Desde o dia 29 de abril o Brasil tem presenciado uma tragédia. A calamidade vivenciada pelo Rio Grande do Sul desenvolveu um verdadeiro efeito dominó, passando por serviços voluntários, dramas governamentais, a exposição pública da imoralidade do jornalismo brasileiro e o desenfreado aumento de crimes em meio ao estado de guerra sofrido pelos gaúchos.
Rio Grande do Sul: nova terra sem leis
Em meio a uma verdadeira lição de humanidade demonstrada pelo trabalho voluntário, os outros lados dessa história já não são tão gloriosos. A destruição ocasionada pelas chuvas se desdobrou, entre outros danos, num aumento considerável na criminalidade local.
As vítimas, que no início preferiam o resgate e os abrigos, agora brigam para ficar em suas casas, tentando salvar o que restou. Mas salvar do que, se as chuvas são inevitáveis? A tentativa, ainda que por vezes ineficaz, é de proteger os poucos bens que lhe restaram das invasões das facções. O cenário – quem dera fosse apenas uma distopia – é violento, piorando após o final da tarde, quando a patrulha policial para e as facções marcam as casas invadidas como suas. Ultrapassar o território demarcado gera uma imediata sentença de morte, fazendo com que não só as vítimas temam as invasões, mas interrompendo o resgate voluntário nessas áreas.
Outro crime também se faz bem presente do estado gaúcho: estupros. Mulheres, crianças e bebês sendo brutalmente violentados enquanto tentam lutar pelas suas vidas. Os abrigos, que começaram como mistos, agora precisam de uma divisão por idade e por sexo biológico, a fim de proteger os considerados mais vulneráveis a crimes sexuais.
A arte copia a vida ou a vida copia a arte?
Esse triste cenário criminoso já foi retratado na franquia americana The Purge, que retrata uma noite de expurgo. Nela, os EUA veem seus índices de violência e criminalidade despencarem após a adoção de uma política um tanto simples, mas absurdamente polêmica, decidindo liberar por 12 horas todos os crimes e suspendendo todos os serviços de emergência. Essa situação se aproxima da realidade gaúcha não na sua política intencional, mas na ausência de fiscalização de crimes e na ineficácia dos serviços emergenciais ocorridos a partir da tragédia.
A política adotada no filme acaba colocando o ser humano em um instinto de sobrevivência: matar ou morrer. Sem enxergar uma saída, haja vista a suspensão dos serviços de emergência, a população se divide em três grupos: os criminosos, que realmente querem realizar os crimes e veem uma liberdade imoral nessa ocasião; os acuados, que atacam por medo de serem atacados, num raciocínio de “antes ele do que eu”; e os mais raros, que mesmo em meio à confusão, prestam serviços voluntários para proteger e curar as vítimas dos crimes.
Mesmo se originando de forma distinta daquela retratada na franquia de filmes, a calamidade que acometeu o Rio Grande do Sul colocou sua população numa divisão semelhante: as facções criminosas afloraram, vendo uma oportunidade de tirar o que conseguirem dos outros através do uso de sua força, quer seja em números de integrantes ou no uso de armas; os cidadãos, vendo-se em uma situação de perigo, perdendo suas moradias e incapazes de defender os poucos bens que lhes restaram, buscaram meios para se defender, já que a segurança pública ou está ausente na situação, ou é incapaz de frear o avanço da criminalidade; e, por último, e representando o lado bom, temos os voluntários, contando tanto com gaúchos que se dispuseram a ajudar quanto com brasileiros de outros estados que conseguiram pausar suas vidas cotidianas para estender a mão às vítimas.
Num paralelo com a realidade, condutas governamentais diferentes levaram a um resultado semelhante. Enquanto a realidade do filme foi planejada pelo governo americano, anunciando a ideia para a população e saindo de um plano de ação para a realidade da história ali narrada, a calamidade em terras gaúchas não foi calculada, gerando um retrato que se aproxima do filme, mas que ocorreu de forma empírica, ou seja, partindo diretamente da experiência da situação de pressão em que as pessoas ali foram colocadas inesperadamente. Assim como em The Purge, o governo abre mão de validar suas leis já existentes, numa espécie de anomia. Como consequência, seja de forma planejada ou por uma tragédia natural, o descontrole da segurança pública torna a comunidade local uma espécie de “terra sem lei”.
Não pisa em mim, tchê
Com toda a ameaça sofrida pelos gaúchos, obrigados a lutar não só contra o desastre ambiental mas também com a imoralidade humana, é natural que, assim como nos filmes, a ameaça os faça reagir e responder à situação, ainda que em um grau menor que o do perigo oferecido. Apesar dos atos já citados serem crimes pelo Código Penal, sem policiamento ou ação do Estado, legalmente, não há crime. No caso retratado em The Purge, a situação deixou de ser crime pela medida política adotada, ao passo que, no Rio Grande do Sul, a situação se dá por uma anomia do Estado, fazendo com que deixe de ser crime. Isto nos revela como, em ambas, a presença do governo é o que deveria impedir a realização destas ofensas e, consequentemente, sua inércia é o que favorece a elevada taxa de criminalização.
O que fazer, então, se as condutas não serão punidas? Bom, é nesse exato ponto que saímos do âmbito da legalidade e entramos na ideia da moralidade: a autodefesa. “O certo é certo, mesmo que ninguém o faça. O errado é errado, mesmo que todos se enganem sobre ele”¹. Ayn Rand defende em A Virtude do Egoísmo a noção de que “a pré-condição para uma sociedade civilizada é a restrição da força física nas relações sociais – estabelecendo, dessa forma, que se os homens desejam lidar uns com os outros, devem fazer apenas por meio da razão: por meio da discussão, da persuasão e da concordância voluntária e não-coercitiva. A consequência necessária do direito do homem à vida é seu direito à autodefesa. Em uma sociedade civilizada, a força pode ser utilizada somente contra aqueles que iniciam o seu uso. Todas as razões que tomam a iniciação da força física um mal, tornam o uso retaliativo da força física um imperativo moral”.
Ocorre que, frente ao armamento pesado das facções, os únicos que ainda conseguem, de alguma forma, defender a si mesmo e suas propriedades são aqueles que possuem armas em casa. A resposta devida e lógica a ameaças e agressões é a retaliação por meio da força. Contudo, não é possível verdadeiramente se defender enquanto houver disparidade entre os meios para isso; se criminosos podem ter armas, é utópico pensar que desarmar civis e contar apenas com o diálogo seria capaz de parar ações que ferem diretamente a vida, a liberdade e a propriedade do indivíduo, quer ele esteja em meio à tragédia gaúcha ou em qualquer outro lugar.
*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.