O renascimento de um Islã herético

O renascimento de um Islã herético

Quando o exército terrorista que se autodenomina “Estado Islâmico”, ou ISIS, conquistou grande parte do  território iraquiano e sírio em meados da década de 2010, o mundo ficou chocado. Muitos muçulmanos em todo o mundo também ficaram em choque, porque a selvageria desse autodeclarado “califado” estava profundamente em desacordo com o que eles conheciam como sua religião. Muitos deles, portanto, simplesmente declararam que o ISIS não tinha nenhuma identificação com o Islã.

A história do Islã é complexa e inclui uma variedade de escolas e movimentos reformistas, alguns dos quais defendiam o ódio e a violência contra “infiéis” e “politeístas”. Compreender as origens dessas seitas é especialmente útil nos dias de hoje.

Wahhābism: The History of a Militant Islamic Movement , por Cole M. Bunzel, (Princeton University Press, 2023)

Enquanto isso, alguns estudiosos islâmicos ofereceram uma explicação mais sutil: O ISIS tinha algo a ver com o Islã, mas apenas como o renascimento de uma antiga heresia muito odiada: os Khawarij, ou “os dissidentes”. Essa era uma seita extremamente fanática e violenta que surgiu no meio da primeira guerra civil do Islã, em meados do século VII. Seus membros condenavam todos os outros muçulmanos como “infiéis” e se propunham a matá-los. Não é de se admirar que esses antigos dissidentes tenham sido abominados tanto pelos muçulmanos sunitas quanto pelos xiitas, entrando para a história como uma ramificação extremamente militante de uma grande religião.

Entretanto, havia um aspecto que não se encaixava nessa analogia com os Khawarij: a maneira como o ISIS se vê. Os Khawarij eram claramente uma seita fora do movimento sunita, a maior denominação do Islã, que representa quase 90% de todos os muçulmanos. O ISIS, no entanto, como fica evidente em todas as suas declarações e publicações, não se via fora do Islã sunita. Muito pelo contrário: ele se considerava o porta-estandarte do verdadeiro sunismo, enquanto condenava a maioria dos outros sunitas, e certamente todos os xiitas, como “apóstatas” que merecem ser punidos.

Não é de se espantar que um movimento específico dentro do Islã sunita tenha sido designado pelos membros do ISIS como o precedente piedoso do qual eles são “verdadeiros herdeiros”. Essa foi a “abençoada missão Najdi”, ou Wahhabismo, como é amplamente conhecido, cuja história e ideologia são examinadas em um novo livro de Cole M. Bunzel: Wahhābism: The History of a Militant Islamic Movement (A história de um movimento islâmico militante).

Conforme narrado por Bunzel, a história começou na década de 1740 em Najd, o centro geográfico da península arábica – daí o termo “missão Najdi” – que costumava ser um lugar isolado até a descoberta do petróleo no século XX. Ali, um pregador apaixonado chamado Muhammad ibn Abd al-Wahhab (falecido em 1792) começou a disseminar um novo despertar religioso: ele conclamou todos os muçulmanos a se absterem estritamente do shirk, ou “politeísmo”, e a afirmarem o tawhid, ou “monoteísmo”.

Essa foi uma exigência bizarra, porque o próprio Islã nasceu mais de um milênio antes como uma campanha contra o shirk – literalmente “associar parceiros” a Deus – que é o termo do Alcorão para a religião idólatra dos árabes pré-islâmicos. Essa batalha foi vencida rapidamente, durante a própria vida do Profeta Maomé(ou Muhammad (570 a 632 d.C.)), quando a idolatria foi banida de toda a Arábia – em parte por meio de pregação, em parte por meio de conquista. Desde então, todos os muçulmanos afirmaram o lema islâmico do monoteísmo, “Não há outro deus além de Deus”, e certamente abominaram qualquer manifestação de politeísmo.

Condenar um erro teológico não era suficiente. Também era necessário “demonstrar ódio e inimizade” contra ele.

Mas para Ibn Wahhab, essa vitória histórica era apenas uma ilusão, porque a maioria dos muçulmanos de sua época havia caído em um novo tipo de shirk. Ele se referia principalmente ao popular “culto aos santos”: Os muçulmanos visitavam os túmulos de santos e profetas e oravam a Deus, esperando obter tawassul, ou “intercessão”, desses grandes homens mortos. Para a maioria das pessoas, isso não tinha nada a ver com politeísmo. Para Ibn Wahhab, no entanto, era exatamente isso. Portanto, esses visitantes de túmulos não eram mais muçulmanos, mas “adoradores de túmulos”.

Essa condenação foi apenas o início da campanha de Ibn Wahhab. Condenar um erro teológico, não era suficiente, muito menos apenas criticá-lo. Também era necessário “demonstrar ódio e inimizade” contra ele. Aqueles que não demonstravam esse zelo deixavam de ser bons muçulmanos, conforme Ibn Wahhab instruía seus seguidores:

Não pense que se você disser: “Esta é a verdade. Eu a sigo e abjuro tudo o que é contra ela, mas não os confrontarei [i.e., os santos que estão sendo adorados] e não direi nada a respeito deles”, não pense que isso lhe trará benefícios. Pelo contrário, é necessário odiá-los, odiar aqueles que os amam, insultá-los e mostrar-lhes inimizade.

Essa inimizade se tornaria a base para o próximo passo: a jihad violenta. Os tão odiados “politeístas”, em outras palavras, tinham de ser fisicamente atacados. É por isso que, como Bunzel define apropriadamente, os ensinamentos de Ibn Wahhab criariam um movimento de “exclusivismo teológico combinado com ativismo militante”.

Um evento chave foi a aliança histórica que Ibn Wahhab criou, por volta do ano de 1744, com o governante local de Diriyah, uma pequena cidade nos arredores da atual Riad. Esse governante era Muhammad bin Su’ud, que adotou todas as ideias de Ibn Wahhab e se comprometeu a defendê-las, deixando para trás uma aliança duradoura entre sua própria família, Al Su’ud, e a família de Ibn Wahhab, Al al-Shaykh.

Manifestantes pró-Irmandade Muçulmana no Cairo, 2013 (Foto de Hamada Elrasam para VOA / Wikipedia)

Dessa aliança surgiu o que os historiadores chamam de Primeiro Estado Saudita (1727-1818), que Bunzel examina em um capítulo intitulado “The Warpath of Early Wahhabism” (O caminho de guerra do wahhabismo primitivo). Imaginando-se como os únicos muçulmanos verdadeiros, e os outros muçulmanos ao seu redor como “politeístas”, as forças de Su’ud primeiro se engajaram em uma “jihad defensiva”, para depois escalar para uma “jihad ofensiva”. Entre seus alvos estavam os al-turk al-kuffar, ou “os turcos infiéis”, ou seja, o Império Otomano, que era a superpotência islâmica da época e controlava as cidades sagradas de Meca e Medina, que seriam capturadas por vários anos pelas forças wahabitas. Sua maior atrocidade foi o ataque de 1802 à cidade sagrada xiita de Karbala, onde “eles mataram a maioria do povo nos mercados e nas casas”, assassinando pelo menos 2.000 inocentes, ou até 4.500, de acordo com outros relatos.

Em 1818, esse Primeiro Estado Saudita foi esmagado por uma aliança entre o Império Otomano e o Egito. Porém a missão wahhabi logo estabeleceu o Segundo Estado Saudita (1824-1891) e, em seguida, o Terceiro Estado Saudita (1902-1932). Somente nesse último, mostra Bunzel, a ferocidade inicial do movimento wahhabi finalmente se acalmou, em grande parte devido ao pragmatismo político do novo governante, Abdulaziz bin Abdul Rahman Al Su’ud, que em 1932 se tornou o primeiro rei da atual Arábia Saudita. O rei precisava de boas relações com outras nações muçulmanas, bem como com os “trabalhadores ocidentais do petróleo”. Assim, sob seu governo, os estudiosos wahabitas, que também acreditavam em “obedecer estritamente ao governante”, evitaram condenar outros muçulmanos e tolerar ações violentas. Mas essa moderação pragmática não veio acompanhada de muito exame de consciência sobre a militância inicial do wahhabismo, que apenas permaneceu adormecida.

Essa história política da aliança wahhabi-saudita não é novidade, mas Bunzel nos dá novos detalhes com base em materiais de fonte primária e os transforma em uma história interessante. Talvez ainda mais convincente seja a forma como o livro mapeia o lugar do wahhabismo no panorama islâmico geral. Como é sabido, há quatro escolas de jurisprudência estabelecidas no Islã sunita: Hanafi, que geralmente é a mais racionalista e flexível, seguida por Maliki, Shafi’i e, finalmente, Hanbali, que geralmente é a mais textualista e rígida. Diferentemente de outros sunitas, por exemplo, os hanbalistas geralmente rejeitam o kalam, ou teologia, por considerá-la irritantemente especulativa, enquanto fecham totalmente a porta para a filosofia grega, com a qual outros sunitas, assim como os xiitas, poderiam se envolver pelo menos parcialmente.

Portanto, o wahhabismo, nascido no século XVIII, foi de fato uma consequência do hanbalismo, que nasceu no século IX. Mas houve uma parada notável ao longo do caminho: as ideias do estudioso hanbali do século XIII Ibn Taymiyya (falecido em 1328), que Bunzel aborda em um capítulo intitulado “The Taymiyyan Background”. Esse histórico é complicado porque Ibn Taymiyya foi um pensador sofisticado que introduziu ideias sutis sobre a congruência da razão e da revelação e rejeitou as visões sunitas predominantes sobre um Deus de ação voluntária cuja sabedoria está além da compreensão. A parte preocupante de seu legado foram seus vereditos intolerantes sobre blasfêmia e heresia, e sua “oposição severa” ao sufismo e ao culto aos santos. É essa última parte do histórico Taymiyyan que os wahhabis herdaram, argumenta Bunzel, levando-os a um nível muito mais extremo.

Imaginando-se como os únicos muçulmanos verdadeiros, as forças de Su’ud primeiro se engajaram em uma “jihad defensiva”, para depois se transformarem em uma “jihad ofensiva”.

Outro tema do livro é o renascimento do “wahhabismo militante” na segunda metade do século XX. Na década de 1930, conforme observado acima, o wahhabismo havia perdido muito de sua ferocidade inicial e se tornado uma tradição profundamente anti-liberal, mas politicamente branda. Na década de 1960, entretanto, uma nova energia veio do Egito com os escritos de Sayyid Qutb, que liderou uma ramificação militante do principal movimento islâmico do Egito, a Irmandade Muçulmana. A ideia mais radical de Qutb era semelhante à de Ibn Wahhab: a maioria dos muçulmanos contemporâneos não era de fato muçulmana, mas “politeísta”. No entanto, sua “infidelidade” não era evidenciada pelo antigo problema do culto aos santos. Qutb estava preocupado com algo novo: a secularidade. Ao aceitar uma vida sob leis e governantes seculares, acreditava Qutb, a maioria dos muçulmanos começou a adorar “ídolos” que “usurparam as prerrogativas divinas de Deus com relação à legislação”. Esse conceito de “shirk jurídico-político”, como Bunzel o chama, se tornaria o hino de batalha de uma nova tendência chamada “jihadismo salafista”, cuja cascata de militância acabaria produzindo a Al-Qaeda e o ISIS.

Contando essa história complicada em prosa acessível, Wahhābism é um livro excelente que vale a pena ser lido por qualquer pessoa interessada na história das ideias no Islã. Como muçulmano, tirei duas lições opostas desse livro. Por um lado, aqueles que usam grupos terroristas como o ISIS para retratar uma imagem sombria de todo o Islã estão completamente errados. Os terroristas representam apenas a versão mais extrema da interpretação mais rígida do Islã.

Por outro lado, o ISIS e seus assemelhados, bem como seus precursores no Primeiro Estado Saudita, servem de alerta para uma ideia perigosa que pode contaminar qualquer religião: a definição de piedade como ódio hipócrita contra o ímpio, o herege, o infiel – em vez de uma compaixão justa por eles. É um veneno que pode causar muitos estragos não apenas entre as religiões, mas também dentro da própria religião, como a “missão Najdi” demonstrou dolorosamente.


Artigo Original: The Rebirth of a Heretical Islam

Escrito por: Mustafa Akyol

Traduzido por: Tiago Santos

Revisado por: Caio Marthão


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *