A democracia enfrenta uma ameaça global crescente. O que antes era considerado apenas retórica política de esquerda no Brasil tornou-se uma preocupação compartilhada em todo o mundo. Isso porque, segundo o índice de democracia global da Economist Intelligence, menos de 8% da população mundial vive hoje em uma democracia plena, enquanto quase 40% estão sob regimes autoritários em ascensão. Esse assunto em si não é novo, e inclusive eu cheguei a escrever um texto sobre ele em junho de 2023, mas essa tendência levanta duas questões urgentes: Por que isso está acontecendo? E qual é o grande inimigo que a democracia está sendo incapaz de vencer?
Definindo a democracia e a Democracia
O problema começa em definirmos o que é uma democracia. O modelo mais conhecido de democracia é o que vivemos no Brasil, a república democrática. Nela, um Estado é restrito por regras gerais constitucionais e todo o poder emana do povo, que elege seus representantes por meio do voto universal.
Claro que há outras variações possíveis, como por exemplo a monarquia constitucional do Reino Unido, mas as diferenças entre elas não são significativas. Isso porque o importante para uma democracia ser plena é que ela garanta o chamado “estado democrático de direito”, ou seja, um sistema de governo demorcrático que garante os direitos individuais, no qual a lei vale até mesmo para os líderes políticos.
Mas isso meio que todo mundo sabe, certo? Então porque começar o texto definindo o que é uma democracia? Bem… porque, como eu disse antes, o problema começa aqui. Poucas pessoas discordariam que ela é um modelo preferível a qualquer ditadura, afinal, como disse Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras”. Mas é justamente aí que mora o problema: na pós-modernidade, a palavra “democracia” foi ressignificada para refletir apenas os posicionamentos da esquerda ocidental.
Com isso, “Democracia” virou nome próprio. O melhor exemplo para entendermos isso é o caso do aborto: a esmagadora maioria dos brasileiros é contra o aborto, mas a sua legalização é tratada como avanço civilizatório democrático. Buscam-se então meios para legalizá-lo até os 9 meses de gestação, como vimos recentemente, por meio do judiciário e do executivo, ignorando-se os representantes populares. Quando questionados, dizem fazer isso pois essa pauta nunca iria adiante se dependesse dos deputados e senadores “conservadores”. Mas esses deputados e senadores não foram eleitos como representantes da população brasileira? E essa população não é igualmente contrária ao aborto?
Vê-se então que a medida não tem nada de democrática. É apenas o consenso de um grupo de pessoas de elite chamado por Thomas Sowell de “os ungidos”: pessoas com muito poder político ou econômico que acreditam saber o caminho correto que devemos seguir, e que taxam de “ignorantes”, “atrasados”, ou até “antidemocráticos” qualquer um que discorde deles (mesmo quando eles estão errados). Nesse sentido, o que faz a legalização do aborto ser um avanço Democratico não é a vontade popular, mas sim ser parte de um consenso do que os ungidos acreditam ser a “Democracia”. E o que é esse consenso? Bem…o que hoje chamamos hoje de lacração, identitarismo, ou cultura woke, que é a principal visão de mundo que esses ungidos exportam para o mundo; é o que chamam de “Democracia”.
E é aqui que começa o problema.
O Mundo e a Queda da Civilização Ocidental
Quem é o país mais poderoso do mundo? Hoje, são os Estados Unidos. Eles têm o maior exército, a maior economia, e são capazes de destruir qualquer país no mundo no apertar de um botão. E antes deles? Eram os países europeus como Inglaterra, França, e Alemanha. Foi assim por mais de 500 anos.
Há porém um segundo tipo de poder quando se fala de política internacional, o chamado “soft power”. O que é soft power? Nada mais do que a capacidade de um país de influenciar outros países através de seus valores culturais ou ideológicos.
Pera…oi? Calma que eu explico.
Pense no k-pop e nas novelas coreanas: através de sua cultura e poder econômico, a Coréia do Sul se torna um player global capaz de expandir e influenciar nas decisões de outros países. Isso porque, quando as pessoas consomem o k-pop e as novelas coreanas, acabam por assimilar valores coreanos, comer suas comidas, e criar em sua mente uma Coreia idealizada.
Pois bem, o que hoje a Coréia faz com o K-pop, o mundo ocidental fazia com a democracia. A sociedade burguesa européia do século XIX e a sociedade americana do século XX foram, juntas, o maior gigante militar e cultural já visto até então na história da humanidade! Eles eram os únicos países desenvolvidos do mundo, onde remédios e vacinas eliminaram as pragas; trens e automóveis permitiram viajar num instante; telégrafos e telefones permitiam comunicar-se com todos os continentes; luzes elétricas transformaram a noite em dia; e, claro, com o avião, realizou-se até o eterno sonho da humanidade de voar!
Todo mundo queria ser como eles! E como isso seria possível? Ora, pela democracia. A civilização ocidental exerceu o seu soft power classificando os regimes do mundo como democracias ou ditaduras, vendendo a democracia como o regime ideal responsável pela sua prosperidade. Aderir ao estado democrático de direito seria, portanto, o caminho ideal para se alcançar a prosperidade.
Seu único oponente, o comunismo, era um regime também criado pela cultura ocidental, e que portanto oferecia uma alternativa crítica às democracias sem nunca sair da visão de mundo ocidental. Mas tudo isso iria mudar com a queda do muro de Berlin e a crise de 2008. O Ocidente estagnou economicamente, e as outras culturas agora o estão alcançando.
Democracias Iliberais
Há 150 anos atrás, Paris era uma cidade de ruas estreitas e sinuosas, repleta de charmosos cafés e boulevards arborizados. Sua arquitetura era marcada por majestosos edifícios e monumentos icônicos, como a Torre Eiffel ainda em construção, e suas praças vibravam com a energia da vida urbana. Ir para Paris era como viver um sonho.
Mas hoje, mesmo que Paris desfrute de muitos aspectos de uma cidade desenvolvida, ela não é muito diferente de outras metrópoles globais: uma cidade poluída com uma crise habitacional crescente deixando a vida na cidade cada vez mais inviável, assim como problemas com tráfico de drogas e, dependendo da região que você vá, riscos de violência. Claro que Paris está numa situação muito melhor do que outras metrópoles, no entanto, o sonho acabou.
O mesmo vale para Nova York. 70 anos atrás, ela era o epicentro do jazz, da cultura boêmia e do glamour urbano. Suas ruas pulsavam com a energia da Broadway e os arranha-céus icônicos pontilhavam o horizonte. Era uma cidade de oportunidades e sonhos, onde as possibilidades pareciam infinitas e milhões de imigrantes chegavam para realizar o tão desejado sonho americano.
Hoje, apesar de ainda ser um centro global, é um do qual as pessoas querem fugir: o trânsito é congestionado; as ruas são abarrotadas e os sistemas de transporte público são frequentemente sobrecarregados. A desigualdade socioeconômica persiste, com muitos lutando por moradia em meio aos altos custos imobiliários. E claro, preocupações com crimes violentos, roubo, e o crescente problema do tráfico de drogas também continuam a ser preocupações para os nova-iorquinos.
Com que autoridade então o ocidente pode se impor aos outros países? O que ele teria de tão desejável que fizesse com que outros países queiram copiá-lo? Nada. O que resta do prestígio das nações ocidentais frente ao resto do mundo, seu soft power, se mantém apenas por um respeito ao seu passado glorioso, e não pelo exemplo que dão como nação hoje.
Um excelente exemplo disso é o caso de Nayib Bukele, o presidente de El Salvador. Ao ser eleito, seu país era um dos mais violentos do mundo, tido como um narco Estado. Hoje, após ele criar um regime de exceção onde a polícia pôde prender todos os traficantes e destruir seus símbolos de poder, o país hoje é um dos mais seguros nas Américas.
O mundo ocidental olha com arrepios para o caso de El Salvador, como se ele tivesse se tornado uma ditadura, mas isso não parece ser o caso até o momento: apesar do estado de exceção, manteve-se o sistema político democrático com ampla oposição tanto à esquerda quanto à direita; assim como eleições nas quais Bukele foi reeleito.
E aí que está a parte estranha pois, não se engane, o que está acontecendo em El Salvador é sim uma abominação. É algo que, apesar de democrático, está muito próximo do que o ocidente consideraria uma ditadura no passado. Mas quem seria hoje o ocidente pra opinar? É inegável que Bukele conseguiu, em muitíssimo pouco tempo, obter resultados na segurança superiores aos de grande parte da civilização ocidental. Qual alternativa o ocidente teria ao que Bukele fez? Ainda mais num mundo onde os Estados Unidos transformaram “levar democracia” numa piada para “invadir um país na base da bomba e substituir seu líder por alguém a favor dos interesses americanos”?
O sucesso de El Salvador, portanto, acaba sendo a exceção que comprova a regra: ao invés de as democracias ocidentais servirem de exemplo global a ser seguido, as pessoas do ocidente estão olhando para um país minúsculo como El Salvador buscando nele um exemplo para seus problemas. Ele é, junto de países como as Filipinas, o que o governante da Turquia Viktor Orbán descreveu em 2014 como “democracias iliberais”, e só está servindo como exemplo porque nós, defensores da democracia liberal, estamos falhando. E mais! Bukele já começou a expandir seu próprio soft power propondo implementar suas medidas no Haiti.
Logo, com a estagnação e decadência da civilização ocidental, cai também a valorização da democracia plena, o seu soft power. A defesa da democracia passou então a ser outra coisa, e a ter concorrentes.
O Populismo é um Sintoma, não a Causa
No dia da eleição de Javier Milei para a presidente da Argentina, o âncora da GloboNews perguntou a seu correspondente internacional qual seria o perigo que Milei representaria agora para as minorias e os imigrantes. Confuso, o correspondente afirma que isso não era algo a se notar em Milei. A pergunta tem método: o âncora tenta equiparar Milei a Donald Trump; tido como o líder populista antidemocrático pela esquerda americana, a ungida representante da “Democracia”. É uma visão de mundo onde valores de direita passaram então a serem vistos como ferramentas de opressão incompativeis com a democracia e, consequentemente, líderes de direita como populistas usando das massas para derrubar a ordem Democrática.
Acontece, porém, que o populismo não é uma causa, mas sim um sintoma. Líderes populistas ganham força em países onde o povo não enxerga mais no sistema democrático uma solução. É a decadência das instituições que cria os líderes populistas, e não o contrário! Pense bem, caro leitor: você realmente acha que a Argentina elegeria um anarcocapitalista que clonou o próprio cachorro morto cinco vezes, porque acredita que assim se comunica com ele do além, se ainda confiasse que as instituições argentinas conseguiriam resolver sua crise?
Descobrimos então o porquê de as democracias estarem desaparecendo: o tiro sai pela culatra. Tentar reduzir a definição de democracia a um conjunto muito pequeno de ideias acaba por fazer as pessoas buscarem soluções fora da democracia liberal. É o que vemos na Europa com a ascensão do chamado “conservadorismo nacional”, uma nova corrente de conservadorismo tradicionalista fortemente contra a imigração e abandonando completamente o liberalismo (econômica e culturalmente).
Mas como isso se reflete no índice da Economist Intelligence? Qual é o grande inimigo que a democracia está sendo incapaz de vencer? Em uma única palavra, erosão.
Erosão Democrática: A Nova Ameaça
Pode parecer um choque, mas as democracias pelo mundo não estão mais caindo devido a grandes golpes de Estado vindo de líderes populistas autoritários comandando radicais e militares. O que acontece é que elas vão se degradando moralmente, perdendo a confiança do povo nas instituições aos poucos até que não sobre mais nada. Ficou confuso? Vamos ver por exemplo o Brasil:
- Vivemos há quase 20 anos atrás o escândalo do Mensalão, onde o poder executivo estava comprando parlamentares para aprovarem suas pautas. Ao invés de sofrer um impeachment, o presidente foi reeleito. Houve, na época, tentativas do governo de censurar a mídia, mas elas foram vencidas.
- Há exatos 10 anos atrás, vivemos o Petrolão, onde foi revelado que as principais autoridades políticas do país estavam numa lista de propinas de grandes empresas num dos maiores esquemas de corrupção da história do mundo. Surge a Operação Lava Jato, prendendo diversas dessas autoridades com ampla divulgação da mídia. A presidente da época sobrevive a essa crise usando, por 8 meses, todo o dinheiro que iria para programas sociais em sua campanha de reeleição. Frente a um país quebrado e às maiores manifestações populares da história do país, ela sofre um impeachment.
- Entre 2019 e 2022, vivemos um regime que desmantelou a Operação Lava Jato, dando liberdade a políticos por ela presos, e aparelhando a Polícia Federal ao ponto de criar sua própria ABIN (a CIA brasileira) paralela para espionar, perseguir, e punir seus adversários. Extremamente impopular devido às 700.000 mortes durante a pandemia, recebeu fortes críticas da imprensa e diversos pedidos de impeachment, mas sobreviveu até o fim de seu mandato ao criar o orçamento secreto, deixando 100% do orçamento do executivo nas mãos dos deputados sem a devida publicidade e transparência. Frente a uma derrota eleitoral, temos hoje vídeos dele reunindo-se com ministros para propor a eles um golpe de Estado, com minutas de como esse golpe ocorreria.
- O governo atual começa sob um ataque em 8 de janeiro com manifestantes, que ficaram meses nas portas de quartéis pedindo aos militares por um golpe de Estado, invadindo e depredando os prédios dos 3 poderes. O presidente, que já esteve preso e teve suas penas anuladas para poder ganhar a eleição, se torna persona non grata em Israel por comparar a guerra Israel-Palestina com o Holocausto. Seu governo é exposto tendo relações com um grande nome do tráfico de drogas e, ao falhar legalizar a censura digital por lei, o fez via TSE. O executivo então fez alianças com o poder judiciário, aprendendo o celular do líder da oposição, cassando mandatos de um deputado de direita. A imprensa agora defende ferrenhamente o governo e o supremo, chamando tudo o que vem do governo de democrático e, tudo que vem da oposição, de anti-democrático.
Quanta coisa, né? Percebeu como, independente do político no poder, os escândalos só foram ficando piores? Se o Mensalão tivesse acontecido numa democracia plena como o Japão, o presidente já teria renunciado ou sofrido o processo de impeachment mesmo que o escândalo fosse mentira. Mas não só isso não aconteceu por aqui, como também os escândalos foram aumentando em número e intensidade ao ponto que fomos nos acostumando com eles. É normalizado verem o Mensalão como “só uma coisinha de nada” quando hoje vivemos o orçamento secreto.
E é isso a chamada erosão democrática: após tantos anos de ataques impunes às instituições, há pessoas que não acreditam mais que vivamos numa democracia. Sem que tenha havido qualquer grande golpe de Estado, as garantias individuais e institucionais foram sendo gradualmente tolhidas ao ponto que não se poderia mais chamar o processo de democrático. É assim que as democracias mundo afora estão caindo!
Em vez de serem corretamente investigados e punidos, os atos de 8 de janeiro foram transformados em pretexto para que as liberdades e garantias democráticas fossem ainda mais agredidas no país
–Gazeta do Povo
Claro, nós brasileiros ainda não chegamos neste último estágio, e nossas instituições ainda são democráticas apesar de muito erodidas. Mas até quando? Não há garantias de que o próximo líder populista do Brasil seja alguém que respeite as instituições como Milei.
Fica claro portanto que, para que a democracia possa sobreviver, a “Democracia” deve cair. Preservar o Estado democrático de direito irá requerer deixar de apontar os dedos para nossos inimigos políticos e voltemos a nos ver mutuamente como adversários dentro de um sistema legítimo. E sim, isso parece utópico, mas lembre-se: o populismo é um sintoma. O que estamos vendo no mundo todo é que tentar driblar as regras da democracia para combater populistas acaba apenas por agravar esse sintoma! E quanto mais a democracia se erodir fazendo isso, mais fraca ela fica. Até o ponto que alguém consegue derrubá-la.
É apenas através da restauração da fé em instituições democráticas sólidas que iremos prevenir populistas, de esquerda ou de direita, de surgirem. E, para isso, as grandes decisões políticas devem voltar a serem discutidas por representantes populares eleitos, e não por ungidos escolhidos sem um único voto achando estarem acima do bem e do mal. Ao longo prazo, não há nada mais antidemocrático do que um “Democrata”.
*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.