Voto Obrigatório: A liberdade forçada de uma democracia deturpada

Não importa a ideologia, se de esquerda ou direita, é consenso entre os indivíduos que o voto é um dos pilares da democracia. A ideia de que é possível ser parte direta da engrenagem política e definir seus rumos é, sem dúvida, encantadora. E por trás desse véu de magia participativa, repousam também questionamentos e desconfianças. 

Nesse sentido, antes de seguir a leitura, induzo o leitor a uma breve reflexão: O modelo democrático brasileiro, na prática, satisfaz o seu anseio em se sentir parte da tomada de decisões? E nesse nosso atual sistema, seria o voto um direito ou um dever? 

Pois bem. 

Como todo produto da engenhosidade humana, a democracia fundou-se, evoluiu e continua em constante aprimoramento. A sua concepção é milenar, atravessa séculos, pois começa a ser delineada ainda na Grécia Antiga, com Aristóteles dando importante contribuição ao tema, especialmente na sua obra clássica “A Política”. A ideia de “Governo do Povo” parte, assim, da perspectiva grega, período em que o Estado se confundia com a própria pólis(cidade) e alguns poucos homens, ditos livres, detinham legitimidade para o exercício das atividades políticas.

Assim, verifica-se, ao longo da história, que a base conceitual da Democracia está na própria ideia de “governo do povo”, o que se deduz a partir da própria etimologia da palavra que deriva do grego demo (povo) e krátos (poder). 

Saltando para o século XX, temos a célebre – e convidativa à reflexão – frase de Winston Churchil: “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”

Ora, a execução literal da ideia de “governo do povo” mostra-se inviável, de plano, por questões numéricas e geográficas, o que, a grosso modo, levou os homens a moldarem a participação popular no contexto democrático, concebendo a eleição de representantes e instituindo a primazia da vontade da maioria. Aprimoramos, mas também fundamos novos problemas, como veremos.

Na prática, a cada dois anos, somos impelidos a votar em gestores e legisladores da nossa vida. Nossos deputados, senadores e vereadores incubem-se de formular leis que vão reger as mais variadas esferas do nosso cotidiano, das mais essenciais, às mais díspares e contrárias aos nossos interesses, ou seja, temos leis para a distribuição de absorventes a mulheres de baixa renda e também para o aumento do já bilionário fundão eleitoral que financia as campanhas deles próprios, os políticos. 

Nossos gestores, por sua vez, encampam ações que também impactam diretamente a nossa vida e que dificilmente serão aceitas por todos (muitas vezes nem pela maioria o são), mas a procuração, concedida a eles por meio do voto da maioria, garante-lhes a liberdade de exercício, ainda que impopular. Basta lembrarmos da condução política durante a pandemia, que em todos os níveis (municipal, estadual e federal), promoveu muita controvérsia no seio popular.

Mas as eleições se aproximam e temos a chance de renovar o cenário com o exercício do voto. Entretanto, de início, lembro-lhes que só podemos escolher dentre um número limitado de candidatos, os quais são escolhidos não por nós, mas pelas agremiações partidárias. Tal arranjo, em si, já restringe a nossa liberdade de escolha. Tanto é que já é conhecido aquele bordão enraizado e, passivamente reproduzido entre os eleitores, de “vou votar no menos pior”, que ressoa, invariavelmente, em tom de resignação.

Diante desse cenário, outra alternativa é se abster, votando nulo ou em branco. Há, por lei, imposição de comparecimento à seção para o fim de externalizar a referida escolha, sob pena de multa e anotação de irregularidade no cadastro do eleitor, que fica sem quitação eleitoral.

Contudo, não querer participar do processo eleitoral, seja por protesto, convicção, descrença ou até mesmo por preguiça, deveria ser visto como um exercício de liberdade legítimo e, portanto, a ser respeitado pelo Estado, porquanto não deixa de espelhar um posicionamento político. O cidadão, pagador de impostos, deveria ser livre para votar ou não, de modo que caberia apenas a ele essa decisão. 

Forçar a participação por se considerar, de modo abstrato, que o voto é essencial e importante, pode ser danoso de inúmeras formas. Aquele eleitor desconfortável com a obrigação, tem grandes chances de exercer esse dever de modo precário, sem qualquer reflexão, votando a esmo, o que deturpa a vontade e a soberania popular. Ou então pode fomentar o famigerado voto de cabresto, que ainda sobrevive especialmente nos rincões do país.  

Nesse contexto, aparentemente seria mais democrático tornar facultativo o exercício do voto, pois melhor se alinharia à própria ideia de democracia, no sentido de garantir à população a prerrogativa de não votar, considerando-se isso um exercício legítimo de participação do processo eleitoral, por mais paradoxal que isso soe.

Outro argumento recorrente é de que a causa dos problemas da (má) gestão e da corrupção estaria também no fato de que os cidadãos não cobram e tampouco fiscalizam seus candidatos e, por esse motivo, também não teriam legitimidade para reclamar. Ou seja, além de sermos obrigados a votar, devemos também acompanhar as ações políticas e promover meios de cobrança para, só então, termos o direito de externar nossa insatisfação. 

Na teoria, a ideia até faz sentido, mas, na prática, é inviável. O indivíduo, em regra, já precisa se cobrar, fiscalizar e gerenciar as suas próprias ações em diversas áreas, como o trabalho e a família. Dadas as condições de vida do brasileiro médio, o manejo do sustento e das questões do dia a dia já ocupam todo o seu tempo.

Em algumas situações pontuais, considerando-se o contexto e os direitos em jogo, é normal a população se mobilizar em maior número, como já foi visto em diversos momentos históricos: “Diretas Já”, “Fora Collor” e, mais recentemente, as “Manifestações de 2013”. No entanto, a não ser que seu ofício esteja atrelado às atividades políticas, dificilmente o cidadão comum será assíduo em protestos e outras formas de fiscalização e cobrança.

É, portanto, vazia essa ideia de que cabe à população exigir dos eleitos que façam o seu trabalho (para o qual são bem pagos com o dinheiro do eleitor, diga-se) e, pior, ainda imputa ao trabalhador comum, pagador de impostos, a culpa pela má condução das políticas e da gestão do dinheiro público, tão recorrentes no Brasil. É injusto, subverte a lógica e ainda isenta os políticos de sua responsabilidade.

Na mesma linha, é o argumento de que, para que haja mudanças efetivas, é necessário lutar pela reforma política. Ora, quem conduzirá a reforma política?  Os próprios políticos. Em que momento histórico do Brasil viu-se políticos legislando de maneira contrária aos seus próprios interesses? Até acontece de sinalizarem algo nobre nesse sentido, efetivando alterações que minimizam suas regalias, por exemplo, sendo que, não raro, após algum tempo, com os indivíduos imersos no seu próprio cotidiano e problemas pessoais, revertem as mudanças sob a névoa do esquecimento da população.

Dessa forma, a democracia no Brasil tem consolidado uma espécie de oligarquia que é comandada por uma elite política. Nesse contexto, os grupos minoritários de disputa se organizam em partidos, concorrentes entre si, cada qual buscando angariar votos dos eleitores, que é o que lhes garante a assunção ao poder na Democracia Representativa, redefinindo, assim, o próprio conceito de Democracia, cada vez mais distante da ideia original de “governo do povo”.

Como ensina Dallari (2003), ao caracterizar os mandatos políticos no âmbito da democracia representativa, o mandatário, embora eleito por uma parcela do povo, tem plena autonomia e independência para decidir em nome de todos, sem necessidade de ratificação das decisões que obrigam inclusive quem a elas se oponha. Assim, o representante é “irresponsável”, “não sendo obrigado a explicar os motivos pelos quais optou por uma ou outra orientação”. (DALLARI, 2003, p. 158).

Disso decorre que a participação popular se resume, em essência, ao procedimento de escolha dos representantes no período eleitoral, ressaltando o aspecto meramente formal da Democracia. Assim, conforme assinala Gianturco (2017), ser democrático não tem a ver com o que se decide, mas como se decide. Ou seja, trata-se de um meio/método em que não são mensurados os outputs, os resultados, a legislação produzida, mas o processo, a forma, o procedimento. 

Portanto, o voto, na atual democracia representativa, não é em cima de decisões propriamente, mas de candidatos cujos nomes são escolhidos pelas agremiações partidárias, o que mitiga a participação e a escolha popular, reitere-se. Argumenta-se que, por questões de ordem prática e de operacionalização, a maioria dos estados modernos constituem democracias representativas, ainda que hajam referendos ocasionais (KARSTEN; BECKMAN, 2013, p. 29). 

Apesar do diagnóstico desanimador empreendido até aqui, faz parte do caminhar da humanidade esse movimento perene de progressão e retrocesso. O objetivo não é desqualificar o sistema democrático, mas apenas apresentar as falhas mais aparentes, com vistas à promoção da reflexão e do seu aprimoramento. 

Como tudo, a Democracia apresenta vantagens e desvantagens e, inegavelmente, representa um avanço importante na vida social, já que se contrapõe a modelos autocráticos. Quer dizer, a ampliação progressiva do sufrágio conferiu maior participação popular, aproximando-a do conceito basilar de “governo do povo”. Além disso, a democracia traz, desde a sua concepção, valores importantes que antagonizam com a violação de direitos fundamentais, o que é, sem dúvida, positivo.

As deturpações apontadas fazem parte desse processo de constante construção e, obviamente, enseja reparos. A solução para tanto, desconheço. Nesse quesito, parafraseio Victor Nunes Leal e apresento apenas um diagnóstico no esforço de compreender uma pequena parte dos nossos males. “Outros, mais capacitados, que empreendam a tarefa de indicar o remédio”. (NUNES LEAL, Victor. 1975, p.258).


Texto por Patricia de Castro Sousa Simionato

Arte por Tailize Scheffer

2 comentários em “Voto Obrigatório: A liberdade forçada de uma democracia deturpada”

  1. Letícia de Castro Maia

    Pati, gostei muito das suas reflexões. Com muita clareza você expõe nosso desânimo em exercer nosso “direito/obrigação” de votar.
    Parabéns!!!;

  2. Walquíria S D Antonio

    Perfeito diagnóstico! Excelente reflexão!
    Você aponta questões críticas da propalada “democracia”, em especial a brasileira: questionável obrigatoriedade do voto; absoluto distanciamento entre os anseios da população e o retorno de seus representantes, na maioria políticos descompromissados com o bem-estar dos indivíduos e desenvolvimento do país. E o pior: a solução para uma democracia efetiva, livre de um Estado opressor, passa pela mesma elite política que dificilmente abraçará reformas urgentes e necessárias, que contrariem seus próprios interesses.
    Texto irretocável! Parabéns, Pati!

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