Censura nunca mais: o legado da imprensa brasileira

Neste final de eleição, nenhum candidato roubou mais a cena no debate público do que o ministro Alexandre de Moraes. Sob o pretexto de combater fake news, o juiz do supremo que agora coordena o TSE chamou atenção internacional devido a seus avanços autoritários. Não apenas fake news, o ministro instituiu censura prévia à Brasil Paralelo, excluiu um Partido Político das redes por xingá-lo, até mesmo censurou uma matéria verdadeira sobre corrupção no STF. Isto, além de inúmeros outros excessos, indignou vários cidadãos brasileiros que, em protesto, tomaram as ruas neste último 25 de outubro para se manifestar a favor da liberdade de expressão e contra aquele que declarou para si poder de polícia e age sem ser provocado como juiz, júri, e executor. 

Neste momento tão histórico, acho importante resgatar a memória de um liberal tão importante para a história do combate à censura no Brasil, o fundador do Correio Braziliense Hipólito da Costa (1774-1823), e o legado que ele nos deixou.

Porque braziliense, e não brasileiro?

Hipólito nasceu no sul durante o Brasil Colônia, na época em que éramos apenas um puxadinho da coroa portuguesa (e Brasil ainda se escrevia com z). Ao mudar-se para Londres, Hipólito fundaria o Correio Braziliense, tido como o primeiro jornal brasileiro (O nome “braziliense” surge porque, na época, ainda não havia se decidido). 

Apesar do nome, o jornal mensal parecia muito mais uma revista, com alguns exemplares contendo mais de duzentas páginas. Além disso, a distância entre Brasil e Inglaterra fazia com que suas notícias sempre fossem defasadas: a abertura dos portos, ocorrida em janeiro de 1808, só seria publicada em agosto, enquanto a notícia da insurreição pernambucana, iniciada em março de 1817, só chegou em Londres em maio e foi publicada em agosto, quando o movimento já havia sido derrotado. Porque então os brasileiros se interessaram por um jornal tão inútil? Censura.

O arauto da liberdade de imprensa

Não haviam tipografias no Brasil colônia, sendo a primeira trazida por D João VI em 1808. As notícias, portanto, eram extremamente enviesadas pela coroa, publicadas apenas pela Imprensa Régia. Por conta disso, ser capaz de ler o único jornal sem censura do Brasil era extremamente desejado pela nossa elite.

Hipólito sabia bem disso pois, segundo o historiador Antonio Paim, ele editava seu jornal com o propósito de familiarizar a elite com o novo regime que viria a substituir a monarquia absolutista. Para este fim, o Correio Braziliense comentou todas as obras que pudessem ser do interesse da elite colonial mesmo quando editadas em inglês ou francês, e inclusive traduzindo e transcrevendo o que lhe pareceu essencial. Além disso, cobriu detalhadamente a luta pela independência na América Espanhola, e chegou a apresentar para o Brasil um programa minucioso que compreendia desde o aprimoramento do sistema escolar até o estabelecimento da liberdade de imprensa.

Em 1822, com a proclamação do Brasil independente e com imprensa livre, Hipólito acreditou ter cumprido a sua missão e encerrou as atividades do Correio Braziliense. Seu último conselho para o nosso país é descrito pelo historiador Antônio Paim: seguir o bom senso na elaboração da Carta Constitucional, evitar o impulso de em tudo imiscuir-se (intrometer-se), ter presente que as reformas de grande magnitude não se fazem num dia, confiar que as Constituições se aperfeiçoem com o tempo.

Imprensa abolicionista

O legado de Hipólito perdurou pelo resto do Brasil Império, com o próprio imperador D. Pedro II sendo um amante da imprensa livre. De fato, os líderes e embaixadores europeus se assustavam com tamanha liberdade de imprensa em nosso país, muitíssimo mais livre do que os jornais europeus para criticar, ridicularizar e fazer caricaturas de seus líderes. O monarca, porém, afirmava que “imprensa se combate com imprensa”.

Imagem de capa da Revista Ilustrada ridicularizando D. Pedro II

Foi neste clima que a imprensa abolicionista surgiu: em São Paulo tivemos, entre outros, as folhas ilustradas de Luiz Gama “o Diabo Coxo”(1864) e o Cabrião”(1866) resultando no jornal abolicionista “A Redempção” (1887-1899), assim como jornais não abolicionistas que aderiram a causa, como o Correio Popular. Já no Rio de Janeiro foi notável o periódico abolicionista “Gazeta de Notícias”, onde escreveu José do Patrocínio, assim como o “A Reforma”, onde escreveu Joaquim Nabuco, e a Gazeta da Tarde, onde escreveu André Rebouças. Acredito ter sido graças a esta imprensa que, como descreve Nabuco em “Minha Formação”, a abolição brasileira aconteceu por meio do convencimento pacífico dos diversos setores da sociedade ao invés de por meio de uma guerra sangrenta, como nos EUA.

É proibido proibir

A censura no Brasil intensificou-se mais e mais ao longo do século XX. Durante o Estado Novo, houve uma grande censura dos meios de comunicação, torturando jornalistas e intelectuais que falassem mal do Regime. Houve Regulação da Mídia com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que em 1940 destituiu a direção do Jornal “O Estado de S. Paulo” e interviu nele até o fim do Estado Novo.

Foi na ditadura militar, porém, que vivemos o ápice da censura. Isto porque, com a promulgação do AI-5, todo e qualquer veículo de comunicação deveria ter a sua pauta previamente aprovada e sujeita a inspeção local por agentes autorizados. Aqueles que não agradassem o regime, sejam notícias, opiniões, músicas, novelas, ou quaisquer outros, seriam censurados previamente.

Ao ser censurado pela ditadura, o Estadão optou por preencher o espaço retirado com receitas de doces

Muitos músicos ficaram famosos por escrever canções de protesto que criticavam ou burlavam a censura, como foi o caso de Gilberto Gil (Cálice), Caetano Veloso (É Proibido Proibir), Chico Buarque (Apesar de Você), Raul Seixas (Sociedade Alternativa). Para nós liberais, porém, a grande referência foi o empresário Henry Maksoud, um dos maiores responsáveis pela difusão da escola austríaca no Brasil. 

“O estilo polêmico, desafiador, anárquico continua o mesmo. Nos anos 70 e 80, em pleno regime autoritário, o nome Henry Maksoud foi sinônimo de crítica e independência. Dono da revista “Visão”, um dos principais veículos de informação do país na época, e um programa de TV ao modelo “talk-show”, no qual falava mais que os convidados, o empresário marcou época por sua defesa do liberalismo econômico. Admirador do economista e filósofo Friedrich August von Hayek, considerado o pai do neoliberalismo, de quem se tornou amigo, Maksoud ainda prega as mesmas idéias.” – Descrição de Maksoud numa entrevista do jornal “Folha de São Paulo” 

Censura nunca mais

Com a redemocratização, voltamos a ter uma liberdade de imprensa como um valor a ser defendido e respeitado. Apesar de haverem casos pontuais de censura após a redemocratização, atos de censura foram sempre rechaçados: em 2004, o então presidente e atual candidato Luiz Inácio Lula da Silva apresentou um projeto de lei para criar o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), cuja função seria o de “orientar, disciplinar e fiscalizar” a profissão de jornalismo, com poderes para punir jornalistas. A repercussão foi negativa e o projeto, abandonado, mas Lula nunca deixou de pregar pela regulação das mídias.

Porém hoje, jornalistas pedem censura de seus adversários. Vemos 186 jornalistas (22 da Folha) assinando uma carta aberta pedindo para que a Folha de São Paulo censurasse o texto de Antonio Risério sobre racismo,  assim como jornalista perguntando em pleno debate eleitoral se os candidatos fariam uma lei de fake news para censura. 

É neste clima que estamos, com a liberdade de imprensa em sério risco de ser tolhida e, com ela, todas as outras. Por mais que ele tenha tido um importante papel em segurar fake news durante esta eleição, os poderes acumulados no ministro do supremo assustam a qualquer um que preze pelo estado democrático de direito. O exemplo mais recente disto é o caso de Roberto Jefferson.

“Obviamente”

Roberto Jefferson estava em prisão domiciliar sob a condição de não utilizar mais suas redes sociais. Ao xingar a ministra do supremo Cármen Lúcia, foi ordenada sua prisão. Jefferson recebeu os policiais com tiros de fuzil e granadas, chocando e enojando boa parte da nação. 

Ao ordenar sua prisão, porém, Alexandre de Moraes deu um passo perigoso: proibiu-o de receber visitas ou fazer telefonemas. A OAB rapidamente se manifestou contra, afirmando que “sem descurar da gravidade dos fatos (…) a proibição de ele receber seus advogados sem prévia autorização (…) viola a prerrogativa da advocacia”. Em resposta, Moraes afirmou que “obviamente” a restrição não inclui os advogados de Jefferson. Mas será que não foi “óbvio” apenas porque a OAB se pronunciou? Que garantias jurídicas podemos ter daquele que abriu um inquérito no qual age como juiz, júri e executor, e que deu a si mesmo poderes de polícia para censurar quem achar necessário sem ser provocado? 

Eu estou com a OAB e considero o caso de Jefferson extremamente grave e reprovável, mas temos que permanecer vigilantes para que até ele tenha seus direitos legais respeitados. Não porque ele mereça, mas porque basta que as pessoas de bem se calem para que o mal vença. É preciso vigilância constante para que o estado democrático de direito se mantenha livre e independente, pois aqueles que querem destruí-lo sempre irão atacar as pessoas mais odiosas. Quando aceitamos que elas sejam censuradas e oprimidas, normalizamos isso para ser usado contra todos os cidadãos. 

E é por seu papel como um dos maiores vigilantes que a liberdade de imprensa deve ser protegida. É o legado que nos foi dado por Hipólito e utilizado por abolicionistas para trazer fim à escravidão. É também o legado de Henry Maksoud, que em frente à censura da ditadura militar ousou difundir ideias de liberdade em frente à tirania. Mesmo que a imprensa brasileira atual seja parcial e cheia de defeitos, não devemos nunca censurá-la. Ouçamos as palavras do imperador: imprensa se combate com imprensa.


Paulo Grego

2 comentários em “Censura nunca mais: o legado da imprensa brasileira”

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