A história política do Brasil é marcada por diferentes regimes autoritários. Tal autoritarismo moldou não apenas as relações políticas, mas a conjuntura social e cultural também foram aderindo, ao longo do tempo, traços desse autoritarismo “paternalista” tão característico não só no Brasil, mas também presente na América latina em geral. A democracia brasileira é recente e de tempos em tempos vimos ela balançar com a influência de grupos simpatizantes e saudosistas àqueles tempos de repressão e liberdade limitada. Acredito que por conta dos vários anos de “líderes” autoritários, desde o início da formação brasileira ainda enquanto território colonial de Portugal, a experiência do Império, da República velha e a experiência dos episódios de ditaduras e ditadores governando o país, faz com que aqueles episódios que aconteceram em 2018 na campanha do ex-presidente Jair Bolsonaro e após a sua derrota na tentativa de reeleição em 2022 onde vimos pessoas pedirem a volta de regimes completamente autoritários e antidemocráticos não seja somente uma questão da democracia ser recente como muitos dizem. O autoritarismo já está de certa forma impregnado na cultura, e pior que o autoritarismo, a dependência das pessoas com o estado está presente nas relações sociais.
A dependência a que me refiro não é a relação do ideal ateniense de democracia, onde o cidadão tem voz ativa e comunga da vida política em sociedade, sendo o governo um ambiente mediador de decisões. A questão da dependência aqui, está relacionada a um representante populista, o “salvador da nação”, aquele que será responsável por suprir, nem que seja apenas no discurso, todas as necessidades individuais e coletivas dos cidadãos brasileiros. Os longos períodos de governos autoritários provocaram no senso comum e no imaginário brasileiro que precisamos que alguém seja responsável pela nossa vida.
Esse pensamento limitado e sem critério é capaz de desestabilizar qualquer governo democrático e para além disso, qualquer organização social. Pois a partir do momento que abrimos mão da nossa liberdade e nos colocamos na cômoda posição de não nos preocuparmos em nos organizar enquanto grupo ou comunidade, damos autoridade para um grupo limitar as decisões e a liberdade do povo. Tendo o nosso fracasso ou sucesso individual e coletivo entregue nas mãos de um tirano em potencial. Entregamos ao estado o poder de nos liderar, para que governe com a promessa de suprir nossos desejos, tendo a ingênua confiança de que ele não vai nos trair.
O termo populismo tem um outro sinônimo ao se tratar do anarquismo como uma ideologia política. Uma instituição ou organização populista, no anarquismo representa uma instituição ou organização ordenada pelo povo em uma relação mutualista. Para o autor Kropotkin o mutualismo é algo natural e está presente nas relações em indivíduos da mesma espécie, na natureza. Em uma comunidade de formigas, por exemplo, ou em uma alcateia, cada indivíduo daquela comunidade desempenha suas funções individuais em benefício da sobrevivência do grupo. Entendo, que este mutualismo seja um dos sinônimos para o termo populista ao pensarmos no anarquismo. A proposta do autor é que indivíduos de uma comunidade desempenhem suas funções individuais para suprir as demandas e necessidades da comunidade trabalhando com o mesmo propósito, garantindo, assim, uma espécie de harmonia social promovendo bem-estar e a manutenção das necessidades para a vivência e sobrevivência do povo. De acordo com ele, a humanidade somente foi capaz de se desenvolver e ser o que é hoje, em relação a outras espécies, graças à cooperação e ao trabalho em conjunto em comunidade. Todos trabalhando com o mesmo propósito.
Ao associar a ideia mutualista de Kropotkin com Proudhon que tem a polêmica interpretação de que a propriedade é um roubo, o “mutualismo social” passa a ser uma proposta interessante de organizar a sociedade. De acordo com Proudhon, propriedade é um bem que apenas uma pessoa se beneficia dos lucros e bens produzidos nela. Ou seja, uma fábrica onde o proprietário tem um maior ganho salarial que as pessoas que trabalham e produzem as mercadorias daquele lugar está roubando a “riqueza” gerada por esses trabalhadores. O ideal é que os bens produzidos por essa fábrica, exemplificada, seja distribuído igualmente entre o proprietário e os trabalhadores, caso isso aconteça a “propriedade” em questão, não seria considerada uma propriedade, mas sim uma posse. Pois Proudhon considera propriedade privada um espaço que está passível de benefício por apenas uma pessoa ou grupo, excluído os outros indivíduos da comunidade a ter acesso aos benefícios dos frutos que aquele espaço tem potencial de gerar. Trazendo a ideia mutualista para essa interpretação, seria justo que esse tipo de relação entre posses e geração de riqueza sejam igualmente distribuídas, pois o trabalho exercido gerará um benefício para toda a comunidade.
Em minha percepção, tal ideia seria praticamente impossível de acontecer no Brasil. Ao analisar a história política do país temos que considerar o fator cultural. O Brasil é um país bem fechado em relação a mudanças na estrutura política e tudo aquilo que está relacionado ao modo como as pessoas vivem, inclusive com o padrão estrutural da família, a “família tradicional brasileira”. Acredito que o conservadorismo seja a ideologia mais entranhada nas estrutura sociais, políticas e culturais do país. Há uma certa resistência à mudança. Independente da discussão política de direita e esquerda, que atualmente está bastante polarizada, inclusive a níveis globais, podemos perceber traços conservadores inclusive em alas da “esquerda”. O que estou tentando discutir ao mencionar que existe conservadorismo na esquerda política brasileira é exatamente a resistência à mudança de determinadas premissas. Pois obviamente, apesar do conservadorismo estar relacionado nacionalmente e historicamente, como ideologia, ao que de modo grosseiro podemos interpretar como a direita, ser conservador em determinada premissa, ideia ou comportamento não está relacionado única e exclusivamente a ideias e políticas de direita.
Ao analisar o autoritarismo no Brasil, as relações de poder e a necessidade de um líder populista que recebe das mãos do próprio povo brasileiro, e para além disso é escolhido pelo povo para tomar decisões tendo o poder de impor diversos limites a liberdade individual possibilitando e, ou tirando a responsabilidade e capacidade de organização social faz com que a ideia de “mutualismo social” e da concepção de propriedade privada de Proudhon seja quase que uma ideia sem sentido, ilógica ou até mesmo absurda caso seja proposta para o cidadão médio brasileiro.
De certa forma, se fosse proposto tal ideia ou houvesse a tentativa de implementar o cooperativismo social no país atualmente, creio que provocaria um grande dilema sobre a perspectiva de autoritarismo. Considerando de modo extremamente grosseiro e generalizado que o brasileiro médio está acostumado ao modelo autoritário de governo e que por mais absurdo que seja, que é preciso que um governo tome decisões importantes, limitando a liberdade individual, criando taxações impositivas, burocracia entre outros imposições, a implementação do mutualismo e cooperativismo social seria considerada autoritária? Uma vez que tal ideia vai contra o que, histórica e culturalmente o povo está habituado a ter como regime político no Brasil.
O questionamento sobre a questão da ideia ser autoritária não está relacionada e de maneira nenhuma supõe que o mutualismo ou o cooperativismo, proposições feitas pela ideologia anarquista, seja em si ideias de cunho autoritário ou tenha pretensões a assumir determinados sistemas promovendo o autoritarismo de alguma forma, o questionamento aqui está relacionado, apenas, na hipótese de uma possível implementação de uma ideologia anarquista como modelo político de organizar a sociedade e de como seria a dinâmica social entre as pessoas. Visto que tal modelo não é o ideal desejado pela maioria das pessoas no país, por questões, motivos e razões que transcendem a ideia engessada de uma ideologia política, pois o fator cultural e social está entrelaçado na política, interferindo nos rumos que a sociedade vai seguir.
*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.