Liberdade, conspiração e como diferenciá-los
A liberdade possui diversas definições, se é que podemos defini-la de forma concreta. Para fins deste artigo, consideremos a definição de liberdade de expressão como o direito de manifestação do pensamento, ou seja, a possibilidade de uma pessoa emitir opiniões e ideias próprias ou expressar atividades intelectuais, científicas, artísticas e de comunicação, sem interferência ou retaliação do governo. A própria Constituição Federal brasileira traz esse direito no rol de garantias individuais do Artigo 5º, em seu inciso IV, nos termos “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (Liberdade de Imprensa…, 2021).
Conspiração, por sua vez, é definida, nos termos do Dicionário Aurélio, como “1. Ato ou efeito de conspirar; maquinação, trama. 2. Conluio secreto”. No inglês, ainda temos a diferenciação entre conspiration e conspiracy, sendo o primeiro termo entendido como o ato de conspirar e o esforço conjunto para atingir determinado objetivo, enquanto o segundo possui uma conotação mais negativa, compreendida como um acordo para executar, conjuntamente, uma ação ilegal, ilícita ou subversiva; um grupo de conspiradores; um acordo entre duas ou mais pessoas para cometer um crime ou atingir um objetivo por meio de uma ação ilegal ou ainda a união de forças por desígnio sinistro (Conspiração…, 2008).
A partir dessas definições, é essencial saber diferenciá-las. A liberdade de expressão, como qualquer outra, possui consequências. Nas palavras de Friedrich Hayek¹: “Liberdade não significa apenas que o indivíduo tenha a oportunidade e o fardo da escolha; significa também que ele deve arcar com as consequências de suas escolhas. Liberdade e responsabilidade são inseparáveis” (Uma dose…, 2022). Dessa forma, a própria noção de se expressar livremente já implica na responsabilidade pelo que será dito, bem como na liberdade que os demais têm em refutar quem proferiu o pensamento, o que naturalmente alimentaria uma troca de ideias maior e, para tanto, um filtro de informações em busca da veracidade dos fatos.
Em contrapartida, a conspiração é direcionada para a propagação de uma ideia única, imposta, tramada, sem abertura para ser contrariada. É a impossibilidade de aceitar outras possibilidades além da realidade de quem diz, ainda que existam dados e pesquisas para amparar qualquer ideia oposta, ou até mesmo que comprovem a falácia daquele pronunciamento. Dessa forma, conspirar impede a apuração das informações, as quais são impedidas de passar pelo filtro dos estudos e tornam-se dogmas na sociedade, dividindo as pessoas entre “certas e erradas”, a depender do posicionamento delas, e não do seu conhecimento perante determinada pauta.
O mal da sociedade atual: a cultura do cancelamento e o caminho para a censura
A rejeição de um indivíduo por ter ideias contrárias à massa não é de hoje. Contudo, o movimento denominado como “cultura do cancelamento” surgiu nos últimos anos, caracterizado principalmente pelo anonimato das redes sociais. Inicialmente, era “justificado” como uma forma de chamar a atenção para causas como justiça social e preservação ambiental, sendo uma maneira de amplificar a voz de grupos oprimidos e forçar ações políticas de marcas ou figuras públicas (O que é…, 2020).
Seu funcionamento costuma seguir um padrão: um usuário de mídias sociais presencia um ato que considera errado, registra e posta em sua conta, com a cautela de marcar a empresa empregadora do denunciado e autoridades públicas ou outros influenciadores digitais que possam amplificar o alcance da mensagem. Em questão de horas, é provável que o post tenha sido replicado milhares de vezes. A velocidade de compartilhamento, por vezes, impede que a pessoa sob ataque possa se defender amplamente e, diferente da trollagem típica de internet que traz insultos coordenados e é frequente em disputas de opinião entre usuários das redes, o cancelamento é um ataque à reputação, o que ameaça o emprego e os meios de subsistência atuais e futuros de seu alvo (O que é…, 2020).
O problema está na proporção que o cancelamento atinge pois, além de ter se tornado uma prática comum e extremamente danosa aos cancelados, tal cultura encaminha a sociedade para um futuro de censura. Apesar de sua justificativa ser de proteção aos grupos oprimidos, na prática, ocorre uma imposição de ideias por vezes sem embasamento teórico, visando impor o que é certo e desconsiderar todo e qualquer argumento que contrarie tal posicionamento. O fundamento não está verdadeiramente na busca por uma igualdade, mas sim numa substituição de quem detém o poder. A história costuma se repetir: os marginalizados – nações ao perderem uma guerra, grupos supremacistas, radicais que se veem oprimidos – resolvem sujeitar os demais a apoiarem qualquer justificativa que aparentemente solucione suas mazelas (Woke censorship…, 2020).
Tolerância e debate: possíveis soluções para o conflito de ideias
Há definições para “tolerância” em diferentes contextos. Aqui, será tratada como a “atitude liberal de quem reconhece aos outros o direito de manifestar opiniões ou revelar condutas
diferentes das suas ou até diametralmente opostas a elas” (Tolerância, Michaelis). Esse é o ponto de partida para lidar com os pontos de vista divergentes que marcam presença na sociedade. Não se trata de um dom, mas sim uma habilidade que pode e deve ser treinada para o convívio com os demais.
Voltaire¹, em sua obra Dicionário Filosófico (1764), traz que “estamos todos empedernidos de debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é a primeira lei da natureza”. Com isso, o autor expressa que é da natureza humana se equivocar e, por conta disso, é preciso uma compreensão mútua entre partes divergentes para mantermos um convívio. Sua definição apresenta exemplos da intolerância relacionada à religião, como “Já se vos disse, e não temos outra coisa que dizer-vos: se tiverdes duas religiões, elas se trucidarão; se tiverdes trinta, viverão em paz”.
Com base nisso, não é difícil usar tal explicação de forma análoga à atualidade, ao compasso que duas ideias opostas tendem a se repelir mais do que ideias diversas e múltiplas num mesmo espaço. Isso se deve ao fato de que o livre espaço para debate de ideias promove a tolerância, já que não apresenta apenas duas ideias antagônicas – o que abriria espaço para um embate de “bem versus mal” – mas sim uma multiplicidade de opiniões, fazendo com que um debate produtivo ganhe espaço e até mesmo fomente pesquisas e estudos acerca do assunto em questão.
Ainda fazendo menção a Voltaire, sua obra Tratado sobre a Tolerância (1763) coloca a tolerância como um princípio ao dizer que “O grande princípio […] é, em toda a Terra, o seguinte: ‘Não faz para o outro aquilo que não gostarias que fizessem a ti’. Ora, não vemos como, seguindo este princípio, um homem poderia dizer ao outro ‘acredita nisto em que eu acredito e no que não podes acreditar, ou então morrerás’.”. É evidente observar como tal trecho ainda se faz demasiadamente atual, visto que a recusa do debate tem se intensificado nos últimos tempos, sob a premissa de proteção aos que precisam de voz. Todavia, é preciso entender que tal voz é dada justamente pela pluralidade de opiniões, e não pela imposição de um dogma, até porque “quanto menos dogmas, menos disputas” (VOLTAIRE, 1763).
Em suma, o caminho para lidar com ideias sem cancelar ou censurar é a tolerância. A história já provou diversas vezes que a imposição de ideais e a ditadura do suposto “correto” gerou violência, mas não solucionou as diferenças – até porque não há o que solucionar nelas. Há uma grande verdade na fala de Santo Atanásio³ ao dizer que “É uma execrável heresia querer cativar pela força, através de golpes, aqueles que não pudemos cativar pela razão”, pois uma ideia, quando coerente e plausível, não precisa ser compelida, já que sua tendência é a de convencer pessoas pelo seu próprio conteúdo. Assim, é através do debate que a tolerância se mostra presente, norteando a troca de pensamentos para que os indivíduos presentes somem conhecimento e não se bastem a doutrinar os demais.
Referências Bibliográficas
Liberdade de Imprensa X Liberdade de Expressão. TJDFT. 07 mai. 2021. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-se manal/liberdade-de-imprensa-x-liberdade-de-expressao. Acesso em: 17 mai. 2023.
Conspiração: conspiration ou conspiracy? Portal Migalhas. 14 abr. 2008. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalaw-english/58014/conspiracao–conspiration-ou-c onspiracy. Acesso em: 17 mai. 2023.
Uma dose do pensamento de Friedrich Hayek. Revista Oeste. 27 ago. 2022. Disponível em: https://revistaoeste.com/economia/uma-dose-do-pensamento-de-friedrich-hayek/. Acesso em: 17 mai. 2023.
O que é a ‘cultura de cancelamento’. BBC News Brasil. 25 jul. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-53537542. Acesso em: 17 mai. 2023.
Woke censorship is basically a superstitious cult. New York Post. 29 jun. 2020. Disponível em: https://nypost.com/2020/06/29/woke-censorship-is-basically-a-superstitious-cult/. Acesso em: 17 mai. 2023.
Tolerância (verbete). Michaelis On-line. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?id=0L5Xn. Acesso em: 18 de mai. 2023.
VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Domínio Público. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra= 2253. Acesso em: 16 mai. 2023.
VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Tradução de Leandro Cardoso Marques da Silva. 1ª. ed. São Paulo: Edipro, 2017.
Notas de fim:
¹ Friedrich Hayek é um dos principais expoentes da Escola Austríaca de Economia, conhecida por promover os princípios do capitalismo de livre mercado. Escreveu mais de 130 artigos e 25 livros, que tratam de assuntos relacionados à economia, à psicologia, à filosofia, à política, à antropologia, à ciência e à história.
² François Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, foi um dos mais importantes filósofos do iluminismo. Defensor das liberdades individuais e da tolerância, foi uma grande inspiração da Revolução Francesa. Para Voltaire, deve ser garantido às pessoas o direito à liberdade de expressão, à liberdade religiosa e à liberdade política. Por suas defesas, o filósofo foi perseguido pela Igreja Católica e pelo Estado absolutista francês.
³ Atanásio, feito bispo de Alexandria em 328,foi o principal e incansável defensor da doutrina transmitida pelos Apóstolos. Perseguido pelos imperadores e arianos é mandado quatro vezes ao exílio, viu por fim triunfar a verdadeira fé.