Em Defesa da Democracia

Em defesa da Democracia

Os chefes de outrora governavam em nome de Deus, e havia tantos que assim alegavam que seria necessário todo o Panteão romano para que houvesse um deus para cada tipo de chefe. Mas os tempos mudam, e hoje Deus faz menos aparições na política, embora ainda continue a ser invocado nas eleições ou quando um chefe qualquer julga conveniente. Temos hoje entronizado um novo deus: o povo – que, diga-se de passagem, não tem lá muita vocação para ser deus. Mas tudo é possível com uma boa retórica; se o povo real não se parece muito com um deus, podemos criar um outro povo, um povo ideal, mais divino e infalível que o Cristo ou qualquer outra divindade. Assim constitui-se nosso sistema de governo, tão religioso quanto qualquer monarquia absolutista de passadas eras. O povo é nosso deus, a democracia é nossa religião e a República é nossa Igreja. Temos também nosso livro sagrado: a constituição. 

Nosso país, com profunda vocação religiosa, tem levado a sério esse credo moderno. Visionários que somos, criamos nossa própria inquisição, chefiada pela versão tropical do Santo Ofício, que aqui recebe o nome menos elegante de Supremo Tribunal Federal.

Uma vez exposto nosso sistema de governo, vamos prosseguir com nossa análise. O nome da nossa santa religião – a democracia – foi usado por Aristóteles em sua obra Política em circunstâncias, diga-se de passagem, um pouco desonrosas, o herético filósofo chamava “democracia” a forma degenerada da Politéia – que consistia no governo dos cidadãos. Os nossos pais na fé, por algum deslize, preferiram o nome Democracia a Politeia, o que acabou por trazer já desde o início um pouco de desdouro à forma de governo. Mas todos nós sabemos que essas questões de nome são realmente complicadas, e por isso vamos perdoar esse erro. 

Peço perdão aos leitores mais religiosos e sensíveis pelas coisas que os obrigarei a ler, espero não ser chamado de herege e muito menos ter problemas com a inquisição; mas convenhamos, o nosso sistema de governo, como está constituído em nosso país, tem lá suas faltas, essa coisa chamada democracia tem sido verdadeiramente uma democracia — na pior acepção –, como descreveu Aristóteles, e por isso nossos governantes, via de regra, são os mais estúpidos e caricatos possíveis. O povo, que tem sido chamado a ser cidadão, não consegue nem sequer entender o que está acontecendo; o povo escolhe sem escolher, e quando os pobres cidadãos querem ao menos se expressar, os sacerdotes da nossa amada religião já se apressam em tolher-lhes a liberdade; o povo que “governa” é um povo que não existe, um povo fake, e por isso é importante aos nossos levitas impedir que o povo real se expresse – o povo real não é bom o suficiente. Se, no sistema democrático, o povo é deus, temos que ser sinceros: é um deus impotente, meramente cerimonial. Tem olhos mas não vê, tem boca mas não fala, tem cabeça mas não pensa. 

Não digam com isso que quero desmerecer o povo, pelo contrário, quero defendê-lo. Acredito na democracia mais que muitos que a defendem no momento atual por pura conveniência, gente que ontem andava fazendo cosplay de Che Guevara e que hoje bate no peito horrorizado com qualquer blasfêmia contra a democracia, por pura afetação. Acredito que o sistema democrático constitui a melhor forma de governo que se pode conceber, à medida que se aproxima do ideal aristotélico de Politeia; o povo, então, não é mais uma massa irracional, é o conjunto dos cidadãos. Esse ideal político é nobre, porém dificílimo de alcançar; tudo que é verdadeiramente bom é difícil de se construir, mas extremamente fácil de se destruir. Para que haja verdadeiramente uma democracia é necessário que o povo possa agir em próprio favor, e para isso é conveniente que o Estado deixe de lhe tolher as iniciativas, que o país possa se constituir de pequenos grupos de cidadãos, empenhados com o bem de suas comunidades, e não de uma massa governada por políticos e burocratas arrogantes. Para que o povo seja cidadão, deve haver descentralização! 

Mas como pode se dar essa descentralização e qual princípio a sustenta? 

Os habitantes dos bairros, das cidades e dos estados conhecem melhor suas realidades locais do que um político-burocrata de Brasília. Na democracia ateniense os assuntos eram discutidos na ágora, e todos os cidadãos podiam participar – embora bem poucos fossem os cidadãos –, nas democracias modernas as questões são decididas em gabinetes, e os interesses ali representados raramente são os das comunidades as quais as decisões se referem.  As questões devem ser decididas localmente, e só quando isso não for possível se deve recorrer a decisões centralizadas. 

Uma pergunta, porém, pode surgir: nas esferas locais – estados e municípios – também não haveria políticos eleitos, já que a democracia moderna é representativa? E esses políticos não poderiam agir como os de cima? Mover a tomada de decisão de Brasília para estados e municípios não seria mudar o problema de lugar? A resposta é complexa! De certo modo, sim; nada impede que se constitua uma burocracia semelhante a de Brasília nos estados e municípios, e que os que exercem o poder político ajam como se age na capital federal, tolhendo a iniciativa popular, e substituindo-a por uma iniciativa popular falsificada, feita de conselhos populares cujos membros estão em completo acordo e submissão aos interesses ideológicos dos políticos-burocratas. Entretanto, mesmo que isso ocorresse, ainda haveria maiores possibilidades de reação devido à proximidade geográfica entre o centro de poder e o povo. O princípio que sustenta a descentralização é claro: as pessoas podem ser cidadãs nos seus bairros e em suas cidades, mas não o podem ser em uma república de dimensão continental. 

A descentralização nas tomadas de decisão não basta, é necessário ainda mais para que haja democracia. É necessário que os cidadãos tomem iniciativas e que o Estado, no máximo, chancele as decisões – melhor seria quem nem isso fizesse. De um modo especial, isso deve ser válido no sistema educacional. As comunidades devem educar os seus filhos, e qualquer tentativa de imposição de uma visão de mundo que lhe seja alheia, por parte do poder estatal, deve ser repudiada. Entretanto, a principal iniciativa que os habitantes desta República devem poder tomar é expressar-se, já que as pessoas são cidadãs expressando sua opinião sincera acerca de um problema que as afligem, mas não podem sê-lo quando tudo o que dizem é sempre tomado pelos “intelectuais” e membros da imprensa como a maior estupidez. O Povo sem iniciativa não é cidadão, e sem cidadão não pode haver verdadeira democracia.


Gustavo Sanvezzo

*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.

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