O Raio X do Identitarismo

Já virou clichê dizer que a militância ficou chata demais. Palavras como denegrir e criado mudo vem sendo constantemente substituídas, e gafes gramaticais são cometidas quando militantes usam termos como “para escurecer” ao invés de “para esclarecer”, dentre outros. Quando questionados sobre isso, muitos dirão que apenas estão exigindo educação, e que é preciso se desconstruir dos erros da sociedade para se tornar uma boa pessoa. No entanto, esse assunto é muito, mas muito, mas muito mais profundo do que isso. 

O propósito deste texto é mergulhar fundo neste debate, com o intuito de mostrar as verdadeiras raízes do movimento identitário, e qual a melhor forma de questioná-lo.

Qual é a natureza humana?

Não falei que era fundo? Vamos começar dos clássicos e fazer a pergunta: o ser humano é bom ou mau por natureza? Há quem diga que é bom. Há quem diga que é mau.  Entender a diferença entre estes dois é fundamental para o que vem pela frente.

John Locke: o homem é mau. 

Para Locke, os seres humanos sozinhos buscariam defender apenas os seus próprios interesses, enquanto negligenciam de maneira descuidada os interesses dos outros. Viver sem normas numa sociedade seria então muito arriscado e inseguro, afinal nada impediria outra pessoa mais forte do que nós vir e destruir nossa vida. Para garantir então que a vida, liberdade, e propriedade delas sejam protegidas umas das outras, as pessoas aceitam um governo comum que garanta a elas seguir sua vida sem medo. 

No paradigma de Locke, então, as leis devem ser o mais explícitas e imparciais possíveis, como regras gerais que todos conheçam e possam seguir igualmente. E disso surge o valor da privacidade: se na minha vida pública eu sigo todas essas regras gerais, já estou fazendo minha parte e as outras pessoas não tem nada que se meter na minha vida privada, onde o que eu sou e/ou faço não interessa a ninguém. Foi sob esse princípio lockeano que os pretos e LGBTs dos Estados Unidos conseguiram vencer a luta por seus direitos nos anos 60 e 80.

Jean-Jacques Rousseau: o homem é bom

Para Rousseau, os seres humanos nascem puros e sem qualquer maldade, como bons selvagens, sendo a sociedade que os corrompe. Um sintoma dessa corrupção para ele é a desigualdade, que pode ocorrer ou devido a características individuais de cada um ou por circunstâncias sociais.

No paradigma Rousseauniano, é o segundo tipo de desigualdade que deve ser combatido, pois suprime gradativamente a liberdade dos indivíduos. E disso surgiu a necessidade por destruir as instituições que vimos na revolução francesa, nas revoluções comunistas, e agora com o identitarismo. Ao mesmo tempo que foi a base para a democracia liberal francesa que temos hoje e para muitos estudos em pedagogia, uma vez que Rousseau via o jovem como integral para a mudança da sociedade. 

Mas o que isso tudo tem a ver com os identitários desconstruídos? 

Muita coisa. A base do movimento identitário atual advém do livro Critical Race Theory, de Kimberlé Crenshaw. Concorrendo com essa visão racial de mundo temos Thomas Sowell, o último liberal vivo do grupo de Milton Friedman. A disputa entre estes dois filósofos pretos não é apenas ideológica, mas sim uma batalha de paradigmas: Sowell defende a questão racial segundo Locke, enquanto Crenshaw, segundo Rousseau.

Substituindo Locke por Rousseau na sociedade americana

Em “Ação Afirmativa ao Redor do Mundo”, Sowell analisa a questão de ações afirmativas na Índia, Malásia, Sri Lanka, Nigéria, e nos Estados Unidos, concluindo pela evidencia empírica que as ações afirmativas genéricas, aquelas onde a lei explicitamente proíbe a discriminação em serviços/trabalhos/vida social , são mais efetivas do que as ações afirmativas altamente específicas, aquelas onde o governo ou empresas discriminam ativamente em favor do grupo oprimido. 

Isto porque, nos países onde foi implementada, a ação afirmativa altamente específica amplificou o ódio entre grupos sem conseguir resolver a desigualdade entre eles (como por exemplo na separação entre Malásia e Cingapura e na guerra civil de Sri Lanka). Para Sowell, as leis de direitos civis para os pretos na década de 60 estabeleceram enfim a igualdade de oportunidade nos EUA, e qualquer ação do após isso seria inapropriada.

A realidade parecia corroborar a previsão de Sowell, pois a sociedade americana dos anos 80 considerava o movimento negro uma causa vazia: a igualdade perante a lei havia sido completamente conquistada e, com ela, todas as metas do movimento haviam sido atingidas. Os radicais do movimento Black Power não haviam conseguido se renovar nas novas gerações e a sociedade, cujo paradigma era lockiano, acreditava que nada mais impedia brancos e pretos de terem igualdade de oportunidade. 

No entanto Crenshaw, uma marxista crente no paradigma rousseauniano, discorda diretamente de Sowell e de Locke em seu livro. Para ela, a igualdade de oportunidades nunca trará fim à desigualdade, pois esta seria fruto das estruturas da sociedade. Igualdade perante a lei e direitos de propriedade seriam, portanto, apenas ideologias que impedem a sociedade de se tornar verdadeiramente livre e igualitária.

Ela defende que apenas medidas legais que desafiem a lógica institucional e promovam a distribuição de renda (vulgo a revolução) serão capazes de resolver as disparidades étnicas. 

O verdadeiro propósito da desconstrução

“(…) quando o Estado tremeu, uma estrutura robusta da sociedade civil foi imediatamente revelada. O Estado era apenas uma vala externa, atrás da qual havia um poderoso sistema de fortalezas e valas(…) – Antonio Gramsci 

Baseando-se em Gramsci, Crenshaw aponta a cultura como o obstáculo que impede sua utopia de virar realidade. Porém, como o socialismo sozinho não foi capaz de subverter a lógica das instituições e da cultura, era necessária outra estratégia: redefinir os termos chave da sociedade liberal para mudar o seu fluxo lógico. 

Ficou confuso? É tipo em “1984”, onde as palavras que te permitiriam pensar diferente são removidas para te impedir de pensar. Como os argumentos não puderam ser derrotados, foram atrás das palavras que formam estes argumentos e expandiram seus significados para incluírem o oposto. 

Já se perguntou, por exemplo, por que o PSOL significa Partido do Socialismo e Liberdade? É porque liberdade foi redefinida de “poder fazer o que quiser sem o Estado intervir” para “poder fazer o que quiser sem depender de ganhar dinheiro ou trabalho para viver” (é daí que vem a gafe  do Tico Santa Cruz dizer “infelizmente ainda vivemos num país em que a gente precisa trabalhar”). Coisa parecida aconteceu com os termos “liberal”, “liberdade de expressão”, “discurso de ódio”, “família”, “cristianismo”, “estado mínimo”, “nazismo”, “tolerância”, “igualdade”, “diversidade”, “genocídio”, “racismo”, “homofobia”, “igualdade de oportunidade”, entre outros. A ideia é justamente contaminar o senso comum e fazer você que discorda não conseguir articular uma defesa contra eles. 

Trecho de Alice meets Humpty Dumpty

E é daí que vem a desconstrução

Todo esse papo intelectual foi legal, mas você provavelmente não conhece nenhum identitário que defenda essas coisas explicitamente, certo? É porque isso foi difundido de tal forma na sociedade que já se perdeu a referência original (exemplo: o adolescente lacrador do twitter aprendeu vendo um tik toker, que aprendeu num vídeo do youtube, que foi inspirado num livro pequeno resumindo um livro maior, que foi escrito baseado na Crenshaw). Isso torna eles diferentes dos marxistas, cujos argumentos tem a origem conhecida por todos e então podem ser atacados. Muitos deles nem sabem de onde vêm seus argumentos, e os consideram apenas senso comum.

Os identitários veem a sociedade como sistemicamente opressora, e os opressores como seres programados pela sociedade para perpetuar a opressão. A utopia viria então ao se questionar as estruturas e desconstruir todos os seus mitos fundadores. O inimigo não é mais o capitalismo, mas sim a monogamia, o cristianismo, a família tradicional, a cisheteronormatividade, o futebol, o cinema, os comediantes… e sim, até palavras como criado mudo, esclarecer e denegrir. Há uma fé rousseauniana radical de que destruindo todas as estruturas (sem precisar colocar nada no lugar), a desigualdade e o preconceito finalmente acabarão. Entender que eles são mais rousseaunianos radicais do que marxistas soviéticos é fundamental para debater com essa nova esquerda, porque já teve alguém 300 anos atrás que já deu a solução para refutá-los.

Foto explicando como um identitário enxerga a sociedade, onde o muro é uma barreira social sistêmica. O primeiro quadro é a igualdade de oportunidade lockiana, o segundo, como enxergam a ação afirmativa, e a terceira, a utopia do movimento identitário.

Edmund Burke e a importância das estruturas sociais

Nascido em 1729, Burke foi um importantíssimo político inglês, considerado por muitos o pai do conservadorismo. Embora eu não me considere conservador, acho Burke de extrema importância para a crítica ao identitarismo. Isso porque, em seu livro “Reflexões sobre a Revolução na França”, aponta os erros do paradigma rousseauniano. Burke mostra como a destruição indiscriminada das estruturas acaba por destruir também as boas conquistas que tivemos ao longo dos anos. Sejam eles direitos humanos, liberdades individuais, regimes democráticos, valores morais, dentre outros, muitas coisas que tomamos como garantidas pela civilização são na verdade fruto da luta de séculos de um povo para conquistá-las (e podem ser perdidas). Como visto no “Regime do Terror” francês, onde mais de 10.000 pessoas foram mortas sem prisão nem julgamento, eliminar todas as estruturas não apenas não traz uma utopia como também destrói garantias fundamentais dos indivíduos. Sem as tão odiadas estruturas, precisaríamos constantemente re-aprender a roda.

Tenha isso em mente: o identitário desconstruído não necessariamente acredita em Marx, mas baseia sua visão de mundo em Rousseau. E lá que você tem de atacar para vencer no debate de ideias. 

Se você tentar debatê-lo apontando os erros do comunismo e da União Soviética, ele simplesmente concordará e dirá que o que ele defende é outra coisa. Você muito menos conseguirá convencê-los defendendo princípios lockeanos como a importância de contratos e do Estado Mínimo, pois isso não se encaixa na visão de mundo deles. Se apontar hipocrisia ou dois pesos e duas medidas, estará apenas se enganando, porque o que importa para eles não é atacar um grupo que discorda, e sim destruir a estrutura que aquele grupo representa na sociedade.

Para que a liberdade vença no fim, é necessário defender as estruturas sociais, morais, e gramaticais, para atacar diretamente na raiz o problema. É entrar de cabeça na discussão sabendo que, para ganhá-la, é preciso usar Burke, e não Mises.


Texto por Paulo Grego

Arte por Tailize Scheffer


REFERÊNCIAS

Capítulos do livro Critical Race theory:

Race Reform and Retrenchment: transformation and legitimation in antidiscrimination law

https://scholarship.law.columbia.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3871&context=faculty_scholarship

Beyond Critical Legal Studies the reconstructive theology of Dr. Martin Luther King Jr

https://vdocuments.net/beyond-critical-legal-studies-the-reconstructive-theology-of-dr-martin-luther.html

Rousseau

https://novaescola.org.br/conteudo/458/filosofo-liberdade-como-valor-supremo

John Locke 

Livro Pensadores da Liberdade, de Rodrigo Constantino


4 comentários em “O Raio X do Identitarismo”

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