Por que um livro publicado em 1899 é relevante até hoje?
Talvez possa parecer incomum que uma obra feita há tantos anos atrás se mantenha relevante. A primeira resposta comum provavelmente seria pensar em uma daquelas coisas renomadas que se sustentam unicamente pela apreciação dos intelectuais. Mas garanto que não é esse o caso.
Dom Casmurro é uma obra que, mesmo com o passar dos anos, ainda consegue se conectar com a realidade do brasileiro, tanto pela trama apresentada quanto pelos personagens, que são bem escritos com suas peculiaridades e motivações.
Claramente, um de seus pontos fortes é o quanto é fácil se apegar e se identificar com os personagens, mesmo aqueles que não aparecem tanto. Isso se deve ao fato de serem uma representação de arquétipos dos brasileiros, que, mesmo nos dias de hoje, permitem que durante a leitura venha à mente alguém que se parece com os personagens. Vai desde a tia fofoqueira até o jovem garoto que tem medo de decepcionar a mãe.
Isso acontece porque Machado de Assis conseguiu imprimir no livro a essência dos arquétipos que rodeiam o núcleo da família brasileira. E essa essência é algo que não mudou tanto, o que facilita muito para o público brasileiro se identificar com a história. Mesmo para pessoas que não têm o hábito de ler, a narrativa se torna agradável por conter vários elementos comuns da vida no Brasil.
Isto não é um livro, é uma confissão
Caro leitor, peço que entenda o texto sobre o qual falarei aqui como uma conversa, uma linha direta entre o protagonista da história e o leitor, assemelhando-se mais a uma confissão, como aquelas feitas por um amigo recente, onde conhecemos suas histórias, motivações, amores e arrependimentos. É o momento em que realmente entendemos quem ele é e o que o levou a estar ali.
Não é uma confissão digno de óperas, muito menos de grandes filmes, mas apenas um desabafo de alguém que já passou por muita coisa. Por ser algo mais palpável, ao ponto de não ser incomum nem naquela época nem hoje, é difícil não sentir simpatia por um personagem ou dois. Assim como é difícil não sentir empatia pelo personagem central da obra, que realmente parece estar apenas contando sua história ao leitor, como em tantas conversas feitas tarde da noite, em locais vazios, na companhia de algumas bebidas e melancolia. Trata-se de uma explicação de um amor tipicamente brasileiro com um fim igualmente tipicamente brasileiro.
Uma história comum para um brasileiro
O título da história, por si só, já revela um pouco do destino do jovem Bentinho. Seu nascimento se deu a partir de uma promessa feita por sua mãe. Assim, o menino que já não tinha pai herdou a dívida de servir a Deus e à Igreja como padre. Não é algo tão comum nos dias de hoje, mas é recente o suficiente para provocar identificação ou lembrar velhas histórias.
Bentinho era um garoto comum. Embora tivesse sido amarrado por um compromisso com Deus, o ofício de padre não era algo que o incomodava, já que ele não apenas aceitava a ideia, como também gostava. Sua brincadeira favorita era simular missas, geralmente tendo Capitolina como fervorosa frequentadora dessas “missas” de brincadeira e grande apoiadora do seu ofício futuro.
No entanto, Bentinho começa a se afastar da ideia de ser padre logo após perceber que tinha sentimentos por Capitu. Claro, sentimentos de uma criança, mas, quando se é criança, é fácil confundir qualquer coisa com amor verdadeiro. Tomar a decisão de não ser padre entra em conflito com a promessa de sua mãe. Ele não quer magoá-la, muito menos decepcionar a Deus, enquanto faz juras de amor a Capitu.
Enquanto pensa em algum plano para resolver todos os problemas, era comum em sua infância fazer juras vazias ao vento, como se as palavras e ameaças de um pequeno garoto tivessem o mesmo peso que as palavras de um homem. Coisas como: “Que a luz me faltasse na hora da morte se fosse para o seminário” eram ditas para reforçar sua determinação.
Entre esses comportamentos infantis, há coisas bobas e comuns para a pouca idade, como bater no peito após o primeiro beijo e bradar: “Sou homem!”, ou sentir ciúmes sem fundamento, baseados apenas em seus próprios pensamentos.
Capitu
Capitolina, descrita como tendo “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” pelo próprio Bentinho, é seu primeiro e único amor. Frequentemente descrita como dissimulada e excelente mentirosa, ela também é retratada como sedutora.
Capitu foi a principal idealizadora dos planos para evitar que Bentinho seguisse a vida religiosa, sempre o apoiando para que pudessem ficar juntos. Ela é uma personagem complexa, cujo pensamento é menos acessível do que o de Bentinho, o que adiciona mistério à sua figura.
Capitu é uma personagem forte e ativa, expressando suas opiniões, arquitetando planos e tomando ações que movimentam a trama. Sempre há espaço para a interpretação do leitor sobre suas atitudes e intenções, o que torna sua presença ainda mais intrigante.
Outros personagens
- José Dias: Mesmo não sendo parte central da trama, José Dias tem participações importantes. Como agregado da família, ele é um conselheiro e confidente nos planos de Bentinho. Ele passa a apoiar os planos de Bentinho ao perceber que poderia usar a desculpa de estudar na Europa — seu grande sonho — para escapar das obrigações de ser padre. Ele é tanto cômico, com bajulações e exageros, quanto astuto, sempre tentando aproveitar as oportunidades que surgem.
- Tia Justina: Viúva e fofoqueira, Tia Justina é o arquétipo que é mais fácil de associar a alguém conhecido. Ela critica quase todos os outros personagens, mesmo quando faz elogios, e tem constantes trocas de ironias com José Dias.
- Dona Glória: A mãe de Bentinho é uma mulher devota à fé, ao ponto de fazer uma promessa envolvendo o futuro de seu único filho. Após a morte de seu marido, assumiu os negócios da família após a morte do marido, como casas de aluguéis e escravos. Demonstrava sempre um amor incondicional pelo filho, e não era incomum que todos a descrevessem como uma pessoa amável.
Conclusão
O grande reconhecimento e apreço que essa obra tem não é, de forma alguma, exagero. Tenho confiança de que esta pode ser uma ótima porta de entrada para novos leitores, mesmo aqueles que não têm muita afinidade com a leitura, já que é muito fácil se conectar com os personagens. Durante a leitura, é bem comum ver algum personagem e se lembrar de alguém que se pareça com ele. Mas, claro, não é apenas pela identificação que a obra vive.
Creio que outro valor importante dessa obra é mostrar os riscos e as alegrias das paixões, demonstrando como é a vida de alguém que colocou o amor por outra pessoa acima de outros sentimentos, e as consequências disso, além dos perigos de terminar com o coração amargurado.
“Se existe algo mais brasileiro do que mudar todos os seus planos por uma paixão ingrata, eu desconheço.”
Você vai parar para refletir um pouco sobre as situações que passou, as que planeja passar e as que está vivendo. Mas não se preocupe em refletir a cada parágrafo. Esses pensamentos virão naturalmente durante a leitura, que garanto ser proveitosa e, no melhor dos casos, divertida.
*As opiniões do autor não representam a posição do Damas de Ferro enquanto instituição.