No Ocidente, vivemos em um ambiente de prosperidade, mas frequentemente não temos noção das fontes dessa prosperidade. Até pensamos que temos uma compreensão especial das causas da prosperidade porque somos ricos. De um ponto de vista extremo, é como se eu me oferecesse para instalar a fiação elétrica da sua casa porque as minhas luzes acendem. Pergunte a uma amostra aleatória de líderes empresariais e especialistas em desenvolvimento sobre o que causa a pobreza e a riqueza, e com certeza falarão sobre geografia ou infraestrutura, eletricidade, educação, saúde. Sem dúvida, esses são importantes. Doenças e enfermidades são obstáculos reais para o desenvolvimento econômico e para a prosperidade e florescimento humano. Estradas precárias e eletricidade instável dificultam a operação de empresas e o transporte de mercadorias para o mercado. E a falta de educação mantém as pessoas em empregos de baixa produtividade e impede que atinjam seu pleno potencial. No entanto, começar com essas coisas nos distrai das instituições centrais de justiça que, em última instância, implicam o seu desenvolvimento. Uma maneira de pensar sobre isso é fazer a seguinte pergunta: se você tem uma pessoa altamente educada e saudável, com acesso à saúde, boas estradas e pontes, mas que não consegue obter a escritura de sua terra, não consegue acesso à justiça para ter seu caso ouvido, não consegue registrar seu negócio na economia formal e não consegue acesso a capital e crédito, o que você acha que ela fará? Sugiro que existam quatro opções: desesperar-se, juntar-se à classe política, juntar-se à classe criminosa ou migrar.
As economias de livre mercado e o florescimento humano não surgiram magicamente no Ocidente. Imagine uma pirâmide na qual o empreendedorismo e os principais avanços na ciência e inovação estão no topo e repousam sobre bases mais amplas da dignidade do trabalho, da benevolência da criação, até mesmo do conceito de tempo linear. Esquecer disso é um risco que corremos.
Em todo o mundo em desenvolvimento, as pessoas pobres são pobres não apenas porque lhes faltam bens materiais. A razão principal é que milhões de pessoas pobres são excluídas das instituições de justiça que damos por garantidas e sem as quais também seríamos pobres. Elas carecem das camadas invisíveis da sociedade que tornam possível o empreendedorismo e a criação de riqueza. O economista peruano Hernando de Soto descreve o mundo em desenvolvimento como “transbordando de empreendedores”, mas não ouvimos falar deles porque continuam sendo microempreendedores obrigados a se concentrar em ganhos de curto prazo em vez de crescimento a longo prazo. Aqueles que vivem em nações ricas podem facilmente esquecer essas instituições de justiça. Elas se tornaram tão parte da tapeçaria de nossas vidas que as damos por garantidas e incluímos tudo, desde o Estado de Direito até a liberdade de participar de organizações voluntárias privadas, sociedades de ajuda mútua, instituições educacionais, organizações científicas, igrejas — o que Alexis de Tocqueville chamou de “instituições intermediárias”.
Ao enfatizar a importância das instituições, não estou dizendo nada radical ou novo. Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Adam Smith, todos reconheceram isso. Nas últimas décadas, houve um renovado interesse sobre a importância das instituições, incluindo pelos economistas ganhadores do Prêmio Nobel, Douglass North e Edmund Phelps, pela Nova Economia Institucional, e pelo trabalho de Daron Acemoglu e James A. Robinson em seu livro “Why Nations Fail“. No entanto, nas abordagens dominantes acerca da economia e da pobreza, as instituições foram negligenciadas. North resumiu muitos dos problemas com o atual modelo de desenvolvimento e indústria da pobreza em seu discurso de aceitação do Nobel:
“Não há mistério sobre por que o campo do desenvolvimento falhou em se desenvolver durante as cinco décadas desde o final da Segunda Guerra Mundial. A teoria neoclássica é simplesmente uma ferramenta inadequada para analisar políticas prescritas que pretendem induzir o desenvolvimento. Ela lida com as operações dos mercados e não com como os mercados se desenvolvem. Como alguém pode prescrever políticas quando não entende como as economias se desenvolvem? Os métodos empregados pelos economistas neoclássicos ditaram o assunto e militaram contra tal desenvolvimento.”
North argumentou que as teorias dominantes tinham uma “precisão matemática e elegante”, mas não refletiam a realidade do mundo em desenvolvimento. A natureza excessivamente matemática levou os economistas do desenvolvimento a se concentrarem no “desenvolvimento tecnológico” e no “investimento em capital humano”, mas ignoraram a estrutura de incentivos incorporada nas instituições que determinavam a extensão do investimento da sociedade nesses fatores. North argumentou que o modelo neoclássico de desempenho econômico fazia duas “suposições errôneas: uma, de que as instituições não importam, e duas, de que o tempo não importa”. No entanto, North sustenta que “as instituições formam a estrutura de incentivos de uma sociedade e as instituições políticas e econômicas, consequentemente, são o determinante subjacente do desempenho econômico.”
Um Esquema de Pirâmide
De certa forma, essas instituições são simples de entender, mas difíceis de implementar e desenvolver. Se fossem fáceis, todos as teriam, mas elas demandam tempo. Elas também requerem certas suposições e condições antropológicas e culturais para serem sustentadas. Acemoglu e Robinson, por exemplo, enfatizaram a importância do que chamaram de instituições “inclusivas” em vez de instituições “extrativas”, mas não abordaram realmente as bases culturais. Mas essas instituições são, de fato, artefatos culturais, produtos de crenças profundamente enraizadas sobre justiça e a pessoa humana. Uma maneira de pensar sobre as instituições de justiça é através da imagem de uma pirâmide na qual o empreendedorismo e os grandes avanços na ciência e inovação estão no topo e repousam sobre bases mais amplas que tornam possível esse pensamento de longo prazo. Essas bases incluem coisas como assistência médica, educação e infraestrutura, mas há outras camadas abaixo. Elas incluem propriedade privada e estado de direito, e no alicerce da base, ideias culturais fundamentais sobre justiça, vida, tempo, família, trabalho, progresso, religião e o que significa ser uma pessoa humana.
Dedique um momento para pensar sobre uma simples troca comercial para iluminar os níveis de complexidade. Falamos sobre um “mercado livre” ou “troca livre”, mas, como Harry Ballan observou, uma transação aparentemente simples requer camadas de suporte complexas. Vamos começar com um comprador e um vendedor que decidem livremente realizar uma troca. Eles precisam de uma moeda estável, um sistema de preços, propriedade privada, estado de direito e execução de contratos para que as pessoas estejam dispostas a trocar dinheiro por mercadorias. A troca também requer estruturas legais de reciprocidade e regulamentações governamentais que impeçam que os compradores sejam explorados, informações de mercado, sinais de preço de mercado e assim por diante. A troca muitas vezes inclui outras fronteiras para garantir a justiça comutativa, como grupos ativistas que prestam atenção a questões de exploração do trabalho, bem-estar e segurança do consumidor; organizações governamentais e órgãos reguladores como a Comissão de Valores Mobiliários ou a Administração de Alimentos e Medicamentos1, que aprova certos produtos químicos ou medicamentos para uso, e assim por diante. Isso não quer dizer que todas essas coisas sejam perfeitas e que essas organizações e grupos de defesa não distorçam às vezes as transações. Mas o ponto é que, mesmo quando nos envolvemos em uma troca simples, estamos fazendo isso em meio a estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais, integradas e complexas. E quanto mais complexo o produto e a troca, mais fatores estão envolvidos.
Como Mariana Mazzucato observa em “The Entrepreneurial State“, muitos dos componentes do iPhone que o tornam “inteligente” não foram simplesmente resultado de uma empresa empreendedora, mas foram desenvolvidos por várias formas de investimento governamental em pesquisa militar ou outras parcerias público-privadas. A crítica de Mazzucato é importante, mas não vai longe o suficiente. Em primeiro lugar, precisamos também questionar o por que o governo dos EUA tinha a capacidade de desenvolver essas tecnologias e fazer esses investimentos. O poder militar dos EUA não está desconectado da base tributária criada pela atividade empreendedora e pela criação de riqueza de cidadãos privados. E essa capacidade de criar riqueza exigiu, entre outras coisas, uma república constitucional e uma sociedade comercial baseada no estado de direito, propriedade privada e livre associação — elementos que, por sua vez, descansam sobre o desenvolvimento de revoluções bancárias e comerciais no período medieval, que por sua vez descansaram em visões específicas de justiça, imparcialidade, valor do trabalho, bondade do ser e até ideias sobre o tempo linear. O ponto aqui é que os empreendedores no Ocidente não surgem apenas por talento bruto, nem os militares estatais inventam tecnologias inteligentes do nada. A capacidade de realizar essas proezas repousa sobre fundamentos históricos, políticos, econômicos e, mais importante, fundamentos culturais e religiosos complexos e profundamente enraizados.
Por exemplo, de onde surgiram as ideias de que um título de propriedade para a terra, justiça imparcial e liberdade de troca são coisas boas desde o início? De onde vem a prática bancária moderna? Não são universais. De onde elas vieram e, mais especificamente, por que surgiram primeiro no Ocidente? Como Max Weber escreveu em uma carta antes de sua morte: “Por que apenas no Ocidente se desenvolveu um capitalismo racional baseado na lucratividade? … Alguém precisa explorar essa questão.”
Não há uma única resposta, mas vale a pena dedicar algum tempo para pensar nas influências judaicas e cristãs no surgimento do capitalismo. Isso é importante não apenas como uma questão de interesse histórico, mas porque entender sua origem pode nos ajudar a apreciar a complexidade e evitar a tentação de pensar que podemos resolver a pobreza apenas com política e tecnologia. As instituições das economias de mercado são artefatos culturais que surgem de uma combinação de várias ideias e práticas. Ainda assim, muitas vezes pensamos no desenvolvimento econômico, inovação e empreendedorismo como distintos ou mesmo não relacionados às tradições e fontes culturais que o tornam possível.
Superando os Mitos de Origem
Existem vários mitos persistentes que distorcem a história do desenvolvimento econômico. O mais comum é que o mundo viveu na escuridão até as Luzes dos séculos XVII e XVIII. Parte disso é compreensível. Quando olhamos para a história do crescimento econômico, vemos uma mudança profunda acontecer por volta de 1800, com grandes alterações na riqueza e na expectativa de vida. Este gráfico do crescimento do PIB per capita na Inglaterra, de Our World in Data, é surpreendente.
A Revolução Industrial, a Revolução Americana, a influência do trabalho de Adam Smith na economia, e as inovações médicas e científicas ajudaram a tirar milhões de pessoas da pobreza e permitiram que vivessem vidas mais longas e saudáveis. O economista ganhador do Prêmio Nobel, Angus Deaton, chama essa história de “A Grande Fuga”. As pessoas ficaram mais ricas, as taxas de mortalidade caíram, e a população mundial cresceu de cerca de 1 bilhão para 7 bilhões em 200 anos. David Landes documenta essa incrível transformação em seu abrangente livro “A Riqueza e a Pobreza das Nações“.
Embora essa mudança tenha sido profunda, ao contrário da narrativa padrão ensinada nos livros didáticos, muitos dos fundamentos para essa “grande fuga” não tiveram origem nos séculos XVII e XVIII. Como estudiosos como Robert Lopez, Harold Berman, Richard Goldthwaite, Robert Nisbet, Alejandro Chafuen, Henri Pirenne, Christopher Dawson, Rodney Stark e Raymond de Roover mostraram, as sementes desse desenvolvimento começaram na Idade Média. Isso inclui a revolução comercial a partir do nono século, o desenvolvimento da banca moderna, a contabilidade das partidas dobradas, o governo representativo, os parlamentos, o contrato social e uma série de descobertas tecnológicas e científicas. Como os livros didáticos não ensinam isso, muitos estudiosos contemporâneos simplesmente desconhecem os comentários antigos ou medievais sobre questões econômicas e políticas.
Um Caminho Sinuoso
A evolução das instituições de justiça e o desenvolvimento econômico correspondente não seguiram um caminho retilíneo. A civilização ocidental tem muitas influências — desde a grega e romana até a judaica e cristã, germânica, islâmica e outras que vieram por meio de viagens e interações globais. A atividade bancária, de alguma forma, é antiga, mas até nossos sistemas bancários modernos e economias capitalistas começaram a se desenvolver por volta do nono século. A tecnologia agora é mais avançada, obviamente, com transações ocorrendo em milissegundos em vez de dias, mas os elementos básicos são semelhantes.
Outro exemplo é o contrato social. Muitas pessoas pensam que a origem do “contrato social” e das instituições democráticas pode ser encontrada nos escritos de John Locke, especialmente em seu “Segundo Tratado sobre o Governo Civil“. Sem dúvida, Locke influenciou os fundadores americanos e outros defensores modernos do governo limitado, mas ele não inventou a ideia do contrato social. O contrato social estava em prática generalizada durante o período medieval. Se isso parece implausível, talvez um exemplo ajude. Em 1620, 70 anos antes de Locke escrever seu “Segundo Tratado“, os peregrinos que se dirigiram para o Novo Mundo, que se tornaria os Estados Unidos, criaram um acordo sobre como viveriam juntos, e o chamaram de Pacto do Mayflower. Era um contrato social no Novo Mundo, e Locke nem mesmo havia nascido ainda. Os Peregrinos também não o inventaram. Ele estava no ar que eles respiraram na Europa. Não estou dizendo que tudo lá era perfeito (se fosse, eles não teriam partido). Porém, isso não muda a realidade de que o contrato social, assim como as raízes do banco moderno, das finanças, do mercado de capitais, de gestão e práticas comerciais modernas, fazia parte da estrutura social da Europa medieval na teoria e na prática.
Um terceiro exemplo é a propriedade privada, que se desenvolveu ao longo dos séculos com tentativa e erro e em meio a intensos debates sobre o papel da herança, primogenitura, família, agricultura, indústria, hierarquia social e muito mais. Essas ideias desenvolvidas durante o período medieval foram influenciadas por uma confluência de direito romano, filosofia grega, a Bíblia hebraica, direito canônico e, claro, compromissos políticos e lutas pelo poder.
O Papel das Tradições Judaicas e Cristãs
Seria necessária uma série de livros e estudiosos de dezenas de campos para começar a explicar a história do desenvolvimento econômico no Ocidente. No entanto, um dos aspectos mais negligenciados dessa história de origem é o papel das tradições judaicas e cristãs. No entanto, sem a visão específica da razão e da bondade e inteligibilidade da criação; sem uma compreensão da imparcialidade e justiça para ricos e pobres que vem da Bíblia hebraica e dos livros do Novo Testamento; sem a visão cristã da pessoa humana como um ser único, irrepetível, com dignidade e ao mesmo tempo um ser social nascido em uma família e uma comunidade; sem uma visão judaica do chamado para completar a criação e a dignidade do trabalho, incluindo o trabalho servil, geralmente considerado algo adequado apenas para escravos ou classes mais baixas, nunca teríamos visto o desenvolvimento das instituições de justiça que levaram a uma liberdade política sem precedentes, realizações culturais e estéticas, inovações tecnológicas e científicas, e a criação e distribuição generalizada de riqueza e prosperidade que permitiram que centenas de milhões de pessoas vivessem sua liberdade e responsabilidades. Nós, modernos, colhemos os frutos dessas ideias, mas os fundamentos culturais e intelectuais dessas ideias não tiveram origem na modernidade ou apareceram magicamente no Renascimento.
Christopher Dawson argumentou consistentemente que a força motriz da cultura não é a economia ou a política, mas na verdade o cultus — religião.
Para afirmar o papel importante das fontes medievais, judaicas e cristãs no desenvolvimento, não estou negando as contribuições positivas da Revolução Industrial ou dos Iluminismos francês e escocês. Mas mesmo os Iluminismos eram herdeiros do cristianismo medieval que buscavam rejeitar. Como Joseph Ratzinger, mais tarde Papa Bento XVI, argumentou, embora os Iluminismos tenham sérios erros intelectuais, desempenharam também um papel corretivo em relação ao cristianismo. Ratzinger afirmou em uma palestra proferida em 2005 que: “o cristianismo, contra a sua natureza e infelizmente, tornou-se tradição e religião do Estado… Foi e é mérito do Iluminismo ter proposto novamente esses valores originais do cristianismo e devolvido à razão a sua própria voz”.
Em seu livro “Understanding the Process of Economic Change,” Douglass North apresenta um esquema de como os seres humanos criam instituições para lidar com a incerteza:
Realidade Percebida > Crenças > Instituições
North não estava escrevendo sobre teologia ou fé quando falava sobre crença. No entanto, a importância da crença religiosa e das visões mais profundas sobre a ordem e estrutura do mundo teve um efeito profundo nas instituições que se desenvolveram no Ocidente, incluindo um impacto tremendo na vida econômica e na criação de prosperidade. O desenvolvimento do Ocidente não pode ser explicado apenas pela Revolução Industrial ou por “armas, germes e aço”. Como o sociólogo Rodney Stark argumentou – é precisamente sobre as armas, germes e aço que estamos tentando explicar!
Como o famoso historiador econômico Joseph Shumpeter escreveu, há muito pouco em Adam Smith que já não existisse nos escritos econômicos dos teólogos escolásticos medievais, que foram fortemente influenciados pelas obras filosóficas e comentários bíblicos de São Tomás de Aquino que, por sua vez, foi influenciado não apenas pelos Padres da Igreja, mas também por comentadores rabínicos medievais como Maimonides e Rashi. O mesmo se aplica à liberdade política e à pesquisa científica. Em suma, essas ideias não surgiram do nada em 1800. O historiador e sociólogo Christopher Dawson argumentou consistentemente que a força motriz da cultura não é a economia ou a política, mas de fato o cultus — a religião. Dawson não negou que a lei, a política e a economia também tenham impacto na religião e na cultura, mas são, em última análise, derivadas de ideias culturais e religiosas mais fundamentais, e não podemos chegar a uma compreensão séria de uma cultura e das instituições que dela emergem se não levarmos a religião a sério. Isso não significa que não possamos viver por algum tempo e tirar proveito de instituições e arranjos econômicos sem entender sua origem, mas o capital cultural dura apenas por um tempo limitado. Se quisermos entender as instituições que trouxeram uma criação de riqueza sem precedentes, precisamos prestar atenção às fontes judaicas e cristãs que as produziram. Ignorá-las é perder uma parte essencial, se não a mais importante, do quebra-cabeça. Para elucidar mais, aqui estão várias ideias-chave que fundamentam algumas das coisas que damos por garantido.
Tempo e Progresso
Uma influência profunda no desenvolvimento econômico, na inovação e na ideia de progresso no Ocidente é o conceito de tempo linear. O tempo e a criação têm um começo e estão indo para algum lugar. Isso pode parecer óbvio, e você pode se perguntar por que eu sequer mencionaria isso, mas a ideia de tempo como linear é única. A maioria das culturas via o tempo como cíclico. Isso era comum tanto entre os chineses quanto entre os mesopotâmios e os gregos. A ideia de tempo linear deriva do judaísmo e foi difundida pelo cristianismo para a Europa e o mundo Ocidental. Mesmo Nietzsche, que não era amigo do Deus judaico ou cristão, admitiu isso. O tempo linear e a ideia resultante de progresso estão entre o fatalismo cíclico pagão e a promessa utópica secular de um paraíso na terra. Parte disso vem do entendimento do mundo como criado por Deus. Como Ismar Schorsch explica em seu ensaio “Judaísmo e História Linear”:
O judaísmo substitui a natureza pela história como sua categoria básica de experiência religiosa… As consequências dessa mudança da natureza para a história reforçam a ideia do monoteísmo ético. O judaísmo desenvolve um conceito linear do tempo em oposição ao cíclico e santifica eventos em vez de lugares… O tempo torna-se para o judaísmo o domínio em que a humanidade e Deus se unem para completar juntos a obra da criação.
O conceito secular contemporâneo de progresso é derivado do entendimento judaico-cristão do tempo.
Ao contrário das civilizações grega, chinesa e hindu, o judaísmo ensina que o mundo não é eterno. Ele tem um começo. Ele também está se movendo em direção a um fim, não apenas uma finalidade, mas um propósito: a vinda do Messias e os novos céus e a nova terra. Essa ideia tem implicações profundas para a compreensão ocidental de progresso e desenvolvimento. O conceito secular contemporâneo de progresso é derivado do entendimento judaico-cristão do tempo. O tempo linear incentiva a inovação e o otimismo, mas, quando desvinculado de seu contexto religioso, pode se tornar uma visão utópica de progresso, seja tecnológico ou político. Isso pode tender para algo como a otimista teoria da história dos Whigs ingleses, onde o mundo está em uma trajetória inevitável em direção à liberdade e progresso material, ou para esquemas autoritários e materialistas mais sombrios, como demonstrou o século XX. O utopismo do século XX foi um exemplo do que o falecido filósofo político Eric Voegelin chamou de “imanentização do eschaton”. Isso contempla a ideia cristã da segunda vinda de Cristo, mas seculariza o Fim dos Tempos, substituindo a Nova Jerusalém que vem do Céu pela ideia de que o homem pode criar o paraíso na terra por meios técnicos. Exemplos disso incluem o Reich milenar nazista, a ideia comunista de igualdade perfeita e o desaparecimento do Estado, e o transumanismo contemporâneo, que vê uma solução técnica para o problema da morte.
Em contraste, como Bento XVI observa em “Spe Salvi”, embora o progresso seja bom, não é um fim em si mesmo. Deve ser temperado pela moralidade e pela esperança, que é a expectativa confiante de que Deus nos livrará. Ele explica que não colocamos nossa fé no progresso, na tecnologia ou no Estado. Somente Deus pode trazer justiça perfeita, e qualquer tentativa de criar uma sociedade perfeita resulta em escravidão e morte. O rabino Jonathan Sacks, em seu ensaio “Tempo Judaico”, ecoa esse ponto: o sentido judaico do tempo não é simplesmente linear, mas “pactual”. “A tragédia gera a ascensão do pessimismo. O tempo cíclico leva à aceitação. O tempo linear gera otimismo. O tempo da aliança dá origem à esperança. Essas não são apenas diferentes emoções. São maneiras radicalmente diferentes de se relacionar com a vida e o universo.”
Este conceito de um universo com propósito e significado moldou a ideia ocidental de progresso e impactou a ciência, a tecnologia, a inovação e o desenvolvimento econômico. Não podemos compreendê-lo—nem sua derivação utópica distorcida—sem entender suas fontes religiosas.
A Bondade e Inteligibilidade da Natureza
Outra ideia fundamental que molda o Ocidente é a ideia de que o ser é bom, que o mundo material é bom e que a natureza é inteligível, não simplesmente aleatória. Vemos essa visão delineada na narrativa da criação no livro de Gênesis, que, talvez surpreendentemente, fornece várias ideias fundamentais que fundamentam a ciência, a política e o progresso no Ocidente.
Primeiro, o mundo é criado por Deus. A natureza não é divina. Como Joseph Ratzinger observa, isso é uma proposição radical para a época: o sol e a lua não têm caráter divino ou sagrado. Eles são apenas “lâmpadas no céu para medir o tempo”. A natureza não deve ser adorada e não é mais um mistério envolto em características divinas. Ela pode ser analisada e compreendida. Como Ratzinger escreve em “No Princípio“: “Esta conta da criação pode ser vista como o ‘esclarecimento’ decisivo da história a partir dos medos que oprimiam a humanidade. Colocou o mundo no contexto da razão e reconheceu a razoabilidade e liberdade do mundo.”
Segundo, a criação e o mundo natural são afirmados como bons. Isso também é distinto da maioria das outras tradições religiosas e culturais, que vêem a matéria como negativa ou ruim, feita do corpo de um dragão, criada por um demônio ou forjada por um demiurgo maligno. Essa visão positiva da natureza como boa e inteligível é um precursor para o desenvolvimento da ciência.
Terceiro, dentro da ordem da criação, homens e mulheres são chamados a “encher a terra e subjugá-la” e têm domínio sobre toda a natureza. Somos chamados a completar a criação e a transformá-la usando nossas mentes. A natureza não é uma força misteriosa a ser adorada, mas sim a ser compreendida e utilizada para o bem. Esse domínio não significa o direito de abusar ou destruir a criação à vontade. Não significa que o mundo natural ou os animais possam ser usados e descartados da maneira que desejarmos. O abuso radical do meio ambiente é uma visão utilitária moderna, não uma ideia judaica ou cristã. Foi Francis Bacon quem disse que “o conhecimento é poder” e que “a natureza é uma prostituta”. Em contraste, exemplos abundam na lei judaica sobre o bem-estar animal e o cuidado da criação. Além disso, o comando não é apenas para subjugar, mas também para “encher a terra” ou “reabastecer a terra”. A visão judaica e cristã da natureza e do mundo natural é positiva. Essa ideia em Gênesis se torna filosoficamente articulada na ideia da bondade do ser—como Santo Agostinho explica, todas as coisas são boas na medida em que têm existência.
A Bíblia Hebraica, juntamente com a filosofia grega posterior, inicia o processo de desmitologização e desdivinização, o que leva à ideia de que a natureza não é simplesmente a vontade dos deuses, mas é inteligível. Ecoando Gênesis, o prólogo do Evangelho de João começa com “No princípio era o Verbo”. O termo original em grego é “Logos“—significando “palavra”, mas também razão e inteligibilidade. O mundo é complexo, mas não é completamente errático e imprevisível, movido pelo destino ou pelo capricho dos deuses. O fato de que a natureza é criada e precisa da ação humana para atingir sua plenitude fornece um quadro único para se envolver e entender o mundo. A mente humana pode apreender significados e padrões sobre o universo. Podemos descobrir e aprimorar coisas. Quando essa realização é combinada com a ideia linear de tempo mencionada acima, ela abre o potencial para pensar sobre o progresso.
Essas ideias originais tornaram-se parte da civilização europeia e tiveram um impacto profundo na ciência, inovação e desenvolvimento econômico, formando a base do método científico na Europa cristã. Desde monges medievais como São Alberto Magno, passando por cientistas do Iluminismo como Isaac Newton e Robert Boyle, até o padre agostiniano Gregor Mendel, fundador da genética moderna, muitos cientistas famosos perceberam a conexão entre a fé e a ciência, bem como a bondade e a inteligibilidade do universo. Vemos isso refletido na famosa citação de Einstein: “Deus não joga dados com o universo”.
A Dignidade da Pessoa Humana e do Trabalho
No cerne das ideias ocidentais, a ideia judaico-cristã do que significa ser humano é a contribuição mais importante para as fontes de justiça e desenvolvimento econômico. A ideia de que os seres humanos são feitos à imagem de Deus, são livres e racionais, indivíduos únicos e irrepetíveis com uma dignidade própria, e agentes morais capazes de virtude heroica e mal profundo — essa visão do ser humano teve um impacto profundo no desenvolvimento do Ocidente e nas instituições de propriedade privada, no estado de direito e no papel limitado do Estado, todos os quais precisavam funcionar a serviço da prosperidade humana.
Em Gênesis, também lemos que o homem é ordenado a usar sua inteligência e força para melhorar e completar a criação. Muitas pessoas têm a ideia de que o trabalho é um castigo pelo pecado, mas o texto de Gênesis é muito claro de que o trabalho vem antes da Queda. Gênesis 2:15 afirma que Deus ordenou a Adão cultivar e cuidar do jardim. O trabalho em si não é um castigo; é uma das maneiras pelas quais o homem vive sua vocação. Mais uma vez, os seres humanos são chamados a “completar a criação”.
Inovação e criatividade fazem parte do reflexo da imagem divina. O trabalho não é algo do qual precisamos escapar. O comunismo de luxo totalmente automatizado não é o objetivo do homem. Somos chamados, ao invés disso, a santificar o mundo com nosso trabalho. O esforço, a dificuldade e o fardo do trabalho, “o suor do nosso rosto”, podem ter surgido como resultado da Queda, mas o trabalho em si é algo bom. A tradição também deixa claro que o trabalho deve ser visto no contexto da natureza do homem, de sua vocação mais elevada para a adoração, e da prioridade do ser sobre o ter. O trabalho não é nosso fim ou propósito final. O trabalho é sempre visto à luz do descanso no sábado, que coloca o trabalho e o ganho material em seu devido lugar.
O Talmude Babilônico afirma: “A pessoa deve amar o trabalho e não odiá-lo; pois assim como a Torá foi dada com uma aliança, assim também o trabalho foi dado com uma aliança.” E que “se uma pessoa não tem trabalho a fazer, o que ela deveria fazer? Se ela tem um quintal ou campo negligenciado, ela deveria ir e ocupar-se com isso.”
Esse respeito pelo trabalho manual continua na tradição cristã, embora tenha havido momentos na Europa cristã em que aristocratas apropriaram um desdém pagão pelo trabalho e pelo comércio. Mas, como vemos na regra de São Bento: “A ociosidade é inimiga da alma. Portanto, os monges devem se ocupar em certos momentos com o trabalho manual e, em outros momentos fixos, com a leitura sagrada.”
As ideias têm consequências
Em resumo, embora eu obviamente tenha deixado de fora muitos fatores-chave, não podemos entender o desenvolvimento das instituições políticas e econômicas ocidentais à parte das ideias metafísicas e morais que estão no cerne do judaísmo e do cristianismo. Isso não exige que se concorde com as reivindicações teológicas do judaísmo ou do cristianismo, mas estou afirmando que, sem essas ideias fundamentais de tempo linear, a bondade e a inteligibilidade do mundo natural, e a dignidade do homem e do trabalho, não teríamos visto os desenvolvimentos científicos ou econômicos que caracterizaram o Ocidente e que, francamente, tornaram-se modelos de progresso em contextos não-ocidentais.
Este ensaio é um trecho editado de “EXCLUÍDO: Como a Indústria da Pobreza Exclui Pessoas Pobres da Prosperidade e da Justiça”, previsto para lançamento pela Herder & Herder/Crossroads em 2024.
Artigo: The Prosperity Pyramid Scheme
Escrito por: Michael Matheson Miller em 23/10/2023.
Traduzido por: Jan Marc Paes de Barros Smid
Revisado por: Victor Vieira
- Nota do tradutor: no Brasil, esse serviço é de jurisdição da ANVISA, enquanto a AAM (em inglês, FDA), à qual o escritor se refere, é uma entidade norte-americana ↩︎