Nadine Strossen no livro “HATE”, porque devemos resistir com liberdade de expressão, não com censura”, traduzido recentemente pelo Instituto: leis de discurso de ódio minam os princípios universais de liberdade, igualdade, e democracia, e tem sido regularmente aplicadas de forma inconsistente com os seus propósitos e até minam os seus objetivos. Para combater efetivamente o ódio, precisamos de mais discursos, não de menos, pois é muito fácil que essas leis possam ser exploradas no futuro para oprimir grupos marginalizados. Lutemos então contra esse projeto de lei, que será votado hoje, para darmos um recado ao mundo de que o Brasil, o país de Hipólito da Costa, é contrário a qualquer tipo de censura. O preço da liberdade é a eterna vigilância, então façamos hoje pressão e cobremos nossos deputados! Afinal, se não fizermos isso agora, talvez não possamos nunca mais.
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