Os gregos antigos são reconhecidos pela sua riquíssima mitologia, que nos lega ensinamentos mesmo após o decorrer de mais de dois mil e quinhentos anos. De fato, em grande parte as bases da civilização ocidental, seus heróis, virtudes e símbolos, aludem à sabedoria contida nas alegorias representadas nestes mitos.
O mito de Prometeu é um dos mais famosos a sobreviver até os dias de hoje, contendo em si uma miríade de significados.
Resumidamente, Prometeu, juntamente a seu irmão Epimeteu foram encarregados pelos deuses da criação de todos os animais que povoam a terra. Com o material do qual dispunham, deram garras para que alguns animais pudessem se defender, olhos aguçados para aqueles que precisassem encontrar suas presas e por aí vai. Ao fim, sobrou apenas um punhado de barro, do qual foi constituído o ser humano.
Incomodado com a inépcia do recém-criado ser humano, que não contava com talento algum, Prometeu rouba a chama que iluminava o Monte Olimpo e a concede ao Homem. Esta é a chama da razão, pela qual Prometeu pagou muito caro pois, ao ser descoberto, foi castigado com a tortura de ter seu fígado mastigado por uma ave durante toda a eternidade.
O mito nos ensina o poder da Razão, e seus perigos implícitos. Não atoa foi tão severo o castigo a Prometeu por tê-la concedido à humanidade.
Também não é coincidência que seja tão recorrente a representação da Razão como uma chama. É bastante intuitivo associar o ato mental de atingir compreensão acerca de algo à ideia de iluminar este algo, atingindo claridade. O que se pode ver (com clareza) se compreende, o que não se pode, não se compreende.
Mas Atena, deusa da sabedoria, não carrega consigo chama alguma, seja em forma de lanterna ou de tocha; ao invés disso, é representada muitas vezes ao lado de uma coruja adestrada. Não é difícil também entender o porquê: a coruja é (além de bastante inteligente) dotada de visão noturna e, portanto, capaz de enxergar aquilo que os demais não podem. O que é intrigante é a escolha por representar um mesmo fenômeno (seja ele claridade ou compreensão) de duas formas diferentes, no caso a chama ou a coruja, a depender do sujeito de representação.
Talvez isso se dê justamente para apontar discretamente a diferença do exercício da Razão partindo do Homem ou dos deuses. Atena, uma deusa, traz consigo sua fiel coruja. O animal está sobre seu controle, implicando que ela tem domínio efetivo sobre as condições do exercício da própria racionalidade.
O Homem, por sua vez, recebeu o fogo roubado dos deuses. A chama é sinônimo de volatilidade, ela não apenas é imprevisível, como também perigosa, exigindo cuidado para o seu manuseio. Além de tudo, a chama é efêmera, precisando ser constantemente alimentada para permanecer existindo.
Com o auxílio da mitologia, nos é possível entender simbolicamente a verdadeira natureza da Razão. Como uma chama, a Razão é volátil; ela pode ser parcialmente dominada, mas a Verdade jamais se curva à vontade do Homem. Como uma chama, ela fornece claridade, iluminando nossa vida intelectual e, como uma chama, ela pode ser restringida até que se apague por completo.
A conclusão é que não se pode estar exposto ao poder imensurável da Razão sem admitir que o controle completo sobre o seu exercício simplesmente não nos cabe. Abraçar a Razão é compreender que o poder de uma chama pode ser sempre construtivo e destrutivo, e que a única forma de não se estar exposto aos riscos implícitos na sua utilização é apagá-la por completo, o que significa se privar, igualmente, de seus benefícios.
Não atoa, e aliás precisamente pelas mesmas relações, a chama é tida como sinônimo de algo tão caro ao homem quanto a sua Razão: a Liberdade.
Que texto maravilhoso!
Por mais textos assim <3