No momento em que escrevo este artigo, tive a oportunidade de ler apenas a primeira parte do livro “A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand. Ao longo dos capítulos iniciais, os personagens da história mencionam ocasionalmente uma lei que está sob discussão – a Lei da Igualdade de Oportunidades. Até o término desta primeira parte, tudo o que sei é que a referida lei foi aprovada, sem muitos indicativos de suas implicações para o enredo do romance. Isso ainda não esclarece exatamente qual é a perspectiva de Rand sobre o tema.
Justamente por isso, não é minha intenção neste artigo ser negligente ao ponto de responder à pergunta: o que é igualdade de oportunidade sob ótica de Ayn Rand?
No entanto, proponho-me aqui a analisar um episódio específico da obra, por entender que este episódio contém as faíscas do que virá ser as razões fundamentais para a aprovação da Lei da Igualdade de Oportunidade no romance. Mais especificamente, trago à tona um trecho de um diálogo entre Orren Boyle e Jim Taggart, presente no capítulo 3 da primeira parte.
Assim, busco neste artigo responder as seguintes perguntas: 1) Qual seria o entendimento de Boyle sobre a igualdade de oportunidade? 2) Por que? 3) E como percebemos o resultado prático da sua perspectiva nos dias de hoje?
Dito isso, pretendo retomar o tema em uma segunda ocasião, após finalizar a leitura de “A Revolta de Atlas”. Espero poder abordá-lo sob uma nova perspectiva, complementando a análise inicial que se segue abaixo. Isso também me permitirá confirmar, corrigir e aprimorar as ideias aqui apresentadas, além de responder à pergunta fundamental: o que é igualdade de oportunidade sob a ótica de Ayn Rand?
Pois bem, segue abaixo o diálogo entre Boyle e Jim Taggart mencionado no preâmbulo deste artigo.
“– Veja a situação do minério de ferro. A produção nacional parece estar caindo a taxas terríveis. Isso ameaça a existência de toda a indústria do aço. Há siderúrgicas fechando no país inteiro. Só há uma companhia de mineração com sorte bastante para não ser afetada pelo quadro geral. Sua produção parece total e sempre pronta no prazo. Mas quem se beneficia com isso? Ninguém, a não ser o dono. Você acha que isso é justo?
– Não – disse Taggart –, não é justo.
– A maioria dos industriais do aço não possui minas para produção de minério de ferro. Como podemos competir com um homem que monopoliza os recursos naturais que Deus criou? É de espantar que ele possa fornecer aço regularmente, enquanto nós temos de esperar e lutar e perder nossos compradores e abrir falência? É do interesse público que um homem destrua uma indústria inteira?
– Não – disse Taggart –, não é.
– Parece-me que a política nacional deveria ser no sentido de dar a cada um a sua parte na área do minério de ferro, para preservar a totalidade da indústria. Não acha?
– Acho.”
Gostaria de chamar a atenção do leitor para os seguintes aspectos: (i) veja que, no entendimento de Boyle, o sucesso de uma determinada companhia de mineração, se dá por pura sorte; (ii) Injustiça, diz ele, está no fato de empresas pequenas serem “engolidas” pelas maiores; (iii) Uma minoria monopoliza os recursos dados por Deus, em detrimento da maioria (aqui eu abro um parêntese ao leitor: o que é um monopólio, afinal?); e por fim, (iv) eis a velha falácia de que a riqueza de uma sociedade é fixa, e que por isso, caberia a política nacional equalizá-la dando a cada uma a sua parte na área do minério de ferro.
A confusão de Boyle é metafísica e epistemológica. – Oi?! – Calma, já explico.
Metafísica e Epistemologia são duas das áreas de estudos fundamentais de qualquer filosofia, sendo a metafísica aquela que busca responder à pergunta: onde estamos? Em outras palavras, qual é a natureza das coisas? O que constitui realidade? (veremos adiante que não há nada de sobrenatural no termo)
Epistemologia, por sua vez, busca responder à pergunta: como eu descubro? Ou seja, o que é conhecimento, e como eu a obtenho? (para fins de contexto, o campo da ética, busca responder uma terceira pergunta: o que eu devo fazer? Isto é, o que é certo? O que é bom e o que é mal? o que é moral e o que é imoral?)
Um ensaio específico de Rand explica, ao meu ver, a confusão metafísica de Boyle no diálogo acima. O título do ensaio do qual eu me refiro, é: the metaphysical versus the man-made, que em tradução livre, seria: o metafísico versos o feito-pelo-homem, sendo este um dos capítulos da obra: Philosopy: who needs it (1982).
Neste ensaio, Rand faz referência a uma frase famosa que, provavelmente o leitor já a leu ou a escutou em algum lugar: “Deus, dê me serenidade para aceitar as coisas que eu não posso mudar, coragem para as coisas que eu posso e sabedoria para saber a diferença.” Aqui quero abrir um parêntese: essa frase é especialmente marcante para mim. Há muito tempo tenho o costume de vez ou outra escrever sobre como vai a minha vida, se ela está na direção que eu gostaria ou não, o que é preciso melhorá-la, etc. Certa vez, escrevi justamente essa frase na tentativa de ter o discernimento a qual ela se refere. Pensar sobre, não foi nada óbvio… e talvez por isso a responsabilidade de tal discernimento foi atribuída à Deus na referida frase.
Nesse artigo, Rand com sua genialidade, nos mostra de maneira clara que sabedoria é essa. Isto é, o que de fato é, e o que não é passível de mudança pelo homem.
A confusão metafísica de Boyle reside no fato de que ele confunde o que é metafisicamente dado, com o que é feito pelo homem. Vejamos:
Metafisicamente dado são coisas as quais o homem não pode mudar, cabendo-lhes único e exclusivamente reconhecê-las, enquanto que as coisas feitas pelo homem, são passíveis de mudança. Vejamos esses conceitos em mais detalhes adiante:
Metafísico é tudo aquilo que não está sob controle do homem. Para fins de exemplo, não está sob seu controle cortar a água, quebrar o fogo ou rasgar a pedra, pois cada um desses elementos possuem uma natureza específica. A natureza é governada por leis que não permitem qualquer intervenção do homem, apenas o seu reconhecimento. A força entre duas massas é igual à constante gravitacional “G” vezes a massa do primeiro objeto, vezes a massa do segundo, divido pela distância entre os dois objetos ao quadrado, e isso independe de qualquer vontade do homem. Eis a Lei da gravitação universal.
Da mesma forma, a Lei da Identidade se aplica à todas as coisas, inclusive ao homem. Ele tem uma identidade específica, cabendo-lhe apenas o reconhecimento deste fato, fato este que é metafísico, ou seja, da sua própria natureza. O homem, por definição, é um animal racional (racional no sentido de que ele possui a faculdade da razão, o que o diferencia de todos os outros animais, podendo exercê-la ou não).
Por outro lado, feito pelo homem são coisas que não brotam na natureza, como por exemplo, a mesa, televisão, tecnologias em geral, governo, legislações, etc.
Ok, mas como isso reflete no comportamento das pessoas hoje em dia, e o que isso tem a ver com o discurso de Boyle no trecho acima?
A maioria das pessoas oscilam entre premissas filosóficas distintas (vez em um extremo, vez em outro). A título de exemplo, o quão comum é algumas pessoas dizerem que seus resultados são produto do seu próprio esforço, mas que ao mesmo tempo alegam o progresso ser natural, inerente ao ser humano. A segunda premissa fundamenta alegações do tipo: “se Thomas Edison não tivesse inventado a lâmpada elétrica, outra pessoa a teria.” Pois o progresso, dizem elas, é natural, como se fosse metafisicamente dado, mas não, isso é feito pelo homem.
No que diz respeito à sorte
Ou ainda: “Foi Thomas Edison quem inventou a lâmpada elétrica por sorte da sua genialidade, inata.” De fato, algumas pessoas tem um poder computacional (me refiro à inteligência) mais aprimorado do que outras, mas isso não nos diz nada sobre sua racionalidade e não determina seu sucesso. Nesse sentido, não me espanta alguns “intelectualzoides” não entenderem como pessoas menos inteligentes fazem dinheiro, e eles não. Pois não se trata de sorte (observem o termo também nas palavras de Boyle), mas de um esforço deliberado da sua mente em definir seu próprio sucesso.
Nesse sentido, muitos indivíduos aceitam passivamente o que deveria ser questionado, como por exemplo, escrevendo em pedra seu QI, ao invés de aceitar sua natureza que lhe permite criar sua própria inteligência (ora, no que se refere à natureza, eles se questionam: será que me foi dado o dom da inteligência?). Quanto a isso, Stephen Hawking disse:
“Eu não tenho nenhuma ideia de qual seja o meu QI. Pessoas que se vangloriam disso são perdedores.”
Novamente: o que é feito pelo homem, cabe questionamento. O que é metafisicamente dado, nos cabe apenas aceita-lo. Não o contrário.
No que diz respeito à justiça
Quem nunca ouviu frases do tipo: “eu sinto que é assim”? A título de exemplo, como atuante no mercado imobiliário, ouço frequentemente de que entender do mercado é uma questão de ter o feeling pro negócio. Mas as emoções de um indivíduo não são ferramentas de cognição. Aqueles que disseminam tal perspectiva, falham no entendimento do que constitui a natureza do ser humano e, segundo Rand, a questão metafísica subjacente, é a primazia da consciência, em oposição à primazia da existência.
Primazia da consciência é a noção de que o universo independe da existência concreta, que a realidade é única e exclusivamente produto da consciência. Dessa forma, os caprichos dos indivíduos alienadas aos fatos da realidade, se tornam por si só a realidade. Lembre-se do seu colega comunista alegar que tudo não passa de construções sociais.
Enquanto que a primazia da existência, é a noção contrária da primazia da consciência, ou seja, que o universo existe independente da consciência.
No que se refere à primazia da consciência, cito outro trecho de A Revolta de Atlas, extraído da página 242 da 1º parte:
“Os jornais nada diziam a respeito da construção da Linha Jonh Galt. Nenhum repórter foi enviado à obra. A política geral da imprensa fora determinada cinco anos antes por um famoso editor: ‘Não existem fatos objetivos. Toda reportagem não passa da opinião de alguém. Portanto, é inútil escrever sobre fatos.’”
Rand, ainda no seu ensaio: the metaphysical versus the man-made, afirma que podemos encontrar o ápice da primazia da consciência na teoria de Justiça, de Jonh Rawls. O autor, assim como Boyle, utiliza do termo como sinônimo de igualdade e, portanto, eis uma falha epistemológica (referente à ciência que estuda a formação de conceitos).
A maneira que o referido autor encontrou de promover a justiça, foi reduzindo os indivíduos à “posição original”1, sob o “véu da ignorância”, representando uma situação hipotética do ser humano antes mesmo dele nascer. Nesse estado, todos são iguais, ignorantes e desprovidos de cérebros, mas um ser humano, por sua natureza, é dotado de cérebro. Isso é um fato metafísico, mas ignorado (ou evadido) por Rawls.
Justiça na perspectiva objetivista, é uma virtude e/ou princípio, cujo significado é não desejar receber um mérito imerecido, e nunca decretar uma causa sem assumir total responsabilidades por seus efeitos. Assim, é justo um homem receber mérito em resposta ao seus próprios esforços. Pergunto: é possível alguém conceber justiça nesses termos, se é inconcebível que haja qualquer esforço da sua parte? Da definição acima, vemos que justiça não tem nada a ver com igualdade.
Até aqui, abordamos a questão da sorte e da justiça, ambos conceitos utilizados por Boyle em seu diálogo com Jim Taggart. Vamos tratar agora sobre monopólios e sobre uma política que dá a cada um a sua parte.
No que se refere à monopólios
Um monopólio, pode ser coercitivo ou não. Saber essa distinção é fundamental. Conforme Nathaniel Branden nos apresenta no capítulo 5 de Capitalismo: O ideal desconhecido:
“Um monopólio-coercitivo é um controle exclusivo de uma área de produção em particular que seja fechada e isolada da concorrência, de modo que quem controla a área seja capaz de estipular políticas de produção arbitrárias e cobrar preços arbitrários, independentemente do mercado e imune à lei de oferta e procura.”
O autor deixa claro que nesse cenário, não há apenas ausência de concorrência, mas também a impossibilidade de concorrência, e isso só é possível por meio do princípio da força, ou seja, pela força da lei. O ponto é que somente governos instituem leis.
A falha epistemológica, nesse caso, reside no fato de quem a comete não tem clareza do conceito: monopólio. Um monopólio só pode ser coercitivo.
Uma outra vertente seria um “monopólio” no sentido de ser não-coercitivo. O exemplo que Branden nos traz é o caso de uma cidade pequena conter apenas uma farmácia. Esta farmácia detém o monopólio, mas não-coercitivo. Simplesmente não há demanda suficiente que justifique a presença de mais uma farmácia.
Um outro exemplo seriam os ditos monopólios naturais, dados por Deus, tal como o petróleo. Nesse sentido, o autor deixa claro que petróleo é antes de tudo uma commodity, assim como gás natural, carvão betuminoso, etc. Justamente por isso, os preços negociados não são de monopólio, dada a concorrência do petróleo em relação às outras commodities.
O único sistema social que impede o surgimento de monopólios-coercitivos é o capitalismo, pois o seu princípio subjacente é o da troca, (ou seja, da justiça, o exato oposto do princípio por trás de monopólios-coercitivos) em que os homens são recompensados/punidos pelo produto dos seus próprios juízos, e livres para o exercerem, mediante trocas voluntárias. Nas palavras de Rand, em A Virtude do Egoísmo, no capítulo que trata da ética objetivista:
“O princípio da troca é o único princípio ético racional para todos os relacionamentos humanos, pessoais e sociais, particulares e públicos, espirituais e materiais. É o princípio da justiça. Um negociante é um homem que merece aquilo que adquire, e não dá, nem toma, aquilo que não é merecido. Não trata os demais como senhores ou escravos, mas como seus iguais, independentes. Lida com eles por meio de uma troca livre, voluntária, não forçada e nem coagida, que beneficia ambas as partes, respeitando seus julgamentos independentes.”
Por outro lado, se uma empresa detém um monopólio, não por proteção governamental, mas por pura eficiência, preços baixos, produtos qualificados, etc. Então não há embasamento moral para condená-la.
No que se refere à equalização da riqueza
Cito Rand, em “A virtude do egoísmo”:
“A ética do altruísmo criou a imagem do brutamontes…, de modo a fazer os homens aceitarem dois princípios desumanos: a) que qualquer preocupação com seus próprios interesses é maligna, não importando quais sejam esses interesses e b) que as ações do brutamontes são, na verdade, para seu próprio interesse (que o altruísmo ordena que o homem renuncie pelo bem dos outros).”
Ou seja, a moralidade altruísta nos apresenta uma falsa dicotomia, ou você renuncia seus interesses em favor dos outros, ou os outros terão que renunciar os interesses deles em favor dos seus. É inconcebível ao altruísta que todos possam ganhar. Isso explica o porquê de Boyle achar que deveria haver uma política nacional do minério de ferro no sentido de que todos pudessem ter a sua parte para preservar a indústria nacional, pois não cabe a cada indivíduo criar a sua parte, mas sim tomá-la de outrem.
A partir de uma análise objetivista, busquei elucidar a confusão metafísica e os equívocos epistemológicos subjacentes à perspectiva de Boyle em seu diálogo com Jim Taggart, destacando uma visão de mundo que, embora frequentemente assimilada de forma passiva, é potencialmente prejudicial ao ser humano.
*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.
- A “posição original” e o “véu de ignorância” são conceitos centrais na teoria de justiça de John Rawls. Eles são usados para formular um método hipotético para determinar os princípios de justiça que devem governar uma sociedade justa. ↩︎