Nos últimos anos, tem se intensificado o debate sobre os rumos da sociedade americana e as semelhanças que ela compartilha com a antiga União Soviética no fim de sua existência. Alguns analistas, como o historiador e escritor Niall Ferguson, têm chamado atenção para um fenômeno que, à primeira vista, pode parecer improvável: o de que os Estados Unidos, hoje considerados a maior potência do planeta, poderiam estar caminhando em uma direção semelhante à que levou o regime soviético ao colapso no final do século XX.
Ferguson, que se tornou conhecido por suas análises históricas e políticas, usa essa comparação para refletir sobre as falhas internas dos Estados Unidos, principalmente nos aspectos econômicos, sociais e políticos. O autor propõe que, embora os EUA ainda possuam uma economia de mercado dinâmica e uma força militar considerável, há sinais de que o país está enfrentando uma série de patologias internas que o fazem caminhar para um destino de decadência, muito parecido com o que ocorreu com a URSS nas décadas de 1980 e 1990. Para compreender essa análise, é preciso olhar mais de perto para os paralelos que Ferguson aponta entre as duas superpotências em colapso.
A Crise Econômica e os Desafios da Gestão Pública
Um dos aspectos mais destacados de sua análise é a comparação entre a economia soviética no final de sua existência e os problemas econômicos enfrentados pelos Estados Unidos no cenário atual. Embora a economia dos EUA continue sendo uma das mais poderosas do mundo, com uma grande produção industrial, inovação tecnológica e um mercado financeiro robusto, há sinais preocupantes de estagnação. A produtividade, por exemplo, tem crescido de maneira muito modesta desde 2007, com uma taxa média anual de apenas 1,5%. Para muitos economistas, esse número é alarmante, pois está muito abaixo das taxas de crescimento que se esperava dos avanços tecnológicos, especialmente em áreas como inteligência artificial e computação quântica.
Ferguson também aponta o crescente déficit fiscal dos EUA como um reflexo da fragilidade estrutural da economia. Enquanto o governo dos Estados Unidos continua gastando mais do que arrecada, com projeções de déficit que ultrapassam 5% do PIB nos próximos anos, a sustentabilidade dessa trajetória financeira é questionada. Esse comportamento fiscal lembra a situação da União Soviética nas últimas décadas de sua existência, quando o sistema socialista, com sua economia centralizada, se viu incapaz de se adaptar a novos desafios e acabou colapsando sob o peso de suas próprias ineficiências. Para o autor, a América parece estar caminhando para um cenário onde a irresponsabilidade fiscal e a falta de produtividade podem levar o país a uma crise econômica semelhante à do fim da URSS.
O Colapso Social: Desigualdade, Mortalidade e “Mortes por Desespero”
Outro ponto crucial da análise de Ferguson é a crescente desigualdade social nos Estados Unidos e as consequências disso para a saúde pública e o bem-estar da população. No início do século XXI, uma epidemia de “mortes por desespero” começou a afetar grandes parcelas da população americana. Este termo, cunhado pelos pesquisadores Anne Case e Angus Deaton, descreve o aumento de mortes por suicídio, overdose de drogas e doenças relacionadas ao abuso de álcool, especialmente entre homens da classe trabalhadora. O número de mortes por overdose de fentanyl, por exemplo, superou as mortes em três grandes guerras – Vietnã, Iraque e Afeganistão – em 2022, o que é uma tragédia em si mesma.
Ferguson compara essa situação com as taxas de mortalidade na União Soviética durante os anos 1980 e 1990, quando o alcoolismo e o tabagismo foram responsáveis por uma parcela significativa das mortes, além de suicídios e uma queda generalizada na qualidade de vida. No caso da URSS, essa autodestruição estava diretamente ligada a um sistema político e econômico em colapso, onde a elite política parecia desconectada das necessidades e desejos da população. A falta de esperança, aliada à crescente alienação social, fez com que muitos cidadãos se entregassem a comportamentos autodestrutivos. Para Ferguson, os Estados Unidos estão enfrentando um cenário semelhante, onde as populações mais vulneráveis são abandonadas à sua própria sorte, enquanto a classe dominante parece cada vez mais distante da realidade da maioria.
A Desconfiança nas Instituições e o Cenário Político Atual
Se na URSS a desconfiança nas instituições foi um dos fatores determinantes para o colapso do regime, nos Estados Unidos o fenômeno parece estar tomando uma proporção ainda mais preocupante. Ferguson observa que a confiança nas principais instituições americanas – como o governo, os bancos, as universidades e a mídia – caiu drasticamente nas últimas décadas. A população americana, especialmente as camadas mais pobres, está cada vez mais cínica em relação ao que considera ser uma elite política e cultural desconectada da realidade do cidadão comum. Essa perda de fé nas instituições é um reflexo de um processo mais profundo de desconstrução do pacto social que, por muito tempo, foi um dos pilares da democracia americana.
A ascensão de ideologias progressistas, como as políticas de “diversidade, equidade e inclusão”, também é vista como parte desse processo. Ferguson argumenta que essas políticas, em vez de promoverem uma verdadeira mudança social, acabam beneficiando apenas uma pequena classe burocrática que trabalha em favor dessas causas, sem realmente atender às necessidades das comunidades marginalizadas. Essa crítica aponta para um cenário onde as falsas promessas de uma sociedade mais justa e igualitária alimentam ainda mais a desilusão pública. No fim, as políticas de inclusão se tornam um véu que encobre a verdadeira dinâmica de poder, perpetuando as desigualdades, mas sob um manto ideológico de moralidade.
Além disso, o autor critica a política externa dos Estados Unidos, comparando-a com a estratégia de proxy wars da União Soviética durante a Guerra Fria. Nos últimos anos, especialmente no contexto da Guerra na Ucrânia, os Estados Unidos têm incentivado países aliados a enfrentarem adversários como a Rússia e a China, sem se envolver diretamente nos conflitos. Essa estratégia, embora útil em termos de contenção, tem o potencial de arrastar os Estados Unidos para um conflito mais amplo, caso uma dessas nações não consiga resistir aos avanços de seus inimigos.
O Perigo de uma “América Soviética”
A grande questão levantada por Ferguson é: os Estados Unidos estão caminhando para se tornar a nova URSS? Embora a comparação entre os dois países seja controversa, os paralelos entre os momentos de crise nos dois impérios são inegáveis. A União Soviética entrou em colapso devido à sua incapacidade de resolver problemas internos, como a estagnação econômica, a corrupção institucional, a alienação da população e a crescente desconfiança nas elites governamentais. De forma similar, os Estados Unidos enfrentam uma série de problemas estruturais que, se não forem resolvidos, podem levar a uma crise igualmente devastadora.
No entanto, a esperança de Ferguson reside no fato de que os Estados Unidos, ao contrário da União Soviética, ainda possuem a capacidade de se reinventar. O país ainda detém um enorme poder econômico, tecnológico e militar, além de uma sociedade civil dinâmica e um sistema político que, apesar de seus defeitos, ainda permite certo grau de renovação. O grande desafio será se os Estados Unidos conseguirão corrigir suas falhas internas a tempo de evitar um colapso semelhante ao que ocorreu com a URSS. A verdadeira questão, portanto, não é se os EUA têm o poder de evitar esse destino, mas se estão dispostos a enfrentar as questões fundamentais que o país precisa resolver para garantir sua sobrevivência e prosperidade no futuro.
Conclusão
A reflexão de Niall Ferguson sobre os paralelos entre os Estados Unidos contemporâneos e a União Soviética do fim do século XX nos convida a repensar as direções políticas, econômicas e sociais que estamos tomando. A comparação, embora provocadora, é um alerta sobre os perigos da estagnação, da falta de confiança nas instituições e das patologias sociais que podem minar as bases de uma grande potência. Se os Estados Unidos não conseguirem enfrentar suas falhas estruturais, como a crise de saúde pública e a desconexão das elites em relação ao povo, correm o risco de seguir um caminho de decadência, como ocorreu com a União Soviética. O futuro dos Estados Unidos dependerá de sua capacidade de corrigir os rumos antes que seja tarde demais.
*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.