Grande parte das pessoas acredita que altruísmo e benevolência são termos equivalentes. Essa afirmação não é apenas errada, o altruísmo e a benevolência não são apenas diferentes, são mutuamente hostis e contraditórios1. A importância de se discutir a relação entre os dois termos se deve sobretudo ao constante endosso falacioso que os críticos de Ayn Rand fazem à sua filosofia.
São recorrentes as alegações de que Rand criticava o altruísmo, entendendo-o como a ideia de fazer o bem às outras pessoas, e que ela enaltecia o egoísmo em seu sentido mais vulgar, o qual se embasaria na ideia de que todos deveriam pensar apenas em si mesmos, seguir seus objetivos passando por cima de tudo e de todos, e que em uma sociedade assim a humanidade se tornaria uma monstruosidade insensível e cruel, onde a bondade seria varrida da face da Terra. A ideia parece verossímil, contudo, há um erro crasso nessa crítica à Ayn Rand. Ela jamais defendeu isso.
O altruísmo ao qual ela se referia, ao tecer suas críticas, se referia era ao significado do termo em sua origem, quando foi cunhado por Auguste Comte em 1831, denotando uma inclinação natural que levaria os seres humanos a escolher o interesse geral em detrimento dos próprios interesses, a sacrificar-se pelo coletivo, abdicando dos interesses individuais. Assim, o altruísmo seria a ideia de que o propósito de sua vida é servir os outros, zelar pelo seu bem-estar e, se for preciso, sacrificar sua vida por eles. Logo, o homem não tem o direito de existir por si mesmo, apenas pelos outros. Quanto maior o grau de sacrifício de si, maior a virtude e o valor. Portanto, o absoluto básico do altruísmo é o autossacrifício, a auto-imolação, a autodestruição, ou seja, o eu como padrão do mal, e o desinteressado como padrão do bom2. Sob o altruísmo, quanto mais você se anula como indivíduo, mais valor tem. Quanto mais próximo a zero você chega, melhor é.
O altruísmo declara que qualquer ação tomada em benefício dos outros é boa, e qualquer ação tomada em benefício próprio é má. O beneficiário da ação é o único critério de valor moral, mas como se mediria isso? É simples, quanto menos virtudes uma pessoa tem, maior é sua demanda pelo sacrifício de outras pessoas. É o caso do homem bêbado que possui uma casa e uma família, mas as abandona para perambular pelas ruas pedindo caridade, já que isso é mais fácil que superar o vício e conseguir um trabalho formal, ou o caso do parente parasita, que quando precisa de dinheiro não hesita em pedir aos irmãos, do cunhado ou da mãe, ainda que eles vivam em mais dificuldades financeiras que ele.
A mentalidade altruísta diz que você é moralmente obrigado a ajudar aqueles que necessitam e, portanto, tendo em vista que a fraqueza e a incompetência comumente compõem o perfil daqueles que pedem por ajuda, ter essas características acaba se tornando um bom negócio, uma garantia de recompensa. “Se ser fraco, incompetente e parasita me traz tantas benesses, por que eu deixaria de ser assim? Se sempre haverá alguém para se sacrificar por mim, por que eu deveria me esforçar para mudar o meu jeito de ser?”, pensa o beneficiário do altruísmo.
Outro exemplo clássico, utilizado pelos próprios altruístas, diz respeito à questão de salvar uma pessoa que está se afogando. Se o sujeito a ser salvo é um completo estranho, é moralmente correto salvá-lo, porque você está fazendo isso de uma forma desinteressada. Mas se a vítima for alguém que você ama, então tentar salvá-la é visto como um ato egoísta, pois você poderia estar pensando que a sua vida sem aquela pessoa amada seria insuportável, e por isso você está cometendo tal atitude, assim, sua tentativa de salvar a pessoa que ama é vista com pouco ou nenhum valor moral.
Agora pense, será que o altruísmo tem mesmo origem da mais pura bondade e perfeição espiritual, ainda que se regozije quando um indivíduo dê um fim a sua vida por um estranho – abandonando e deixando desamparadas as pessoas que ele ama –, mas despreza quando ele o faz por alguém que tem real valor para sua vida? Que tipo de sentimento e filosofia bondosa é essa, que enaltece a autodestruição, a tristeza e a morte?3
Todo homem, argumenta o altruísta, é moralmente uma propriedade dos outros. Ele não tem o direito moral de investir a maior parte de seu tempo e energia em suas preocupações particulares. Se ele tentar, se ele se recusar voluntariamente a fazer os sacrifícios “necessários”, ele está prejudicando os outros, privando-os do que é propriedade moral deles, ele está se comportando como um verdadeiro delinquente moral.
Porém, é uma grande afirmação de moralidade se os outros, por meio da força, intervirem para extrair dele o cumprimento de suas obrigações altruístas. É o que acontece quando a mentalidade altruísta chega à esfera política. Através do termo “justiça social” inicia-se o uso de força física contra o indivíduo produtivo, tirando coercitivamente o dinheiro de uns para dar para outros. E assim, o fervor moral do altruísta se une à regra da força física, culminando em uma tática criminosa travestida de princípio governante das relações humanas4.
Como o altruísmo não pode ser praticado em sua plenitude (felizmente é impossível que todos se sacrifiquem por todos, atingindo a total destruição da humanidade, ou seja, a perfeição moral, segundo os altruístas), na prática ele equivale ao “direito” dos governantes de decidirem quem deve ser sacrificado a quem. Portanto, o altruísmo resulta em uma sociedade profundamente amoral, onde todos se sentem como inimigo de todos, pois os mais ricos, ao olhar para aqueles não são, podem pensar: “Eles querem as minhas coisas, eu tenho que servi-los, mas eu não quero!”, enquanto os mais pobres olham para os mais ricos e pensam: “Por que eles têm tudo aquilo e eu não tenho nada? Eu preciso das coisas deles! Eles precisam se sacrificar por mim! É dever do governo tirar deles para dar para mim!”. Como uma sociedade onde todos pensam assim, nutrindo a inveja, o ressentimento e o ódio, poderia se tornar benevolente?
A benevolência é uma atitude positiva sobre o mundo e sobre as pessoas. É uma visão que considera as pessoas como um valor a ser protegido. E isso é impossível sob o altruísmo, onde todos nós somos servos eternos uns dos outros5. O altruísmo corrompeu a ideia de benevolência humana ao considerar o doador como um objeto de imolação e o receptor como um miserável objeto de compaixão que possui o direito de propriedade sobre a vida dos outros. Tal doutrina acabou deixando os homens sem escolha, pois, sob ela, deve-se optar entre ser a vítima sacrificial ou o canibal moral.
Sob a benevolência, as pessoas podem abandonar esses papéis, afinal, o reconhecimento do fato de que não é seu dever moral ajudar os outros, não o impede de fazê-lo através da boa vontade, nem torna imoral oferecer ou aceitar assistência voluntária, desde que respeitados alguns princípios. É moralmente apropriado aceitar ajuda quando ela é oferecida não sob um véu de culpa ou dever moral, mas como um ato de pura generosidade, e quando é oferecido em resposta às virtudes do receptor, e não em resposta às suas falhas ou necessidades6.
A verdadeira benevolência requer interesse próprio, requer pessoas perseguindo seus próprios interesses. Por exemplo, um ato de generosidade cometido em respostas às virtudes, e não as falhas e necessidades, e buscando o próprio interesse, seria ajudar financeiramente uma instituição de caridade que auxilia e ensina crianças de rua a praticarem futebol, caso você seja um jogador de futebol profissional que queira que sua imagem inspire as futuras gerações, ou ajudar um amigo que sempre foi muito inteligente e responsável, que pensa agora em abrir seu própria cervejaria, mas não tem recursos, ou ainda se você faz um enorme favor a um parente distante, mas tendo consciência de que esse parente estará sempre de portas abertas para lhe ajudar no que for preciso.
A vida toda foi nos ensinado que ações assim são egoístas. Mas a verdade é que é completamente impossível ser benevolente sem ser egoísta. A benevolência e o egoísmo não são opostos, são parceiros, que por não exigirem sacrifício de nada a ninguém, podem contribuir para um mundo onde todos persigam e atinjam seus objetos pacificamente.
Urge destacar que enquanto o altruísmo pode ser conduzido para a esfera das políticas públicas, a benevolência não pode, afinal a caridade voluntária é possível, mas caridade coercitiva é uma verdadeira contradição em termos. Frédéric Bastiat já alertava ainda no século XIX que era impossível entender como a fraternidade pode ser legalmente forçada, sem que a liberdade seja legalmente destruída e, em consequência, a justiça legalmente pisada7. Obrigar as pessoas a serem “caridosas” – arcando com a redistribuição de renda governamental – é despir essa ação de qualquer valor moral que ela poderia ter.
Imagine dois cenários, no primeiro, um representante da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) chega até você pedindo uma doação. Você pensa no que ele diz, analisa os aspectos positivos da atuação dos profissionais, calcula os custos e decide que deseja doar. No segundo cenário, o governo anuncia que a MSF se tornou estatal, precisa continuar desenvolvendo seus trabalhos e, para isso, precisa aumentar os tributos pagos pelos brasileiros. Você paga. Nos dois cenários você ajudou a ONG, mas as duas ações diferem radicalmente de um ponto de vista moral. No primeiro, você é livre para concordar ou não, e para avaliar a conveniência dessa atitude no contexto dos seus valores pessoais. Já no segundo, você não pensa, não avalia valores morais, você não contribuiu para a organização porque acredita no trabalho dela, mas sim porque você teme as consequências de não pagar os tributos, de não obedecer ao comando coercitivo do Estado.
Rand identificou o medo como uma diferença crucial entre benevolência e altruísmo. Somente um homem que sabe que seus vizinhos não têm o poder de interferir fisicamente em sua vida, pode sentir-se benevolente em relação a eles, e eles em relação a ele8.
O medo é uma escopeta há tempos utilizada pelos místicos do espírito e dos músculos (espiritualistas e materialistas), para exigir o sacrifício da vida terrena. Assim como o sujeito que confessa seus mais sórdidos pecados ao padre esperando que ele lhe dê uma penitência que diluirá toda sua culpa pelos atos cometidos e o salvará da danação eterna no fogo do inferno, ou ainda, deixa de cometer os terríveis atos não porque considera eticamente errado, mas por medo de sua punição espiritual, o homem rico aceita a espoliação de sua fortuna pelo governo – justificada como necessária para a manutenção dos programas assistencialistas –, com medo de ser preso por sonegação fiscal. Em ambos os casos, boas intenções e atos altruístas estavam presentes em algum nível, mas benevolência, jamais. Praticar uma boa ação por medo não é uma atitude benevolente, é apenas uma atitude de um animal acuado.
Nesse sentido, assim como o altruísmo (autossacrifício) tende a florescer em uma sociedade com grande intervencionismo estatal, a benevolência tende a crescer em uma sociedade verdadeiramente capitalista, na qual ninguém deve nada a você e você não deve nada a ninguém. A única situação onde você interage intencionalmente com outras pessoas é quando vocês se beneficiam de valores compartilhados. Numa sociedade de livre mercado, onde as pessoas têm liberdade para criar e trocar coisas, é possível passar a vê-las de uma maneira positiva, pois elas não são um fardo, estão, na verdade, tornando sua vida melhor, melhorando seu padrão de vida através de trocas e trabalhos em direção a objetivos mutuamente benéficos. Em um ambiente assim, somos mais benevolentes, porque as outras pessoas são valores genuínos para nós.
No discurso de Galt, presente no livro A Revolta de Atlas, Rand mostra como distinguir uma atitude altruísta de uma atitude de caridade e benevolência.
“Como um passo básico de autoestima, aprenda a tratar como a marca de um canibal a demanda de qualquer homem por sua ajuda. Exigir isso é reivindicar que sua vida é sua propriedade. (…) Você pergunta se é adequado ajudar outro homem? Não, se ele afirma ser seu direito ou dever moral que você deve a ele. Sim, se esse é o seu próprio desejo, baseado em seu próprio prazer egoísta no valor de sua pessoa e em sua luta”9.
Portanto, segundo a filosofia objetivista, o altruísmo, ainda que seja tradicionalmente visto como um dever moral e um dever político que deve ser reforçado pelo poder do governo, na verdade é uma forma de servidão voluntária, na qual a autoestima individual é anulada, uma vez que sua primeira preocupação na esfera dos valores não é como viver sua vida, mas como sacrificá-la.
Você passa a ver a humanidade como uma horda de mendigos chorando por ajuda de um salvador, e adota uma indiferença letárgica à ética, pois ao invés de analisar racionalmente cada situação-problema, você apenas age tal como um piloto automático, um agente passivo em sua própria vida, apenas seguindo os mandamentos do autossacrifício, independentemente de ser moral ou não. Já quando substituímos o altruísmo pela benevolência, assumimos o protagonismo de nossa existência, ponderando acerca do valor de cada indivíduo e recompensando aqueles que de fato merecem, numa relação da qual o medo e o ressentimento não fazem parte e, portanto, numa relação de verdadeira fraternidade humana.
Bibliografia
1- Branden, Nathaniel. “Benevolence versus altruism”, The Objectivist Newsletter. julho de 1962.
2- Rand, Ayn. Philosophy: who needs it. Signet Book, 1984.
3- Rand, Ayn. A virtude do egoísmo. LVM Editora. 2022. p.45
4- Peikoff, Leonard .“Altruísmo, Pragmatismo e Brutalidade”, A Carta de Ayn Rand , II, 6, 3
5- Brook, Yaroon. What’ts the difference between altruism and benevolence. Disponível em:
<<https://www.youtube.com/watch?v=pZZct-2sqto>>. Acesso em 06 abr 2023.
6- Rand, Ayn. “A questão das bolsas de estudo”, The Objectivist , junho de1966.
7- Bastiat, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto. Ludwig von Mises Brasil, 2010.
8- Rand, Ayn. “A Nation’s Unity”. The Ayn Rand Letter, 23 de outubro de 1972.
9- Rand, Ayn. A Revolta de Atlas. 1ª ed. Guarulhos-SP: Arqueiro, 2017.
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