José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, é uma das figuras mais importantes da história do Brasil. Não à toa, o dia de sua morte, 21 de Abril, foi escolhido para o feriado nacional do Dia de Tiradentes, em homenagem a esse mártir mineiro. Foi nesse dia, em 1792, que ele fora enforcado em praça pública pela conspiração que tramava, junto a um grande grupo de inconfidentes, contra a coroa portuguesa.
O fato de ter sido ele o único condenado à morte pelo imbróglio da Inconfidência Mineira levantou, aqui e ali, alguns mitos sobre a figura de Tiradentes. Afinal de contas, não é verdade que ele tenha sido o líder principal da revolta. Muito menos que era apenas um envolvido desimportante e que lhe foi dada essa condenação exclusiva apenas para proteger os demais inconfidentes, membros da elite colonial.
Joaquim, como figura histórica e como mito, foi candidato perfeito para ser um ícone da nova república brasileira estabelecida em 1889, já que era o mártir da maior conspiração separatista do Brasil Colônia e era encantado pelo republicanismo.
Toda a conjuntura histórica da sua vida foi pautada pela queda na produção aurífera na capitania de Minas Gerais. No ano em que Joaquim nasceu, em 1746, Minas extraiu quase dez toneladas de ouro. Já em 1790, ano em que sua morte foi decidida internamente no governo, esse número chegou a apenas 3,4 toneladas.
Ou seja, Tiradentes viveu no centro dessa crise. Crise para Portugal, diga-se de passagem, que não aceitava que o metal precioso se escasseava por motivos geológicos e tecnológicos, e não por contrabando e sonegação, como insistiam.
A origem do apelido de Tiradentes
Tanto o seu pai, Domingos da Silva dos Santos, quanto sua mãe, Antônia da Encarnação Xavier, tinham origem portuguesa. Suas famílias emigraram do reino justamente para aproveitar o boom do ouro no Brasil, o que possibilitou que o casal adquirisse uma posição financeira respeitável.
Joaquim nasceu e cresceu na fazenda do Pombal, localizada entre São João del-Rei e São José del-Rei, que contava com 36 escravos dedicados à produção, mais de três vezes a média em Minas. Seus pais eram fortemente cristãos, investindo 3% do valor da fazenda na construção de uma capela privada. Além disso, eles sabiam ler e escrever, uma raridade na época, o que influenciou Tiradentes, que não passou por estudos formais, mas ainda assim sabia escrever bem.
Entretanto, com nove anos Joaquim tornou-se órfão de mãe e aos 11, de pai. A partir daí, ganha destaque na vida de Tiradentes seu padrinho, Sebastião Ferreira Leitão. Foi com ele que Joaquim José da Silva Xavier aprendeu a “arte de tirar dentes”, que lhe traria frutos no futuro.
Com 20 anos, ele finalmente recebeu sua herança, suficiente para financiar seus projetos autônomos. Durante quase dez anos, Tiradentes trabalhou como dentista, fabricando e implantando dentes postiços, e fazia o papel de farmacêutico e médico também.
Tudo isso, com ferramentas e conhecimentos ainda muito precários de medicina e em uma época em que os cuidados com a higiene não eram valorizados de forma adequada. Por conta disso, Joaquim ainda precisou trabalhar como mascate, percorrendo longas distâncias comprando, transportando e revendendo mercadorias por toda a parte. Além disso, como na Colônia era proibida a impressão de jornais, os mascates funcionavam como difusores da informação.
O vai-e-vem de Joaquim como “dentista” e mascate só cessaria quando envolveu-se em uma confusão e foi preso no norte da capitania, em Minas Novas, na região do Alto Jequitinhonha. Não há muitos registros históricos do episódio, mas sabe-se que, após ganhar liberdade, ele voltou à estrada com quase nada do que tinha. Era hora de recomeçar a vida.
Tiradentes: o defensor da coroa portuguesa
Em 1775, a administração colonial realizou uma reforma no corpo militar responsável por Minas Gerais. Afinal, a capitania já fora palco de inúmeras revoltas, como a Guerra dos Emboabas em 1707 a 1709 e as de 1715 e 1520 na Vila Rica.
Os motins tinham duas razões, de maneira geral: a dureza fiscal de Lisboa e a intransigência das autoridades coloniais, que continuavam a cobrar o quinto — imposto de 20% de toda produção de ouro da colônia — mesmo com a queda de produção. A reforma militar em Minas visava vigiar e reprimir, impedindo o contrabando e estancando a sonegação.
Tiradentes ingressou como militar no novo recrutamento ao final de 1775 no cargo de alferes, o mais baixo do oficialato. Após passar quase três anos em funções burocráticas em Vila Rica, capital de Minas, Joaquim regressou à estrada com seus companheiros, patrulhando o Caminho Novo, por onde escoava todo o ouro destinado aos portos do Rio de Janeiro, capital do Brasil.
Em dez anos na corporação, Tiradentes nunca fora promovido, nem sequer recebera um aumento em seu salário. Em contrapartida, outros companheiros, devido às suas conexões políticas, avançavam na carreira e tinham seu trabalho reconhecido.
Mesmo tendo coordenado o destacamento da região de Sete Lagoas — que interligava Minas à Bahia — e neutralizado algumas das maiores quadrilhas atuantes no Caminho Novo, ambos em postos de chefia, ele foi mantido estagnado como alferes. Isso causou em Tiradentes um grande ressentimento para com a administração colonial, e abriu-lhe os olhos para a corrupção, seletividade e arbitrariedade generalizada das estruturas estatais da época.
O Iluminismo finalmente chega ao Brasil
Joaquim José da Silva Xavier tinha tanto contribuído com o governo, mas sua dedicação nunca foi agradecida. Nas palavras de Lucas Figueiredo, jornalista e biógrafo do alferes:
“Em dez anos como integrante do Regimento Regular de Cavalaria de Minas, Tiradentes tinha feito de tudo pela Coroa. Descobriu minas, construiu estradas e combateu o contrabando e a sonegação …, se atreveu a transportar dinheiro para o governo. E mais: em um sistema colonial baseado na predação das riquezas e na opressão dos povos, sobretudo de pretos e pobres, Joaquim aceitou ser o porrete. Ele não discutia ordens, fazia de tudo que mandavam. ”
O Tiradentes, p. 113
O descontentamento de Joaquim lhe tornou suscetível a novas ideias que ferviam o mundo da política: o liberalismo, o republicanismo e a democracia. A sua extensa rede de contatos e amigos, que construiu ao longo dos seus períodos de Tiradentes e de alferes, foi moldando seu pensamento, despertando nele uma consciência política. Ao longo da década de 1780, transitando entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais, ele conheceu muitos dos rebeldes que posteriormente conspirariam junto consigo. Tiradentes juntou suas insatisfações e aspirações pessoais com seu desejo de independência, cada vez mais forte.
Muitos desses rebeldes eram filhos de fazendeiros, homens de negócios, comerciantes, mineradores, desembargadores, advogados e militares de alta patente, e estudaram na Universidade de Coimbra, onde entraram em contato com o Iluminismo. Esse era o caso dos principais líderes do movimento, como os poetas Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa e o carioca José Joaquim Maia e Barbalho, que inclusive negociou com Thomas Jefferson apoio à revolta, na França.
Mas foi José Álvares Maciel, que estudou filosofia natural em Coimbra e metalurgia em Birmingham, na Inglaterra, que particularmente teve maior influência sob Tiradentes. Após a morte de Maia e Barbalho, que negociava o apoio internacional à conjuração na França, Maciel assumiu esse posto, angariando homens poderosos na Inglaterra, que gostariam de abrir portos e negócios na futura nação independente.
A ideia de República encanta a Tiradentes
Maciel voltou ao Brasil em 1788, trouxe consigo uma grande bagagem intelectual e o elo que faltava para começarem, de fato, a esquematizar a revolução. No Rio de Janeiro, conversou com o homem responsável por estabelecer a ponte de comunicação entre os muitos rebeldes mineiros e os cariocas, mais discretos: Joaquim José da Silva Xavier.
Os dois se deram muito bem, já que o intelectualismo de Maciel completava o chamado para ação de Tiradentes. A partir dos seus encontros, o alferes aprendeu os princípios filosóficos que guiariam a revolução, inspirados nas ideias que levaram à Revolução Americana, tida como inspiração para os mineiros. A quebra dos laços coloniais, a ideia de direitos naturais à vida, liberdade e propriedade e o princípio da eleição de governantes foram um choque no pensamento de Tiradentes.
Joaquim recebera de Maciel todo o discurso moral que carregaria consigo para o resto da vida. Mais do que isso, recebera até de presente um livro em francês que continha a Declaração de Independência dos Estados Unidos, escrita há dois anos, as constituições de seis dos treze estados independentes e outros documentos menores. Ele não falava francês, mas isso não o impediu de se encantar com as ideias do livro, que lia paulatinamente com a ajuda de um dicionário do francês para o português.
A partir daí, os insurgentes passaram a reunir-se em Vila Rica para discutir concretamente os planos do levante. Nas suas reuniões, decidiram diversas estratégias militares, planos de ação, cadeias de suprimentos e começaram a redigir a própria constituição da futura república. A Tiradentes, cabia recrutar o maior número possível de apoiadores, propagar as ideias da revolução e espalhar a notícia em Minas e no Rio que a revolta era iminente.
Sua atuação não era nada discreta e, por isso, Joaquim trouxe para si um risco enorme. Nas palavras de Lucas Figueiredo:
“Em suas sessões de proselitismo, a fim de atrair simpatizantes para a causa, o alferes exagerava na descrição da força do movimento. Minas Gerais não estaria sozinha naquela jornada, dizia ele. A capitania do Rio de Janeiro viria junto. De tanto louvar a independência de Minas Gerais e pregar a adoção do sistema político norte-americano, Joaquim ganhou dois apelidos: uns o chamavam de Liberdade, outros, o República.”
O Tiradentes, p. 186
A delação premiada e o legado de Tiradentes
Tiradentes não era o intelectual do grupo, mas, de longe, era o mais empolgado. Em todos os cantos — pousadas, fazendas, bordéis —, Joaquim espalhava as ideias perigosas da “liberdade”, “independência” e “revolução”. No final das contas, ele conseguiu causar, nas Minas Gerais, uma comoção pela revolta. A conjuração mineira já era indissociável da sua figura, chegando ao ponto de ser chamada também da “sedição de Tiradentes”.
“Encarregado do recrutamento mais amplo e da difusão do movimento, tarefas às quais havia se entregado com um entusiasmo um tanto quanto exagerado, o alferes tinha se exposto demais. … Caso alguma coisa desse errado, não haveria como livrar Tiradentes. Não existia porta de saída.”
O Tiradentes, p. 219
Dito e feito. A delação do português Joaquim Silvério dos Reis, um dos homens mais poderosos de Minas, em troca do perdão da sua dívida com Portugal provou isso. Ao entregar toda a estratégia revolucionária, o governo deu voz de prisão aos inconfidentes, que permaneceram encarcerados durante os três anos de julgamento. Todos os 34 réus foram punidos, mas apenas Joaquim José da Silva Xavier foi condenado à forca.
No final das contas, Tiradentes tinha total consciência do risco que incorria ao se expor tanto. Para ele, a mensagem de liberdade e independência que espalhava tornou-se mais importante que sua própria vida. Por isso, contou a um companheiro conspirador:
“Havia de armar uma meada tal, que em dez, vinte, ou cem anos se não havia de desembaraçar.”
Citado em O Tiradentes, p. 222
Hoje, Joaquim foi eternizado na história brasileira como o mártir da liberdade que foi. Mais de duzentos e trinta anos depois, a meada de Tiradentes que não foi para frente pode servir de inspiração para os anseios de Liberdade dos brasileiros de hoje. Afinal, os ideais da Inconfidência Mineira apenas agora voltam a ser redescobertos no país e prometem, da mesma forma, virar o Brasil de cabeça pra baixo, ameaçando a corrupção estatal, os privilégios do governo e o abuso de poder do estado.
*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.